Papai Noel Existe? (humor negro) (EC)

Véspera de natal. Deolinda gritou, lá da sala:
- Tô indo... Acorda, homem! "Tu vai se" atrasar!!
E saiu, batendo a porta.
Esaú espreguiçou-se um pouco. Estava cansado, sonolento, acalorado. Aliás, o pior mesmo era o calor.
- Tinha que ser verão nessa droga desse país? - resmungou, entre dentes.
Levantou-se, lavou-se rapidamente, calçou os chinelos, vestiu uma bermuda e o manto sagrado, a camiseta rubro-negra meio surrada, mas indispensável ainda para comemorar o hexa. Engoliu o café frio deixado pela esposa e saiu, carregando a grande sacola com o maldito uniforme do trabalho.
No ônibus, confirmou a hora. Sim, estava atrasado. Atrasado, apertado e abafado, em pé ali no corredor, cercado por mais uma dúzia de sovacos fedorentos já àquela hora da manhã. Chegou ao shopping esbaforido e, ao tatear os bolsos à procura do crachá percebeu que este havia sumido, juntamente com a carteira, documentos e uns trocadinhos. Com muito custo, conseguiu convencer o segurança a lhe arrumar um crachá provisório e deixá-lo entrar.
- Filho da mãe! - pensou. - O sujeito me vê passar aqui todo santo dia há quase um mês, mas ainda faz esse auê por causa de um crachá! Pequena autoridade é fogo! Em casa não deve mandar nada.
Depois, pensou bem. Mandar em casa, há muito tempo ele também não mandava. Deolinda trabalhava de doméstica numa casa chique do Lago Sul, ganhava uma grana boa. Ele, desempregado, vivendo de biscates, não se atrevia a discutir as decisões da mulher. Ainda bem que os filhos estavam criados, cada um já tinha tomado seu rumo, para não ficarem vendo isso. Foi o patrão dela quem conseguiu esse bico para ele.
Chegou ao vestiário, retirou o uniforme da sacola e se vestiu. Olhou-se no espelho e... "ah! a barba!"
Foi procurá-la na sacola e nada. Tentou lembrar-se de onde poderia tê-la deixado. Lembrou-se da véspera, havia usado-a para brincar com a gurizada da vizinhança. Deve tê-la esquecido em casa. Correu na administração.
Debaixo do cetim vermelho com acabamentos em pelúcia branca e o enchimento de espuma, sentia o suor escorrer. Nem todo o ar-condicionado do mundo poderia ajudá-lo naquelas vestes, naquele calor. A bota um número menor, machucava os pés. Na verdade, re-machucava, apertando e roçando justamente sobre os calos deixados nas últimas três semanas.
A mocinha ridiculamente uniformizada - o que era aquilo? Um duende? - conseguiu-lhe uma outra barba, meio desfiada e cheirando a mofo. E anotou na sua ficha para descontar depois. Anotou também o atraso.
