A PEDAGOGIA DA CONTRADIÇÃO

Estamos no início do ano letivo de 1993. A direção da Escola Cenecista de Paripe me ofereceu a 8a série, do turno matutino. Era uma turma de alunos repetentes, de baixo rendimento escolar e de faixa etária elevada para a série escolar. Uma classe de educandos mal orientados ou como alguns diziam: “alunos especiais”, e outros “alunos problemáticos”.

Apresentei-me à turma e fiz um “teste de sondagem”. Esse teste tinha a finalidade de conhecer melhor o perfil da classe, suas preferências, suas dificuldades, seus relacionamentos sociais, seus ideais, suas habilidades e aptidões. A “sondagem” me mostrou o seguinte diagnóstico: uma turma heterogênea no sentido de relacionamentos sociais entre eles, isto é, não havia interação na classe, como se diz na linguagem popular: “cada um por si e Deus por todos...” Quanto ao ideal profissional, a maioria desejava ser polícia, “porque achava que não precisava de muito estudo”; outros, motoristas de ônibus, “porque achavam que não precisavam estudar”, e alguns, taxista, “porque não precisavam estudar e ganhariam muito dinheiro”. Dois terços da classe não tinham assistência paterna. O pai não vivia com a mãe; outros eram criados com a avó, com a tia ou com a mãe sem companheiro. Uma pequena minoria tinha dificuldade em escrever de modo compreensível. Escreviam com erros grotescos ortográficos, trocavam palavras, inadmissível para uma 8a série.

Na sala dos professores comecei a ler alguns textos feitos por alguns alunos dessa série e falei para o professor Jorge, da disciplina Educação Artística:

- Professor olhe este texto. Observe como os nossos alunos estão escrevendo. Veja a expressão que grifei: - “Pu favo mi ajude”. O que você me diz?

O Jovem professor, sempre de bom humor, bastante questionador em reuniões e de espírito otimista, sorrindo me respondeu:

- Professor! Esta expressão tem sentido. É força de retórica. Foi uma maneira que o aluno encontrou para nos pedir socorro a fim de se livrar do analfabetismo literário que infelizmente ainda é uma praga que assola este nosso país. Ele está dizendo que ainda está em tempo para aprender. Ele não tem culpa...

- Jorge de quem é a culpa?

- Não vamos dizer culpa. Vamos dizer, responsabilidade.

É de nossa responsabilidade tentarmos fazer o melhor para essas criaturas imaturas. Educar, na verdade, é um ato de amor...

- Professor Jorge, o que você me diz de certas “técnicas em educação”, ou seja, pedagogas, quando recomendam aos professores não usarem canetas de tinta de cores para mostrar os erros dos alunos nos trabalhos escritos e testes. No entanto, elas argumentam que conseqüentemente traumatizam o emocional dos alunos. Como também elas nos recomendam que quando fizermos uma correção, devemos indicar os erros com sutileza, com discrição, não usando em hipótese alguma caneta de tinta a cores, principalmente a vermelha.

A professora Luzia, de inglês, estava corrigindo naquele momento testes da sua disciplina, com caneta de cor. Brincando nos disse:

- Colegas! Será que essas “técnicas” têm preconceito de cor!!!? Sempre corrigi as atividades dos meus alunos com caneta de cor verde e vermelha e até hoje nenhum se queixou de trauma. Pelo contrário, quando, por acaso, deixo uma questão sem corrigir, eles me chamam atenção. “Professora por que a Senhora não corrigiu este quesito?!”

O professor Raimundo, de matemática, interferiu no diálogo dizendo:

- Errar é humano, aprender a reconhecer o erro com dignidade é uma virtude. Não aceitar o erro é ser despido de valor e inteligência. Enfim, felizes são aqueles que tem alguém para corrigir os seus erros com sabedoria e não deixá-los tornar crônicos.

O professor Antônio de Biologia opinou, dizendo-nos:

- Na escola pública em que estudei, os meus mestres

usavam caneta de tinta vermelha para mostrar os erros nas provas. Os alunos, com o passar do tempo, erravam cada vez menos. No entanto, não tenho conhecimento que algum colega tivesse ficado traumatizado por correção de provas ou trabalhos feitos à caneta de tinta vermelha. Não havia violência escolar, e sim admiração e respeito a todos os mestres. Estudávamos 180 dias letivos. Tínhamos um mês de férias no meio do ano e quase três no fim do ano, e todo mundo aprendia.

