A criança tem a alma despudorada.

Uma vez, nos idos de meus cinco ou seis anos, não me recordo ao certo, fui vítima de uma gang de criancinhas delinqüidas, mais velhas, que me pegaram pra Cristo simplesmente por eu estar usando um short vermelho com bolinhas brancas, curtíssimo, que me deixava além de tudo com a pancinha estufada de fora.

Rodeado pelos diabinhos, os quais eram incisivamente instigados por seu líder, um tal de Ronei, o Rubro (nervosinho de cabelos loiros e cara vermelha feito tomate), vi-me sovado durante semanas e por todos os lados, de corpo e alma. Eu era um lixo. Aonde quer que fosse com mamãe, papai ou avó, lá vinham os caras tirar sarro de minha cara. Não havia o que fazer. Minha vida era sofrer. Sofri pacas naquele período.

Ocorre que, num determinado momento, tendo acordado meio perturbado após assistir ao filme “O Monstro da Lagoa Negra”, na extinta Rede Manchete, percebi que as coisas não podiam ficar como estava. Confesso que aquele filme mudou minha vida. Nunca mais fui o mesmo, e todas as vezes que algum problema me aflige, recorro às recordações daquele filme, e dou a volta por cima, feito “um monstro da lagoa negra!”. Até pareceu-me que tinha me encarnado no maldito monstro do filme. Fiquei puto da vida. Revoltei-me contra o sistema.

A partir daí, nas duas semanas que se seguiram, aguardei com fervor a oportunidade de vingança.

Numa bela segunda feira, vendo que os garotinhos já esboçavam me esquecer, decidi por em prática minha vingança premeditada, um caso típico, clinicamente tratável. Decidi de propósito ir à escola com o dito shortinho vermelho de bolinhas brancas, só pra ver no que ia dar. Ria internamente.

Não é que, nem bem saí na rua ouvi na esquina uns gritinhos matreiros de molequinhos malfazejos: “ô shortinho vermelho de gay! Ô shortinho vermelho de gay! Ô shortinho vermelho de gay! E vinham se aproximando, impulsionados pelo líder que ditava o coro: ô shortinho vermelho de gay! Ô shortinho vermelho de gay! Ô shortinho vermelho de gay! Até que a meu alcance o chefe deu as caras, pobre diabo, ou melhor, o nariz, momento em que já meio cegueta, com os nervos à flor da pele e devido aos óculos com tampão que o tal do estrabismo me obrigara a usar, soltei um “pombo sem asa” na fuça do líder!, que desabou feito um saco de serragem no chão, aos berros, com as mãos no rosto todo ensangüentado. Nem eu sabia a potência de meu petardo direito. Os demais, com os olhares esbugalhados e percebendo a coisa preta, ou vermelha, logo zarparam em debandada, rumo aos lares avisar mamães, papais e avós sobre o acontecido: “o menino doido do shortinho vermelho deu um soco no nariz do Ronei, arrancando sangue, o deixando com a cara toda avermelhada!”. Coitado do Ronei! Logo vieram os pais tratar do assunto, que sucedeu no arquivamento do feito nos arquivos gerais da população circunvizinha, ou seja, na memória da meninada.

A partir daí me tornei temido e respeitado por todos, que não me viam mais como o shortinho vermelho de bolinha, mas sim como o “calção vermelho de sangue de monstro”, num tom a meu ver muito mais respeitoso. E é bom lembrar que eu tinha uns cinco ou seis anos, não me recordo ao certo.

Cristiano Covas, 18.4.2006.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 06/07/2010
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