O Amor, a Amizade e a Crise


Em tempos de crise cada um de nós vive pensando o que pode ser feito para afastar seus efeitos e ganhar uma graninha a mais, pois ela é sempre bem vinda.
 
Um dia meu amigo Pedrão que está um pouco apertado com suas finanças me procurou para ver se eu não emprestava uma 'verbinha’ para ele, mas sem juros, avalista, 'chequinho' ou promissória e, sobretudo, sem muita pressa de receber.
 
Contou-me das razões que tornaram sua situação financeira que já estava capenga, ainda mais aflitiva quando se entusiasmou pela idéia que teve, e, sem qualquer avaliação, iniciou o projeto que o levou a dar com os burros n'água.
 
Disse–me ele que em seu dia-a-dia vê as pessoas se apertarem em filas de empresas prestadoras de serviços públicos, com suas contas já pagas nas mãos, mas que são obrigadas a enfrentar em aquele calvário simplesmente para evitar a suspensão por falta de pagamento.
 
Isto se faz necessário, pois hoje a maioria das pessoas sai bem cedo de casa e só volta no final da tarde e como pagaram suas contas com atraso correm o risco do concessionário dos serviços ir durante o dia até lá e suspender o fornecimento, pois ali não há ninguém para mostrar que a conta já está paga.
 
Nesta situação o amigo Pedrão, que é técnico em eletrônica, imaginou fazer um aparelho nesta área e colocá-lo perto dos medidores dos serviços cuja conta fora paga com atraso e assim que o funcionário viesse até o local para fazer seu trabalho de supressão o aparelhinho emitiria um sinal de voz de que ele não deveria fazer o corte, pois a conta já estava paga.
 
Seu entusiasmo foi grande e comentou com alguns de seus amigos de boteco o seu projeto, imediatamente aprovado por unanimidade, sendo que alguns aproveitaram para reservar a geringonça a ser produzida.
 
Afinal, o mesmo ocorrera com estes companheiros, de chegarem em casa e os serviços públicos estarem suspensos por falta de pagamento, embora a conta já estivesse paga, mas que por não ter ninguém em casa para mostrar o comprovante, simplesmente o funcionário cumpria a ordem que lhe era dada e zapt com seu afiado alicate.
 
Ô tristeza !
Um deles, o Paulão, de pronto informou ao amigo inventor que estava interessado pela aquisição somente dos aparelhos para água e gás, dispensando os do telefone e da energia elétrica.

Esclareceu que nas vezes em que ocorreram cortes destes serviços, especialmente de luz em sua casa, sua vida, ao contrário que se pode pensar, mudou e para melhor.

Ante esta afirmação, todos os que estavam no Sem Lar, sugestivo nome dado ao boteco pelos seus frequentadores, largaram seus copos de cachaça, de cerveja, o taco de bilhar, tendo até mesmo o Mané, o dono do estabelecimento, baixado o volume do rádio, para silenciosamente ouvirem a explicação.

Paulão, com ar de autoridade de quem sabia o que estava falando, iniciou a explicação de sua escolha somente sobre os aparelhos para água e gás, assim:

Nas veiz que cortou a luz e o telefone de casa foi uma maravilha, pois a Neusa, que andava meio sumidona de mim, pois oceis sabe como é essa coisa de casamento de muitos ano e com pouca grana, aqueles toquezinho mágico que eleva a moral da gente vai se rareando, agente vai ficano meio acabrunhado, pouco conversa, vai se distanciano, o que faiz agente vir aqui no Sem Lar do nosso amigo Mané para esquecer esses desencontro e voltar mais aliviado pra casa, embora a minha Neuzinha, que é a mulher que eu amo tanto, não goste muito e sempre me dá uma bronquinha, mas que logo passa.