- É verdade, professor – disse a professora Luzia. Hoje temos 200 dias letivos. Escolas cheias de projetos educativos e professores com incontáveis cursos de práticas educativas. As escolas estão cheias de receitas educacionais prontas e o aluno continua não escrevendo bem, a violência campeia nos meios estudantis e os valores morais cada dia que se passa são menos despercebidos e a profissão de professor torna-se menos conceituada.

- Concordo plenamente,professora Luzia, com a sua colocação – disse o professor Antônio.

Peguei um trabalho escrito de geografia urbana que havia passado para a classe e falei para o professor de Educação Artística:

- Professor Jorge, você é uma pessoa bem humorada, tem argumento otimista para quase todas as perguntas. Observe como o aluno escreveu: “A violência nu Brasil é um probrema de uma gravidez muito séria”. Para mim não tem sentido esta expressão. E para você?

- Meu caro colega. Esta frase me parece que tem um sentido amplo. Vamos analisá-la? Pois bem, a palavra “gravidez” e “probrema” “nu” Brasil, tem haver com camisinha. Você já pensou se todos os brasileiros se conscientizassem em usar camisinha! Nenhuma mulher engravidaria, acabaria com a violência institucionalizada no Brasil. E a palavra “probrema” escrita com “r” em vez de “l” é força de retórica; significa problemas sociais com raízes históricas e de responsabilidade exclusiva de políticas públicas para erradicar o analfabetismo literário, político, social, combater a impunidade e a má distribuição de renda.

- É colega... Muito obrigado... Foi divertido bater um papo contigo. Você vai longe com suas análises. Não é à toa que você é Artista Plástico. Licença professor, pois estou indo a uma reunião de Coordenação.

O Conselho de Classe da turma reuniu-se com a Coordenadora e a Orientadora Pedagógica. Nessa reunião a professora de inglês Luzia, argumentou:

- Logo no início do ano letivo, quando assumi as aulas, fiz um teste de sondagem com a turma. No teste de sondagem, os alunos declararam que não gostavam de estudar. Só estavam na escola porque não encontravam nada para fazer no seu dia-a-dia.

Pedindo uma parte na fala da professora Luzia o professor de Ciências assim se pronunciou:

- Professora Luzia, o meu resultado de sondagem foi

semelhante ao seu. Cheguei à conclusão que temos uma classe de alunos desestimulados e com a auto-estima baixa.

Eles ainda não sabem por que estão ali. Estão ali contra a vontade deles. Parece-me que alguns não têm amor próprio. Não gostam de si mesmos. Não há interação na classe; uns ameaçam uns aos outros. Essa situação, para mim, minha cara colega, é um desafio. Eles olham para um futuro incerto. Ainda não têm um projeto de vida. Vivem desiludidos e desorientados. A nossa obrigação como educadores é fazer com que esses adolescentes se valorizem e elevem a sua auto-estima. As frustrações desses alunos nasceram dentro da própria escola. E, agora, a escola tem como responsabilidade integral corrigir as suas falhas, que foram transferidas para essas pobres almas revoltadas e imaturas.

O professor de Educação Religiosa, Ailton, tomando a palavra disse para a professora Luzia:

- Professora, a senhora tem toda razão. Concordo plenamente com sua fala. Acho que jamais devemos pensar em reprovar esses alunos. Reprová-los seria causar danos ao auto-estima e a autoconfiança, cuja vida ainda está em seu começo. Eles não têm culpa, pois tiveram um ensino de péssima qualidade. Esse ensino de péssima qualidade é que compromete a dignidade da nação brasileira.

O professor Adroaldo, da disciplina História, complementando a explanação do professor de Educação Religiosa disse:

- O ensino de péssima qualidade compromete a cidadania. O nosso país é democrata e, sendo um país democrata, temos de lutar por um ensino democrata global. O mesmo ensino para o pobre seja para o rico, sendo assim, o povo poderá escolher bem os nossos representantes. E o povo não sendo educado, será impossível o exercício da cidadania e teremos sempre “homens públicos” envolvidos em corrupção, tráfico de drogas, contrabando e diversas espécies de crimes e estabelecendo a cultura da impunidade.

O professor Eduardo, pedindo a palavra com a voz grave,

assim se expressou:

- Adroaldo, esses alunos são eleitores. Eles votam. Temos que educá-los. Se forem pessoas mal-educadas serão pressas fáceis dos políticos corruptos, demagogos e oportunistas, que a cada eleição assumem postos de mando político para lutar por seus próprios interesses. Precisamos acabar de uma vez por todas. Além do analfabetismo literário, também o analfabetismo político, caso contrário não seremos capazes de escolher bem os nossos representantes, entregando esses postos que são mais casos de polícia que de política.

A Coordenadora Pedagógica, professora Raimunda, dirigindo-se a todos:

- Foi bastante interessante o questionamento de vocês.

