Muito obrigada professora

É interessante refletir sobre quantas lembranças os objetos podem nos trazer. Arrumando a gaveta do armário do pequeno quarto que me recebe para as todas as atividades de leitura e escrita para as quais tenho tempo, encontrei, escondida, amarelada e já sem brilho, uma pequena foto da minha época de colégio.

O uniforme azul e branco, as meias brancas, o cabelo alinhado em um belo rabo de cavalo e o sorriso sem vontade. Essas fotos feitas anualmente pura e simplesmente para satisfazer o ego dos pais orgulhosos me faziam perder a paciência Gostava de estudar (aquilo que me interessava) e até de alguns professores, mas tirar fotos... Era como ficha policial, obrigação de ser rotulada e se eu já era estudante, não havia a necessidade de mostrar isso a ninguém.

Neste momento afastei a mesa, me acomodei melhor na cadeira antiga e me vi na foto. Justamente neste dia em que fui fotografada, dia de prova de recuperação de Literatura (todo mundo sabe o que é tirar nota quatro em literatura no ultimo bimestre do oitavo ano, não foi privilégio meu), a professora entrou as pressas, arrumando os óculos, apagando ligeiramente o quadro e lançando sobre a turma aquele último e enigmático olhar do ano. Aquele que não se consegue decifrar até se chegar à incógnita da nota lançada.

Ela chegava e entregava as provas viradas ao contrário, para que aguardássemos suas orientações antes de começar. Não tinha nenhuma aparência além da de mulher simples e muito sofrida, que usava os mesmos óculos quebrados dos dois anos anteriores. O sinal tocou. Tocou o mais estridente que pode, acordando-nos para a última e fulcral tarefa a ser realizada aquele ano. Ao olhar a primeira questão distraidamente me deparei com um vocábulo novo. ( será que foram as duas aulas que faltei?) Assim timidamente chamei a professora. Professora... O que é mito?

Sorrindo e andando silenciosamente ela se aproximou. Mito, menina, são narrativas, histórias contadas por grupos, e que são passadas de geração a geração cridas como verdadeiras. Ou, pode ser simplesmente, uma idéia falsa, torcedora da realidade. Ative-me à última definição, parei, olhei bem para a ela e disse Professora... Percebo que, no geral, os professores ganham muito pouco e são pouco reconhecidos pelo que fazem. Isso quer dizer que é mito um professor bem sucedido não é?

Ela abaixou próximo à cadeira onde eu estava sentada e disse olhando para mim: Não menina! Somos muito bem sucedidos. Mais do que você pensa. Realização e sucesso é ver cada um de vocês voltarem à escola com o correr dos anos, realizados e tirando proveito do que deixamos. Quando vocês retornam ao colégio ou quando mandam noticias de suas carreiras, seus mestrados, suas famílias suas conquistas, somos as pessoas mais bem sucedidas e felizes, tendo contribuído para a melhora da realidade de cada um de vocês. Isto não é mito. O brilho que o aprendizado ressalta no olhar de vocês, não é algo em que se acredita. É algo que se vê claramente todos os dias.

Desta vez, fui eu a sorrir. A força daquela mulher que enfrentava toda a dificuldade para sair do morro onde morava e chegar ao asfalto onde a escola estava situada, e dar o seu melhor a despeito da falta de apoio que recebia, me desconcertou. Enquanto ela se afastava eu iniciava a prova. Sua resposta tão convicta permeou as linhas do papel e os pensamentos perdidos. Seu exemplo de vida também.

Não me lembro mais da nota que tirei, mas as suas palavras ficaram uma a uma na memória. Intactas como aquela foto. Intactas como a vontade e a dedicação daquela professora. Ela cresceu, fora inclusa, e agora ajudava também a incluir. Aprendi muito bem. Nossa realidade também é a realidade do outro. O mito do nosso sucesso também é a participação na construção do sucesso de alguém. Isso é melhor que conhecer um novo vocábulo.

A foto volta à gaveta. As atividades retomadas, lição aprendida. Muito obrigada professora.