NA CAMA COM OBERY RODRIGUES

 

               Nunca tive dificuldade em dormir. Sempre fui boa de cama: deito e durmo. Mas, outro dia passei a noite inteira em claro. Confesso que foi por escolha. Não foi por insônia. Por isso, aproveitei cada segundo da noite não dormida. Lembro bem que, na adolescência, eu fazia muito isso – e fazia bem. Passava a noite em claro lendo a literatura proibida para a minha idade. Para que isso pudesse acontecer, eu esperava a ‘casa adormecer’, depois acendia uma vela e, por fim, ia ler. Um dia quase morri queimada nas labaredas de minha transgressão. Mas, esta é outra história. 


               Minha última aventura notívaga foi com Obery Rodrigues. Passei a noite com ele e, fascinada com cada movimento de sua mente brilhante, criativa e mestra na arte de contar suas memórias, não consegui separar-me dele. Foi amor a primeira vista, digo, lida. 


               Por indicação de Raimundo Antonio, o que já dispensa comentários, comecei a maratona em busca de Obery, encontrando-o numa “tarde gril”. As mesmas nuvens que ameaçavam cair em forma de chuva naquela tarde quente, também deixavam cinzento o céu de meus sonhos, mas eu estava disposta a vencer a tempestade. E, para isso, procurei a melhor companhia: a leitura. Depois de atravessar a cidade inteira cheguei à livraria e de lá saí “voando” para o consultório – onde eu tinha hora marcada – antes que a chuva caísse sobre a cidade. 


               Enquanto não era chamada comecei a deliciar-me com “as abençoadas chuvas de Mossoró”, que me levaram de volta aos meus banhos de chuva nos campos da fazenda Várzea da Cal, em Almino-Afonso, no sítio Ipu, nas ruas de minha amada Caraúbas ou no meu quintal, aqui em Mossoró.  


               Saí da chuva e peguei “o cavalo velhoe, dessa vez, me vi disputando, com meu irmão, o direito de banhar o alazão de estimação do meu querido pai. Ele jamais abandonou seu companheiro de cavalgadas. Mesmo quando ficou velhinho era tratado com todo carinho. Papai era um sábio. Mamãe dizia que ele cuidava melhor dos ‘bichos’ que das pessoas. Exagero de mamãe? Não sei, sei que ele sempre me tratou muito bem. Preciso pensar sobre isso! Mas não agora, agora minha cabeça está repleta de lembranças acordadas por Obery. Acho que vou colocar um lenço/chapéu para protegê-las, preciso deixá-las presa até conseguir transformá-las em palavras. Não tenho a pretensão de fazê-lo com a mesma beleza e talento que o mestre das “Crônicas Anacrônicas”, mas, tentar não é crime. 


               De repente, ouvi meu nome sendo chamado. – Senhora?  Pelo tom de voz ela já havia me chamado outras vezes. Levantei-me e fui para a minha consulta. Queria sair dali e mergulhar naquela onda de recordações que a leitura estava me proporcionando. Consegui sair cedo. Chegando em casa fui direto para cama. Ler deitada é um hábito antigo. A leitura desce suave e facilita a compreensão. Sempre que leio alguma coisa que não fica muito clara, penso logo: preciso ler deitada.  


               Enquanto lia “Os Sinos da Catedral”, a minha mente voou até a Igreja matriz de minha Caraúbas. Ouvi o repicar dos sinos de seu Altino. Nunca ouvi nada igual em outro lugar, nem quando visitei os belos e sagrados templos de MG. Seu Altino era mestre na arte de tocar os sinos. Eu já conseguia identificar, através do som, se anunciava a morte de homem, mulher ou criança, se expressavam alegria ou, simplesmente, convidavam para missa. Dois momentos ficaram marcados, para sempre em minha memória. O dia em que ele anunciou a morte do Papa. O som que saí daqueles sinos parecia carregar as dores, nunca expostas, da Sagrada Igreja. O outro foi quando Tancredo Neves morreu. Acordei com o lamento dos sinos. Sem querer, chorei, não apenas por ele, mas por aquele pranto, em forma de som, que envolvia toda cidade. 