Um dia sai do trampo e passei aqui pra bater um papinho cos amigo, tomei um curtinho rabo-de-galo, tão curtinho quanto tava minha grana naqueles dia. Cheguei em casa e tava lá a minha Neuzinha chorano no portão, o que me assustou, e me feiz até apertá um pouco o passo pra chegar mais ligeiro nela e ela veio no meu encontro, se encostou no meu ombro e falou:

- Paulão, eu tava acabando de tomar um banho quando senti que a água começou a ficar fria e não entendi o que era e quando sai, vi que o caminhão da elétrica tava se afastando daqui de casa e olhei pra cima e vi que tinham cortado nossa luz.

Não tive alternativa, me fiz um pouco de comovido e disse a ela:

- Fica triste não, vamo aproveitá pra sentá um pouco aqui na varanda, bate um papo e acertá nossa situação amorosa, pois tamo muito distante um do outro, o que oce acha da proposta ?

Vi que ela não tava muito confortável com minha conversa, mais me deu um gostoso e meigo sorriso e me falô de uma forma muito agradável:

- Paulo, - veja, ela até me chamô de Paulo ao contrário de Paulão como sempre faiz -, você não se importa em tomar um banho de água fria ? E eu, pra manter a moral nas altura, de pronto respondi claro que não minha amada Neuzinha, e entramo de mão dada pra nossa casa sem luz e sem telefone.

Fui pro banheiro tomei um banho daqueles que agente fala banho de gato, pois a noite tava fria, tal como a água.

Oceis acredita que assim que sai do banho já percebi que a minha Neuzinha tinha aceitado minha proposta de nós sentá e conversá um pouco sobre nossa vida amorosa, tanto que ela tinha requentado um pouco de macarrão e uns bife que tinha sobrado do almoço e colocado até um restinho de Sangue de Boi numa jarrinha, que tava a coisinha mais chique.

Deixa eu fazê aqui um parentes e pedi que oceis me perdoe pelo jeito eu tô falando, mas lá em casa as coisa, pelo que to passano pelo desemprego anda assim mesmo, tudo no restinho, mas não falta nada não, é de pouquinho em pouquinho, mas sempre tem.

Mais voltano no assunto, olhei bem, aqueles prato colocado na mesa, os talher ali ao lado de cada um, a jarrinha de Sangue de Boi bem no meinho da mesa, que tava coberta por uma toalha arvinha arvinha como minha Neuzinha sempre mantêm lá em casa e ao lado da jarrinha uma vela acesa.

Assim que tava chegano na sala minha Neuzinha se levantô e veio andano pro meu lado, ela tava com um sorriso maravilhoso no rosto, veio abrindo os braço, me deu um beijo no rosto e falou com a maior tranqüilidade, carinho, afeição e amor:

- Meu Paulo, estou imaginando que Deus fez isto pra nós, mesmo estando com a conta paga, que é pra nós realmente voltarmos a pensar em nossas vidas de marido e mulher, para sentarmos mais para conversar, andarmos pelas redondezas de mãos dadas e fazermos tudo aquilo que fazíamos quando ainda éramos namorados e noivos, pois lhe garanto que amo você do mesmo jeito que amava no momento em que eu ouvi você me falar o ‘sim’ para na Igrejinha de São Benedito, nosso Protetor, naquele 28 de dezembro que já se vai longe.

Deixa eu fazê aqui outro parentes, não quero que oceis pense que eu to ficano fresco não, mas oceis perceberam que eu falei com as palavras da Neuzinha que são mais bem... bem... sei lá como posso falar... – Organizadas e estudadas, o ajudou Julinho, que é motorista de taxi. – Isso mesmo, organizadas, estudadas e bonitas, como me ajudou o Julinho.

Então amigos, nois dois, de mãos dadas fomo pra a mesa tão bem arrumadinha pela minha Neuzinha, sentamos ali, comemo aquele jantarzinho delicioso, bebemo aquele saboroso Sangue de Boi saído da jarrinha branquinha que ganhamo no nosso casamento, e tudo isso como diz aquela chique Glorinha Gentil – Glorinha Kalil, corrigiu mais uma vez Julinho - a luz de vela.

