O DIA DO PREDADOR

O DIA DO PREDADOR

Ainda ouço, lá fora, o pranto doído. Não é de uma criança, nem de pessoa alguma. É da mamãe sabiá que perdeu os filhotes. Como as mamães humanas, elas também têm amor pelos filhos. São pássaros; são bichos, mas são natureza. A natureza traz em seu bojo uma série de preceitos e códigos a serem observados, tanto pelo homem, quanto pelos seus habitantes mais singelos e naturais. Quando o Criador resolveu povoar a terra, dotou o homem de espírito inteligente. Por essa inteligência ordenou-lhe que gerasse o progresso e, da ampliação cada vez maior de suas atividades inventivas, ele tirasse o sustento para a sua sobrevivência. Os demais seres vivos que, pelo menos aparentemente, não foram dotados de alma e, por isso, (em termos) falta-lhes a capacidade inventiva, cada espécie a seu modo, procura alimentar-se com os próprios elementos da natureza. Sempre houve e sempre haverá e será imposta, a lei do mais forte. Entre os humanos, não querendo generalizar, onde deveria predominar a lei da capacidade intelectual, porém, como é mais fácil, permanece em prática, em muitas ocasiões, a primitiva versão da lei do instinto. Mas deixemos de lado esses detalhes sórdidos. Estamos falando da mamãe sabiá e seus filhotinhos e do gatinho preto, se bem que na Amazônia há também gatos de todas as cores, de duas pernas, que capturam animaizinhos e os vendem para os gringos.

Como, em todo o reino animal, tanto os carnívoros como os onívoros, alimentam-se de outros animais e o mais fraco e indefeso sempre leva a pior. Vai daí que há o gatinho preto, ainda adolescente, que aqui em casa é o mimadinho da família e bichinho de estimação de grandes e pequenos. Ele, agora, está aprendendo a desenvolver seu instinto natural: a caça. Todo o animal tem que exercitar-se na arte da sobrevivência. O Criador dispôs de tal forma sua criação que a ecologia só está em equilíbrio quando cada bicho cumpre com sua função. Aos bichos domésticos não seria necessário desenvolver certos instintos, porquanto são alimentados regularmente e, sendo carnívoros, são intuídos a comer comida caseira e carne. Mas, sendo predadores natos, não abdicam desse seu dom. Nada a estranhar, mesmo porque, se não o fizessem, estariam fora dos seus padrões. Assim como as aves alimentam-se de insetos, minhocas ou peixes, os guarachains e as jaguatiricas devoram galinhas, outras aves e pequenos roedores; os felinos maiores caçam antílopes, veados ou qualquer outro petisco que lhes apeteça, não faltando os “limpa-trilhos”, que se alimentam das sobras, deixando o terreno limpo de carniças etc.

Mas, como eu dizia, a nossa heroína é a dona sabiá. Certamente na sala de aula do mundo, por óbvio que lhes parecesse, os lentes dessa incumbência não ensinaram aos seus prosélitos a dureza que é ser uma ave estimada e louvada por seu melodioso canto, cuja formação foi elevada à casta dos regentes das orquestras da floresta pelos poetas. Na lógica dos predadores tornam-se iguais ou mais apetitosos que um simplório pardal. Este “óbvio” é o bárbaro destino de, feito o ninho caprichado, nele pôr três ovinhos maravilhosamente fecundados, ver nascer – vorazes – três sabiazinhos famintos e, não chão, debaixo da árvore, lambendo os beiços salivados pelo apetite, já estar de plantão algum predador.

Arguimo-nos o direito de desmerecer atitudes impostas pelo Criador, através da natureza, aos animais sem alma que, pela inteligência do instinto, devoram presas indefesas que admiramos pelo seu canto mavioso ou por qualquer outra prenda que lhes atribuímos. Mas eles, os bichos, não sabem da existência, nem de códigos éticos, nem de várias espécies da fauna brasileira em extinção... que o próprio homem, mesmo ciente disso, continua depredando.

A eles, os sabiás infantes, também vai ser ensinado, para pôr em prática depois de se desgarrarem dos pais, a maneira de encontrarem suas frutas preferidas, as minhocas e todos os quitutes que necessitam para a sobrevivência. Pelo espaço de três ou quatro semanas essa tarefa cabe aos pais, que, com muito carinho, amor e solicitude, gastam seu tempo indo e vindo com algo no bico para lhes oferecer, limpando os cagadinhos quando defecam no ninho e defendendo, a seu modo, sua ninhada de filhotes. Aquela geringoncinha, peladinha, vermelhinha, sem outro atrativo senão o de ser um filhote de passarinho, quando menos se espera está coberta de penas e ensaiando seu primeiro vôo. E é aí que acontece o “crime”. Nesse vôo inaugural de suas asas, por inaudito, cansa o pássaro moleque e ele se obriga a pousar num ramo baixo ou no próprio solo, para descansar... e seu descanso prolonga-se até o fim dos evos. O predador dá o bote certeiro e o devora em segundos.

Foi isso que aconteceu com a ninhada da mamãe sabiá. E ela, na impotência de impor-se ao gatinho preto malvado, devorador de passarinhos recém saídos das fraldas do ninho, pulava nos galhos lá e cá, em roucos berros de raiva, tentando desestimular o predador de tal barbárie. Mas não obteve êxito!

Quando o último de seus filhos foi abatido pelo predador, a dor depredou-lhe o dom de cantar. Só gemidos, que duraram os três dias da sua procura, em idas e vindas aos locais dos crimes. Foram verdadeiros choros, simulados por pios tristes e doídos, só faltando as lágrimas para o completo quadro de desolação e de morte.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 06/01/2010
Reeditado em 06/01/2010
Código do texto: T2013740
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