Para nós, a tarefa de “trabalhar” esses jovens é um desafio. Faz parte do peso da profissão que abraçamos, com responsabilidade, com honestidade profissional, com compromisso, com afeto pedagógico, com bom senso, com atitude crítica permanente e com equilíbrio. Frente ao desafio de atuar junto a esses educandos em situação de comportamentos desequilibrados e dificuldades de aprendizagem, não é uma tarefa tão fácil...

Dessa reunião surgiu um “Planejamento Pedagógico”. Onde fui escolhido para ser o coordenador da turma.

Na segunda quinzena em que eu estava assumindo a regência de classe na turma, avisei aos alunos que dentro de 15 a 20 dias faríamos uma eleição para escolher o líder e o vice-líder de classe. Expliquei à turma qual a finalidade do líder e do vice-líder; quais as suas atribuições; quais as qualidades de um bom líder de classe; como um bom líder deve agir. O necessário para realizarmos uma eleição de líder com êxito era importante que eles deveriam se conhecer melhor, por isso que estávamos dando esse prazo de 15 a 20 dias. Nessa mesma aula propus à turma para criarmos “Combinados” – Normas Éticas Básicas de Atitudes e Hábitos. Essas regras básicas seriam construídas com o consentimento de todos e escritas em uma cartolina que deveria ficar exposta na sala de aula. Expliquei o que era ética e a necessidade desse contrato de compromisso aprovado por todos. Esse contrato incluía compromissos acertados e votados pela classe, como: horário, freqüência, e regras básicas de comportamento em sala, o que foi feito com sucesso.

Nas aulas seguintes, comecei a trabalhar com os alunos em dupla, com o objetivo de dar início ao processo de interação na sala de aula, e o aluno que encontrasse dificuldade em responder as situações-problemas seria ajudado pelo colega que houvesse demonstrado facilidade de domínio do conteúdo da disciplina.

Com a aprovação da classe, criamos um mural na sala de aula, no qual eram relacionados os aniversariantes do mês e, na data o aniversariante recebia um cartão com mensagens de felicitações. Nesse dia cantávamos parabéns na sala de aula.

Em uma determinada aula, passei um exercício para os alunos fazerem em casa e na aula seguinte perguntei a classe:

- Vamos corrigir o exercício que passei para casa! Quem fez o exercício, favor levantar a mão!

Houve silêncio total na sala de aula. Foi uma decepção para mim. Somente uma aluna levantou a mão demonstrando timidez e disse:

- Eu fiz professor!

- Muito bem! Você está de parabéns! Alguém mais fez?

A classe toda permaneceu em completo silêncio. Ninguém mais se pronunciou.

- E você Tatiana, tentou fazer?

- Eu não fiz professor, porque no dia, eu estava com dor

de cabeça.

- E você Geraldo, por que não fez?

- Ah! professor! Eu tive que ir para o médico e não houve

tempo para fazer o dever.

- Pedro, por que você também não fez o exercício?

- Professor, eu estava com dor de dente. Minha mãe me

deu um comprimido e me fez dormir. Não deu para fazer.

- Bem pessoal. Já que vocês alegaram falta de tempo, por ter motivos que lhes impediram, independente da vontade de vocês, de fazer os seus deveres de casa, vamos fazer, aqui, em classe.

Um dos alunos desatencioso levantando a mão disse:

- Professor, o senhor não vai corrigir o exercício?

- Hugo, você não entendeu o que eu falei? Eu disse que

vamos fazer o exercício, aqui, em classe. Você não fez em casa. Como os demais, também, não fizeram. Como é que vamos corrigir um exercício que vocês não fizeram?!!

- Mas, Daiane fez!

- Hugo, Daiane foi à única que fez. O exercício dela eu vou corrigir, individualmente, no caderno dela.

Consegui que todos fizessem, individualmente, e depois corrigi na lousa.

No término de uma outra aula, passei, novamente outro exercício para a classe fazer em casa. Quando terminei de copiar o exercício na lousa, ouvi Hugo dizer:

- Eu só faço se for “pra ponto”!

Daniel repetiu a mesma ladainha:

- Eu também, só faço se der ponto. Se não der ponto, eu não faço. No mínimo dois pontinhos, né professor?

- Daniel, a classe fazendo todos os exercícios que eu passo para casa terá uma grande recompensa: a aprendizagem. Se todos fizerem, 3,0 (três) pontos para cada um, se a metade fizer, 1,5 (um ponto e meio) para cada um.