               Só lamento uma coisa: quando eu fizer minha última viagem não terei mais seu Altino para anunciar minha partida, haja vista que ele não cumpriu com sua promessa de não partir antes de mim. Hoje os sons tocados pelo sino da matriz de São Sebastião parecem iguais ou, quem sabe, eu tenha perdido a sensibilidade para compreender suas badaladas. 


               Fiquei presa ao olhar de Obery diante do Espelho” – esse amigo indiscreto, verdadeiro e nada sutil. Recordei que, na minha infância, tive uma péssima relação com o distinto objeto. Ele era verdadeiro demais e me mostrava uma imagem que eu não queria ver. Como aceitar aquela figura sem graça, de boca enorme, cabelos encaracolados e olhos que pareciam não caber no rosto? Desisti dos espelhos. Melhor os livros. Eles me falavam das coisas que eu sabia existir dentro de mim, mas isto, o espelho não mostrava. 


               Fui resgatada do espelho pela “Sonoridade dos Templos”. Vi-me diante de seu Luizinho. O piano parecia uma extensão de seu corpo, em suas mãos ele ‘falava’ a linguagem dos anjos. As notas saíam como sons nascidos da alma em sintonia com a orquestra celestial. Hoje não há mais o piano. Nem seu Luizinho. Não há mais a sonoridade de minha adolescência. Seu filho, excelente músico, de vez em quando toca teclado nas missas, mas apesar do seu talento, é diferente. 


               Outro som inesquecível, de minha matriz, é a voz de George, filho de seu Altino – sua voz tem algo de divino. Quando ele cantava, eu me sentia mais perto de Deus. As missas cantadas por ele pareciam mais sagradas. Os Hinos de Louvores pareciam nos colocar diante do Pai. Vieram outros depois dele. Bons tanto quanto, talvez melhores, mas a voz de George parecia ter um canal direto com os céus.   


               Fui seguindo com minha leitura – e lembranças – e quando o dia amanheceu eu estava repleta de agradecimento a Raimundo Antonio, pela indicação, e a Obery, pela noite maravilhosa que ele me proporcionara. Descobri afinidades com o autor, como o gosto pelas cartas manuscritas. Fiquei tentada a pegar lápis e papel e escrever uma carta para ele, mas, não consegui largar o livro. 


               Um dia ainda escrevo uma carta para Obery. E ficarei imaginando quando ele ligar para portaria e for avisado: tem carta para o senhor, e ele irá ao meu encontro, assim como fiz em busca de seu livro. Será que ele responderá? Abandonei a idéia, melhor adiei e continuei “A Leitura”. Encantando-me com o Crepúsculo”, a “Saudade”, a idéia do “Dia do Irmão”, por que não? Lendo Obery encontrei-me comigo mesma. E, quando o sol me convidou a sair da cama, já não havia nuvens, nem lá fora, nem no céu dos meus sonhos.  Um novo sonho brotava em minha alma: aprender a escrever assim, como se estivesse diante do leitor, conversando. 


               Crônicas Anacrônicas é um livro que, ao primeiro olhar, pode parecer “bairrista”. Lembranças de uma cidade. Mas essa impressão se desfaz logo na primeira crônica. A escrita de Obery Rodrigues é universal. Quando ele fala de suas lembranças nos conta histórias ricas em detalhes, informações, emoção e vida. A escrita de Obery é envolvente. Suave. Uma conversa agradável com nossas próprias lembranças.


               Li Obery com a voracidade de uma alma que se reconhece nas recordações que, mesmo não sendo suas, se faz passagem para uma viagem no tempo, um passeio por nossas lembranças, registros tatuados em nossa memória pelo desejo de transformar em experiência tudo que vivemos. Ou, quem sabe, um livro de memórias.

               Alguém pode dizer que isso é “idiossincrasia, eu prefiro dizer que é emoção, sintonia. Prazer diante de uma boa leitura.

               Obrigada Mestre.





N.A: Os termos em destaques são títulos das crônicas de Obery.





Ângela M Rodrigues O P Gurgel
Enviado por Ângela M Rodrigues O P Gurgel em 13/02/2010
Reeditado em 13/02/2010
Código do texto: T2085297
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