Conte-me um conto (EC)

Branca não sabe explicar exatamente quando as coisas começaram a sair dos eixos. Como a maior parte das crises, aquela também foi insidiosa, multifatorial.

Primeiro foram os anões. Com Atchim em quarentena por causa da gripe suína, Feliz perdeu seu meu melhor amigo e entrou em depressão. Dengoso foi responsabilizado pelos episódios de dengue hemorrágica e banido do reino sem dó nem piedade, e foi a vez de Soneca perder o sono de tal forma que nem diazepam dava jeito. As muitas entrevistas mal humoradas de Dunga sobre a seleção deixaram no ar a dúvida: seria Dunga o Zangado? E Mestre, cansado dos baixos salários e da falta estrutura das escolas, abandonou tudo e foi fazer artesanato.

Tinha o pai idoso, com Alzheimer, de quem Branca cuidava há anos. E tinha o maldito espelho mágico, herança da madrasta, honesto por demais, que teimava em apontar, dia a dia, as rugas e imperfeições de Branca, mesmo sem ser perguntado. Como se não bastasse, os empregados do castelo estavam em greve há meses, exigindo 13o. salário, descanso remunerado, FGTS... As mãozinhas da princesa andavam grossas como lixa.

O Príncipe já não era o mesmo há muito tempo. Mas recusava terminantemente a ajuda dos urologistas do reino, teimoso como uma mula. Com as amigas, ela não podia contar: Rapunzel, com a menopausa, perdeu muito cabelo e decidiu isolar-se, definitivamente, na torre. Cinderela era monocórdica: só falava sobre a própria vida vazia, após o casamento dos filhos. E Bela, depois da tumultuada separação da Fera, passava a maior parte do tempo viajando pelo mundo, ansiosa por recuperar o tempo perdido.

Chamavam Branca de senhora: o que, no início, pareceu uma demonstração de respeito, virou padrão, até que ela caiu na real: tinha mesmo envelhecido, o tempo havia passado, só as flores voltam a brotar em cada primavera. Resolveu cuidar de si, que esse negócio de princesa boazinha é conversa para criança dormir. Deixou os problemas de lado, o que não tem remédio remediado está. Fez algumas resoluções pessoais de mudança e foi à luta.

Vida de conto de fadas não cai do céu de mão beijada. Fada vem do latim fatum, fado, destino. E destino é a gente quem faz. Ser feliz para sempre é utopia, mas enquanto houver esperança, haverá garra. E que graça tem a vida sem arregaçar as mangas?

Este texto faz parte do Exercício Criativo - Conte-me um Conto.

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Maria Paula Alvim
Enviado por Maria Paula Alvim em 08/01/2010
Reeditado em 11/01/2010
Código do texto: T2017681
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