Na aula seguinte, perguntei à classe se tinha feito o exercício. Foi outra decepção para mim, pois esperava que pelo menos a metade da classe fizesse. Desta vez, não foi somente um aluno, foram dois. Só encontrei mais um aliado. As desculpas e os motivos foram idênticos ao das aulas anteriores.

Fiz com que toda a classe fizesse o exercício de casa na sala de aula.

Faltando uns 12 minutos para terminar o horário da aula escrevi na lousa: “Dever para Casa”. Em seguida, disse para a classe: - Vocês não precisam fazer este exercício em casa!

Uns três alunos, em coro, disseram:

- Se não é pra gente fazer, por que o senhor botou no quadro?!!

- Eu coloquei no quadro para ficar cheio de letras, para enfeitar a lousa, e quando a Supervisora ou o Diretor passar, pensar que estou trabalhando... Não é para vocês fazerem! Entenderam! Ou não entenderam!

Um dos alunos disse:

- Professor, eu vou copiar, mas não trouxe caneta de

casa. O senhor me empresta a sua caneta?

- Sim, Josias, eu te empresto.

Todos os alunos copiavam da lousa em seus cadernos o exercício em completo silêncio.

Na aula seguinte, quando terminei de fazer a chamada da classe, procurei demonstrar para os alunos que não me lembrava do dever de casa que havia feito na lousa, na última aula passada.

- Solicitei de imediato que formassem as equipes para trabalharmos em grupo. Foi quando diversos alunos com um tom de cobrança se pronunciaram:

- Professor, o senhor vai corrigir o exercício?

- Qual o exercício? Eu pedi para vocês fazerem algum

exercício? Eu pedi para vocês não fazerem!

Diversos alunos responderam:

- Foi o que o senhor botou no quadro na aula passada!

- Pedi para vocês não fazerem! E vocês fizeram! Vocês

têem espíritos de contradição! Qual foi o teimoso que fez o exercício? Por favor, levante a mão!

Para minha surpresa, a classe em peso levantou a mão. Tive a impressão que naquele momento havia operado um milagre. Parecia que estava sonhando. Não estava acreditando no que estava vendo. Muitos alunos pediam para ir a lousa responder as questões.

Para controlar a ansiedade deles, combinei fazermos um sorteio pelo “Diário de Classe”. Na página que eu abrisse e estivesse o nome do aluno, este seria o sorteado. E assim fui sorteando e chamando de um a um até respondermos todo o exercício.

Nas aulas futuras tornei a fazer o mesmo procedimento. Pedindo à turma para não fazer as tarefas de casa. Assim mesmo, alguns questionavam e eu lhes dizia que era para mostrar serviço à coordenação pedagógica e fazer jus ao meu salário de professor.

Passado um bimestre, a coordenadora professora Augusta me indagou com o semblante de curiosidade:

- Professor, há uma questão interessante que desejaria saber a respeito da 8a série. Os professores dessa série se queixam que os alunos não fazem as tarefas de casa, no entanto, com o senhor ocorre ao contrário. Na semana passada, apareceram dois alunos, aqui, na coordenação,queixando-se que o senhor pede a classe para não fazer os deveres de casa. E eles me disseram que fazem como toda a classe. Eu disse a eles que era brincadeira do senhor em pedir para eles não fazerem as tarefas de casa. E que eles continuassem fazendo. Agora professor eu lhe pergunto: por que com o senhor eles fazem as tarefas de casa e com os outros professores eles não fazem!! ?

- Professora, esses alunos são contraditórios, isto é, eles tem espírito de contradição, logo eu utilizo a “Pedagogia da Contradição”. A nossa pedagogia é bastante polêmica e contraditória... E às vezes distante da nossa realidade educacional!

- E quê pedagogia é esta, professor!!! ?

- Professora no início do ano letivo, nessa turma, não conseguia êxito apesar de haver aplicado diversas práticas pedagógicas. Então, o que fiz? Tudo aquilo que eu desejava e planejava que eles fizessem, pedia com veemência para eles não fazerem. E eles, contrariando as minhas recomendações, faziam e ainda fazem. É este o princípio da “Pedagogia da Contradição”. É uma pedagogia destituída de sofisticação. Ela exige apenas objetividade e simplicidade. Nela não há modismos pedagógicos ou receitas prontas pedagógicas de exigências burocráticas. Para ser aplicada não precisamos tomar emprestados somas de recursos no exterior para pormos em funcionamento. Ela é bem brasileira, brasileiríssima. E como funciona com facilidade e eficiência professora!!!...

Salvador-BA, 19/07/2006

Everaldo Cerqueira

EVERALDO CERQUEIRA
Enviado por EVERALDO CERQUEIRA em 19/07/2006
Reeditado em 30/07/2006
Código do texto: T197551