Então éramos muito jovens... e ríamos.
Em tempos de juventude, existe espaço para tudo: tempo para o comprometimento na escola, para os sonhos, para os projetos de vida, tempo para muitas conversas, descobertas, críticas, distrações e tempo para rir.
Na adolescência tudo existe, tudo anda, respira e o mundo adulto é taciturno, confuso, cheio de responsabilidades duríssimas e inteligíveis. A minha juventude foi assim: com medo constante da morte do pai, medo das suas dores infinitas, dos seus gritos e das dezenas de internações na Beneficência Portuguesa. Foi uma adolescência que eu não desejo a ninguém. Era uma soma extremamente dolorosa: angústia, solidão, depressão que em mim se manifestava em não querer comer nem mesmo me arrumar. O mundo era cinza e até hoje odeio essa cor que cheira à morte. Mas oxigênio existe. Felizmente e o meu oxigênio se chamava Ana Isabel Soares, uma mocinha negra, filha de uma senhora muito risonha, trabalhadora nas casas de família e muito gentil em todas as ocasiões. A Ana também era uma pessoa excelente, brilhante, que gostava de comer e era bom humor o ano inteiro.
Então tínhamos, no colégio, um grande professor, o Ir. Leonardo. Era grandeza de alma e não do fazer pedagógico. Não entendíamos nada da Física que o mesmo aplicava. Mas tinha um coração atento às minhas angústias e algumas vezes teve a paciência de me ouvir. O seu falar era erudito, a sua elegância era cotidiana. Magérrimo, cabelo extremamente curto, mas longa era a sua decência. Então resolvemos ser eruditas também. Da forma mais infantil, pura, resolvemos procurar palavras interessantes no dicionário. De tarde, depois das tarefas, o dicionário se tornava o nosso melhor companheiro. No dia seguinte, era só gargalhada! Uma tentava se gabar dos novos conhecimentos, mas o objetivo mesmo era deixar a outra com cara de idiota com essas palavras novas, improváveis do vocabulário de qualquer pessoa de saber mediano. Numa das aulas, a minha ilustre amiga me cutucou e , munida de uma caneta e papel, me disse: “coloque aqui o seu jamegão”. Obviamente eu não sabia o significado da palavra. E ela se pôs a rir. Depois de alguns minutos, ela se declarou: “jamegão é assinatura”. Rs rs rs .
Eu não me contive: ‘se você me provocar eu vou chamar o beleguim”. E ela não sabia que beleguim era guarda... e até hoje me refiro assim à turma da farda. “Ana, por que hoje você veio à aula com essa blusa rubicunda?” E dá-lhe gargalhada. Rubicundo é vermelho.
Mas duro mesmo era quando ela estava na letra J.
Disse que eu estava janota e o meu cabelo havia ficado jalne. Para os que não brincaram essa forma, “janota” quer dizer elegante e “jalne” quer dizer amarelo-ouro.
E assim íamos montando um vocabulário um tanto esdrúxulo e, numa amizade macia e sem nenhuma malícia, íamos nos divertindo naqueles tempos de dificuldades e de penúria moral, porque era tempo de ditadura e, para quem era tão jovem, rir era uma forma de sobrevivência e de resistência, afinal queríamos apenas viver. Viver de uma forma janota até ficarmos rubicundas de tanto rir... mas longe do beleguim.