E a vaca andou de Fiat Uno em Paulo Lopes.

Paulo Lopes é um pequeno município da Grande Florianópolis, com apenas 6.000 habitantes. Teve sua origem no século XVIII, quando os açorianos vieram para Santa Catarina no intuito de colonizar a região. Trouxeram a língua portuguesa, a religião católica e tomaram conta do espaço, na tentativa de evitar a entrada de estrangeiros, sobretudo invasores espanhóis. E guardaram alguns traços, um vocabulário interessante, um “s” carregado, uma fala rápida. Paulo Lopes, por exemplo, soa como “Polopix”. E eu também acostumei a falar Polopix, de tanto carinho pelo lugar e pelos habitantes.

Ao longo de um ano eu me levantava cedo e me dirigia até lá. Sempre às terças-feiras, eu pegava a minha maleta com as agulhas, as moxas, ventosas, álcool e algodão. Lá ia eu praticar a acupuntura – arte milenar da Medicina Tradicional Chinesa. Tive vários pacientes ali, um melhor que o outro na simpatia, na simplicidade, na boa acolhida, no respeito. Foi o tempo mais feliz da minha vida profissional! Inesquecível a maravilha de estar ali com aquela gente! Gente trabalhadora e sofrida, com dores no corpo de tanto trabalho no campo ou na costura, mas de muito bom humor. São dores lancinantes de longa duração. Foi ali que aprendi, entre milhares de coisas, a importância de se valorizar cada grão de arroz. Aprendi pela amizade que tive com aquela gente tão boa. Atrás de cada grão existe um esforço infinito de trabalhadores anônimos com dores e falta de cuidados. Olhar para eles nos faz descobrir um mundo indescritível. Lá encontrei pessoas ímpares. A Rosa, por exemplo, uma agricultora orgânica, ganhou um prêmio internacional como “melhor agricultora do mundo” por proporcionar, através do seu trabalho, a retomada do ecossistema sustentável. Ela não se lembra de mim, mas eu levei um grupo de alunos ao seu sítio anos atrás. Ali aprendi a beber água do rio numa folha de bananeira dobrada, experimentei um dos melhores doces de leite da minha vida e trouxe para casa os ovos de galinha caipira, a alface orgânica e as bolachas assadas em forno a lenha.

Naquela cidade conheci um homem que há anos havia caído de um andaime em Camboriú, de uma altura equivalente a onze andares. Sentia dores horríveis e eternas. Um pouco fui útil para amenizar essa situação. Pena que fui tão pequena, fiz tão pouco...

E então eu descia do ônibus e ia lentamente caminhando até a casa dos meus pacientes. Logo na entrada da cidade, uma casa num terreno alto, com uma pequena pastagem e havia ali uma vaca lindíssima, macia e calma. Eu nunca vi uma vaca mais tranqüila, toda zen, deitada de barriga no chão, olhando o movimento que não existia. De repente eu não a vi mais. Fiquei até com medo de perguntar do seu paradeiro.

Eu ia e voltava de ônibus. Certa feita, estava eu parada no ponto e presenciei uma cena inusitada. Uma vaca andando de Fiat Uno. Explico. O Fiat Uno era um táxi. O mesmo puxava um compartimento de madeira, fechado, e a vaca ia ali dentro, deitada... e também olhando o movimento que não existia. Mesmo porque na hora do rush em Paulo Lopes passam apenas algumas motos, um carro perdido, algumas bicicletas, algum cavalo e o ônibus da Paulotur que me traria de volta a Florianópolis.

Eu tomava o ônibus e o banco à espera dos passageiros ficava encostado numa casa. Numa das tardes de terça-feira, uma moça ia saindo dessa casa, se despedindo da moradora, a sua avó e a mesma emendou a conversa comigo, dizendo que a moça que ia saindo era sua neta que havia pendurado as cortinas na sala. E pediu para que eu entrasse para ver as cortinas. Agradeci, me desculpei, alegando que logo o ônibus passaria e que, da próxima vez, eu entraria para dar o meu parecer. Achei engraçadíssimo! A senhorinha, muito simpática, não me conhecia e pediu para que eu entrasse na sua casa para dar uma opinião! Depois fiquei sabendo: era a dona Cotinha.

Desculpe, dona Cotinha, não foi por mal que eu não entrei na sua casa. Deixa estar, que, da próxima vez, eu não saio da cidade sem ver a sua cortina. Não saio mesmo! Tenho dito!

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 04/06/2010
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