O Paulão mais uma vez, pra não ficar por baixo emendou na observação do Julinho: ‘Ocê tá certo Julinho, é Glorinha Kalil mesmo o nome dela, mas poderia sê tamém Glorinha Gentil, pois ela é muito gente boa, pois fala dum jeito muito simples e sem qualquer grandeza para cima de nois, no que eu então afirmo que pra mim ela é a Glorinha Kalil Gentil, assim fica bom pra nois dois, significa que nois dois acertamo.

Eu e minha Neuzinha ficamo ali sentado mais de duas horas, conversamo de nossa vida, pois não tinha televisão e nem telefone pra encher nossa paciência e atrapaiar esse bom momento, relembramo tudo de bom que a vida tinha dado pra nois dois junto, das viagens que fizemo quando eu tava bem de bolso, os encontro com os amigos no churrasquinho e, pra terminá esse gostoso encontro, oceis sabe que dançamos de rostinho coladinho, mesmo sem música, afinar não tinha luz em casa. Foi muito jóia!

O ambiente no boteco Sem Lar era um silêncio total e, como diz o ditado, ‘dava pra ouvir mosca voar’ para escutar a história do Paulão, que ficou emocionado. Quando parou de falar, todos que ali estavam deram um viva prá ele.

Ai o Paulão arrematou:

Meus amigo, depois disso de lá pra cá lá, em casa tá tudo a mil maravilha e eu a Neuzinha se dano bem, se amando e vivendo muito feliz. Então Pedrão, quando oce fizer o aparelhinho pode reservá pra mim um do gás e da água, que eu quero pôr perto do lugar onde o pessoal faiz a leitura, para quando eu pagá a conta atrasada e não tiver ninguém em casa ele avisá o cortador que a conta já ta paga e ele não cortá, mas o da luz e do telefone eu não quero, pois se cortá novamente será muito bom, pois assim não vejo televisão e nem tenho telefone e ai eu posso renová aquela jantar a luz de vela com a minha Neuzinha e continuá a sê com ela muito feliz.

O Pedrão, o inventor, entusiasmado com a fala do Paulão, partiu pra luta e investiu a graninha que tinha e fabricou muitos aparelhos na mesma proporção do alcance da fama de seu aparelho, chegando a congestionar as linhas telefônicas e as redondezas da fabriqueta do inventor.

Porém, o Pedrão, na continuidade de sua conversa comigo, reiterando o pedido que havia sido desde o começo feito, pra lhe emprestar uma graninha, arrematou:

- Meu aparelho fez e faz o maior sucesso, pois recebo muitos e-mail, cartas e telefonemas falando de sua funcionalidade e utilidade, porém, Brasilino, só foi sucesso de venda, pois não recebi nenhum até agora.

Afinal, - continuou ele - se as pessoas não têm dinheiro para pagar as contas devidas terão para pagar meu aparelho, mais caro que a própria tarifa ?

- É por isto Brasilino que estou precisando dessa graninha, dessa sua ajuda para me recuperar e ver se consigo inventar um aparelho que faça sucesso e que me dê também dinheiro.

Eu pensei, pensei, acreditei e entendi a situação do meu Amigo Pedrão e lhe fiz o empréstimo que ele precisava e não pedi avalista, chequinho e promissória de garantia, não cobrei juros e nem mesmo estou tendo pressa para receber, pois a amizade que me une a ele está acima destas coisinhas, pois o Pedrão é gente boa, gente nossa, e é realmente meu Amigo, com essa ‘letrona grande’ ai na frente.

- Pedrão, que Deus te acompanhe e te ajude, pois você merece, mas deixe-me te pedir uma coisa; - Apareça sempre, pois gosto muito de você e tê-lo como meu Amigo.
Brasilino Neto
Enviado por Brasilino Neto em 27/06/2010
Reeditado em 03/05/2013
Código do texto: T2343449
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