Na livraria – você é a escritora?

Sempre gostei muito de passear. Antes, de contemplar. Gostava de olhar as pessoas, ouvir as conversas no ônibus ou no metrô, perceber como as pessoas se compreendem – ou não. Olhar com encanto as coisas da natureza, os detalhes, especialmente em tempos de primavera. Em se tratando de primavera, impossível se esquecer dos suspiros agonizantes da ditadura. Quantas conversas no ônibus! Em 1982, no ano do meu casamento, ocorreram as primeiras eleições municipais. Eleições diretas finalmente! O sonho de qualquer cidadão minimamente consciente era exercitar a capacidade de escolha, dar um “basta” definitivo ao autoritarismo, à negação do oxigênio que os militares linha dura nos impuseram. Aliás, eles pensaram que poderiam eternamente nos roubar o direito à expressão, à clareza e à beleza das buscas. Erraram feio! E as conversas fluíam soltas. Numa das vezes o ônibus inteiro estava em polvorosa. Tinha janista de carteirinha, achando a vassoura o máximo, outros tantos defendendo o Fernando Henrique, outros, como eu, defendendo a vitória do Eduardo Suplicy. E a vida rolava com muita esperança e certeza de que o país seria melhor sem a petulante onipresença daqueles que se achavam donos das nossas vidas e dos nossos sonhos.

E então eu sempre dava um jeito de passear, como faço ainda hoje.

E sempre gostei de inventar. Certo dia resolvi pintar um quadro abstrato, mas com uma fundamentação religiosa, cujos centros de cada lado da tela tinham um espaço em aberto. Olhando-se com firmeza entendia-se ali a cruz como sendo um caminho de liberdade e de eternidade. Eu me achei o máximo, uma nova expressão no mundo das artes. Quem sabe um dia eu teria reconhecimento da crítica... mas tempos depois a tela foi parar no lixo.

E num desses dias de busca lá estava eu no centro da cidade e entrei numa livraria. Muito moça, de calça jeans, uma blusa qualquer, tênis que precisava de uma boa lavada, tomando sorvete de casquinha, eu perguntei como se fazia para se publicar um livro. A atendente perguntou: “mas quem é o escritor?” Eu respondi: “Eu”, mergulhando os dentes no sorvete de creme inocentemente e sem a menor malícia. Era eu, oras!

Recebi de volta um incrédulo “você?” e um olhar grave de cima a baixo.

Respondi um simples e convicto “hã hã”!

Confesso que nunca vi uma expressão tão atordoada, pálida e incrédula. Era como se dissesse “o que vem fazer aqui uma menininha metida a qualquer coisa só prá encher meus pacová? Ora, vá catar coquinhos!”

Fiquei sem ação, me sentindo inútil, pequena e que o mundo não era bem para mim. Era para os outros. Cheguei em casa e relatei o episódio à minha avó. Eu nunca tinha ouvido uma gargalhada tão sonora: “tomando sorvete, com essa roupa e ainda disse que era escritora? Kkkkk”.

Eu fiquei pensando “será que escritor não pode tomar sorvete? Devia ser bem chata a vida de escritor...

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 21/05/2010
Reeditado em 22/05/2010
Código do texto: T2271058