Bolo de barro
Quando se é criança num bairro central de São Paulo, se vive num apartamento de fundo, sem espaço nem amigas e se vai para o interior passar umas férias é conhecer o mais confortável pedaço do céu. Aquele céu bem azulzinho, que dá pra, de cima, olhar a terra e enxergar todas as coisas numa pequenez inesquecível e aparentemente inexplicável.
As férias para qualquer criança são esperadas, provavelmente desde o primeiro dia de aulas. E íamos ao norte do Paraná, numa localidade chamada Araruva. Na década de 70 resolveram mudar o nome da cidade para Marilândia do Sul e eu achei isso um absurdo. Mudar o nome da cidade que fazia parte do meu coração! Foi lá que comecei e entrar em contato com o cheiro da liberdade, o estar sem medo de qualquer coisa, poder correr, andar na praça da igreja, brincar de esconde-esconde. Não se ouvia falar em tiroteio, cuidado ao abrir a porta, não dar conversa para estranhos e coisa e tal. A cidade era ínfima, mas o ar era de poesia e inundava a minha alma. Existia a farmácia dos meus três tios e as casas eram nas ruas paralelas. Era a felicidade poder transitar por ali, de uma casa para outra. No quintal de uma das casas existiam árvores, caminho definido em terra batida, o galinheiro... mas eu me pelava de medo das galinhas. Eu olhava para elas. Mesmo na minha infância, eu tentava entender as coisas do mundo. Tentava compreender o universo galináceo. Eu achava tão estranha a existência de um pato ali no meio, mas tudo parecia tranqüilo, sem rivalidades. Cantavam, tomavam sol, comiam, dormiam e pronto. Um dia iriam resignadamente para a panela.
Numa das tardes de sol minha prima e eu resolvemos pegar um bocado daquela terra avermelhada, cheia de vida, que os italianos se encantaram logo no primeiro contato e exclamavam: “terra rossa”! Os brasileiros resolveram traduzir por “terra roxa” e essa história me encantava. E então nos pousemos a fazer um bolo. Bolo de barro feito no capricho, arredondado e enfeitado com flores de pessegueiro. Foi o bolo mais lindo de todos os meus tempos, de todos os meus sonhos. Sentadas no chão, minha prima e eu, através do bolo de barro, estávamos desenhando um tempo, produzindo uma fina arte, fazendo a mais requintada iguaria da história. No sonho e na ilusão de inventar e voar pelo mundo sem fim. Com todo o cuidado eu ia enfeitando o bolo. Flores brancas, folhas de um verde macio e brilhoso iam definindo as bordas. E ele não poderia quebrar. Deveria ficar definido, durinho, pronto para o mais exigente paladar. Nenhuma culinarista do mundo faria um bolo daquele! Lentamente elaborado, com uma atenção e dedicação especialíssimas. O bolo que serviu para um exercício de criatividade e paciência com as coisas do universo. Para sempre.