A Minha Raiva Contra Tudo o Que Desconheço

"Qualquer que seja seu conteúdo manifesto, eles sempre são supostamente uma realização de desejo, de duas maneiras logicamente distintas: pelo menos um desejo infantil, em geral inconsciente, é necessário como causa motivacional de todo e qualquer sonho, e o conteúdo manifesto do sonho exibe plasticamente, de maneira mais ou menos disfarçada, a situação almejada pelo desejo."

Eu estava sentado descansando. Era um final de tarde quente. Talvez um sábado. Então, descendo a rua, vem uma velha que se parece muito com a minha avó com mais duas outras mulheres que tenho a impressão de conhecer de algum lugar. Elas me puxam pelos braços. Dizem que precisam me mostrar algo. Revelar um segredo de décadas. Me sinto forte ao lado delas. Como que para por à prova essa minha repentina força, ergo um carro com uma mão só. Elas falam que a minha mãe está morta. Assim, como se fosse a coisa mais natural do mundo dar esse tipo de notícia pra alguém. Eu fico confuso. Uma das garotas, a mais corpuda delas, revela que é minha irmã. Mas eu não tenho irmãs. As ruas vazias, apenas nós quatro andando para um lugar por mim desconhecido. Que segredo é esse? Minha mãe morta. Como assim? Uma festa. Uma casa de três andares com um quintal amplo, com algumas árvores. Muitas pessoas. Me sinto irascível. Como pôde minha mãe partir sem me revelar o tal segredo? Aquela egoísta! Ciente da minha força, adentro a tal festa esbarrando em homenzarrões como se eles fosse manequins de isopor. Esbravejam com indignação, medo e respeito, assim que dou as costas. Covardes! Uma cólera vai crescendo dentro de mim. A velha que se parece com a minha avó entra na casa. A que se diz minha irmã pede para que eu fique esperando do lado de fora. Um homem com um espesso bigode preto me olha da varanda. Ele usa um chapéu de caubói. Música sertaneja. Alta. Ele se põe a me fitar apaixonadamente. Me olha com toda a atenção, suas rugas relaxando mais a cada momento que passa. É como se tivesse me olhando reconhecendo alguém que a memória não quer revelar quem é, quem fui, quem sou. Eu sinto a mesma coisa. A velha aparece ao lado dele, fala em seu ouvido e me aponta. Ele abre um sorriso maior do que o rosto. O que ela lhe falou ao ouvido aparentemente transformou suas conjecturas em fatos concretos. Ele sorria pra mim. Era um sorriso muito parecido com o meu próprio sorriso. Idêntico, eu diria. Continuava sorrindo, indeciso se vinha falar comigo ou não. Eu não ouvi o que a velha falou, nem fazia idéia das conjecturas que ele fazia enquanto me observava. Mas compreendi o que acontecia. Descobri qual era o tal do segredo de décadas. Todas as fibras do meu corpo fremiam em cólera. A mãe, a vó, a irmã, a festa, as árvores, a bebida, a música, os carros, os pássaros. O segredo. O segredo fora revelado e o homem do bigode não conseguia mais parar de sorrir, ele era só sorrisos e eu era o motivo de seus sorrisos. Minha visão turva, meu coração pulsando forte, ribombando mais alto do que a caixa de som. Meus punhos cerrados com tanta força que parecia que meus dedos iam varar as palmas e sair nas costas das mãos. Complô. O lugar fervia de tão quente; uma porta com ligação direta para o inferno pairava sob nossas cabeças. Do outro lado da porta, ciclones de fogo, vultos pretos de olhos amarelos e dentes vermelhos sorriam e ameaçavam transpor a dimensão e invadir nosso mundo. Giravam no sentido contrário dos ciclones, chafurdavam em lava e voltavam com o olhar demoníaco a nos tremelicar a alma dentro do corpo. Aquilo não me interessava. Eu tinha um objetivo. Aquela força hérculea não fora atribuída à mim à toa. Eu tinha de usá-la, e agora sabia como. Compreendia tudo. O Poirot sumiu da varanda. Apareceu no meio da festa, sendo saudado por todos anunciando sua descoberta e todos os olhares se voltavam para mim. E chama aquela que dizia se minha irmã de filha e vem com os braços abertos em minha direção. Cego. Cegueira de ódio. Assim que eu me sentia. Não via nada, só sentia. Um embotamento preenchido com o mais puro e cáustico e concentrado sentimento de amargura furiosa. Alguém tinha de pagar por tudo. E a materialização da culpa estava na minha frente, com um chumaço de pêlos acima dos lábios. Eu o pego pelo pescoço como se fosse uma galinha de plástico que as crianças fingem degolar e o chacoalho pelos ombros sentindo seus ossos se deslocando, se partindo. Seus olhos se esbugalharam, quase saindo de órbita; suplicantes, olhando nos meus. Sua língua entre os dentes. O abandono, o abandono. O arrastar do tempo, a reclusão de tudo; tudo o que me fora negado pela vida. Ele estava pagando, e não estava pagando barato. O portal do inferno se abria mais e mais acima de nós, mas ninguém parecia se dar conta dele. Arranco seu braço esquerdo, seu braço direito. Sem tirar a mão do pescoço, apertando cada vez mais forte, sentindo toda a sua matéria derreter entre meus dedos como massa de modelar. Alguém tinha de pagar, pagar, pagar, pagar, pagar e o portal do inferno deixou de mostrar suas imagens escarlates e flamejantes. Ele era só um espelho onde todos se olhavam no reflexo flutuante. O inferno é aqui mesmo, onde encontros resultam em cópulas e cópulas resultam em proles e as proles resultam no abandono, na fúria, no egoísmo. No próprio inferno de cada um, de cada alma abandonada pelos anjos, de cada desprezo da infância, de cada desunião mesquinha, de cada segredinho maldito guardado pra levar pro túmulo.

Então eu acordo. Eu sabia desde o início que era só um sonho, apenas um sonho. Dormindo, tive a ciência de que sonhava e que poderia manipular o que aconteceria na ilha da fantasia. Foi o que fiz. Senti tudo, cada momento, cada olhar, cada aperto; a ciência da minha força digna de filmes fantasiosos, do meu poder de destruição e de uma possível e hipotética origem que... Não acho palavras. O inferno é aqui. É inconcebível que algo consiga superar o quão ruim e deprimente é viver aqui...

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 03/08/2010
Reeditado em 03/08/2010
Código do texto: T2416996
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