Duas histórias
                              nordestinas

               1. A primeira. Esta história aconteceu em Campina Grande, Estado da Paraíba, e já é conhecida de muita gente. Mas ainda há quem a ignore. Por isso, não procedo mal em recontá-la; levando  em conta, principalmente, o belíssimo poema que a enriquece.
               
2.  Numa nordestina noite de luar, um delegado de polícia caiu na asneira de apreender um violão boêmio. Sacou-o, sem dó nem piedade, dos braços de um seresteiro, condenando o instrumento a permanecer calado, num canto de sua delegacia.
               
3. O advogado, político, poeta e repentista paraibano Ronaldo Cunha Lima foi chamado para soltar o violão, que só sofrera este tipo de constrangimento até o início do século 20. Era um instrumento malvisto pela burguesia dominante.
               
4.Coube ao trovador maranhense Catulo da Paixã o Cearense, todo mundo sabe disso, acabar com o preconceito, levando seu violão ao palacete carioca do Doutor Ruy Barbosa, e, em 1908, aos salões iluminados e aristocráticos do Instituto Nacional de Música.
               
5. Até Catulo, quem saísse pelas madrugadas, com um violão a tiracolo fazendo serestas, era chamado de vagabundo. (Uma das minhas frustrações é não ter aprendido a tocar violão; ainda que fosse no começo do século passado).
               
6. Ronaldo Cunha Lima recebeu a procuração, e, em versos primorosos, requereu o que ele chamou de "Habeas-pinho". O poema é longo. Não o transcreverei, aqui, na íntegra. Mas peço ao leitor que, por favor, procure conhecê-lo no seu inteiro teor. 
               
7. Versejou o  advogado e poeta Cunha Lima, na sua irretocável petição:
     "O instrumento do crime que se arrola,
      neste processo de contravenção,
     não é faca, revolver nem pistola
     é, simplesmente, doutor, um violão.
           Um violão, doutor, que na verdade,
           Não matou nem feriu um cidadão.
           Feriu, sim, a sensibilidade
          De quem o ouviu na solidão.
     .................................
     Mande soltá-lo pelo amor da noite
     Que se sente vazia em suas horas,
     P´ra que volte a sentir o terno açoite
    De suas cordas leves e sonoras.
          Libere o violão, Dr. Juiz,
         Em nome da Justiça e do Direito,
        É crime, porventura, o infeliz
        Cantar as mágoas que lhe enche o peito?"
     O magistrado, sem pestanejar, também em versos, assim deferiu o pedido:
   "Para que não carregue
    remorso no coração,
    determino que se entregue
    ao seu dono o violão."
      E o violão voltou para o peito do seresteiro.
          
8. A segunda história, me contaram, faz algum  tempo, teria acontecido em Sergipe. Na cidade de Aracaju, os vates populares Araripe Junior e John Kennedy disputavam a autoria dos versos de um poema intitulado No banco dos réus.
- São meus - bradava Araripe
- Não, fui eu quem os fiz - respondia o poeta Kennedy.
          
9. O litígio envolvendo os dois vates passou a ser assusnto obrigatório nas feiras, botecos, barbearias e esquinas da capital sergipana.
Como os dois repentistas não chegavam a um acordo, o caso foi parar na Justiça. A juíza incumbida de dirimir a dúvida, deu os versos ao poeta Araripe Junior. "Após a conciliação - disse a meritíssima -, até pedi que os dois declamassem alguns versos, e fui atendida."
          
10. Achei correto o veredicto da ilustre magistrada. O vate perdedor pode ser ( e certamente o é) um excelente versejador; mas Kennedy não é nome de cantador do Nordeste.
          
11. São admiráveis esses "fuxicos" entre poetas, repentistas, violeiros e cordelistas.  Se as brigas fossem sempre como as que travam os poetas, haveria menos sangue... Como isso não é possível, vamos continuar nos divertindo com estas histórias ou estórias que só os nordestinos, com muita graça, sabem criar e contar.

 

 
 

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 24/08/2006
Reeditado em 27/09/2019
Código do texto: T224382
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