Ele terminou de se vestir ali mesmo, usando o vidro da porta como espelho. A sobrancelha não parava colada na pele úmida, mas não tinha mais tempo a perder. Tentou ignorar as irritantes músicas de Natal que rebombavam por todos os corredores e, mancando e espirrando, foi sentar-se no trono, na praça de alimentação. O alívio de sentar-se durou cerca de um milionésimo de segundo. Foi logo cercado por crianças barulhentas que lhe subiam pelas pernas, ajoelhando-se sobre suas coxas, puxando-lhe a barba, chorando e gritando em seus ouvidos. Impressionante que todas elas usavam seus já combalidos pisantes como degrau, acertando sempre a unha encravada ou o nó do cadarço que lhe espremia os tendões. Lembrou do capitão Nascimento: "pede pra sair!!". Comparado àquilo, aquele brejinho do filme era sopa, pensou. Não pediu pra sair. Contava com a grana para comprar umas coisas pra ceia, uns presentes pra Deolinda e os filhos. Talvez uma beca de responsa para ajudar a conseguir um emprego melhor para o ano. Não dava mesmo para ficar nesse sufoco. E por falar em sufoco, ele viu aproximar-se uma menina que devia ter sido criada a base de Ovomaltine. A pequena devia pesar uns sessenta quilos. Acompanhada da mãe, era possível perceber a crueldade da herança genética. A menina aboletou-se em seu colo e começou a desfilar um rosário de pedidos que não acabava nunca. As outras crianças estavam impacientes, tentavam empurrá-la, mas nenhuma delas tinha forças para isso. E Esaú ficou ali, ouvindo a ladainha, sorrindo resignado, enquanto percebia seus membros inferiores ficarem dormentes. Por um lado isso era bom, já que os outros fedelhos, frustrados em suas tentativas de atingir a menina, agora vingavam-se nele, chutando-lhe as canelas. Ouviu uma outra mãe queixar-se:
- Ô papai-noel. Atende logo o Juquinha... Senão, depois, mando a conta da terapia para você, lá no polo norte.
Outras mães riram seus risos de hienas, enquanto Esaú tentava fazer a fila andar.
Aquela tortura durou por mais umas três horas. No intervalo para o almoço, arrastou-se até o refeitório para descobrir que algum engraçadinho havia roubado a carne da sua marmita. Comeu o que havia restado e voltou para o batente. Às 18h o shopping fecharia e ele poderia ir receber o soldo, guerreiro ferido na batalha, mas ainda vivo. Teria que correr para fazer suas compras, mas só de imaginar-se novamente de bermudas, camiseta e chinelos, pensava feliz: papai noel existe.
Ao término do expediente, foi procurar a administração, alegre e saltitante, apesar do corpo todo dolorido. A mulher-elfo deu a notícia:
- O senhor “pode estar passando” no sábado de manhã para receber o pagamento.
- O quê??? - teve ímpetos de bater na garota.
Não precisou. Ela encolheu-se assustada e fechou a portinhola do balcão. O segurança aproximou-se desconfiado. Ele amansou a voz:
- Ô, filha! Veja se me consegue só um adiantamento, para a passagem. Minha carteira foi roubada.
- Não dá, moço. A tesouraria fechou.
Não lhe restou alternativa: voltaria a pé pra casa. Não era longe. Só uns 15 quilômetros.
No caminho teve a sacola roubada por uns moleques - mais desconto -e quase apanhou depois de entrar numa discussão com vascaínos numa parada de ônibus.
Quando chegou em casa, já beiravam as onze da noite. Deolinda e os filhos o receberam de cara feia. Ela chegou a acusá-lo de estar bebendo, mesmo depois que ele lhe contou todo o ocorrido.
Desanimado, Esaú foi para a porta, uma vontade louca de chorar de raiva, de tristeza, de humilhação.
- Droga de natal! - pensou. - O que mais falta acontecer???
De repente, viu a estrela. Linda! Inacreditável. Era a estrela de Belém, anunciando o nascimento do Salvador!
Não pode evitar, os olhos cheios d'água, caiu de joelhos, pedindo perdão a Deus por ter-se deixado desanimar nesta noite tão especial.
A estrela foi aumentando de tamanho, aumentando, aumentando, até que ele percebeu que não era bem uma estrela, mas um meteorito que desabou sobre a construção. Só teve tempo de gritar para que a família saísse correndo de lá, antes que o enorme pedregulho reduzisse todo o seu patrimônio a pó.
Depois de certificar-se de que todos estavam bem, olhou desolado para os destroços da casa. Não havia sobrado absolutamente nada. Foi quando leu na camiseta da netinha: "feliz natal!".
Os médicos dizem que ele vai se recuperar. O tratamento tem surtido efeito, as injeções realmente o acalmam, só ainda não conseguiram fazê-lo parar de rir, histericamente, sempre que alguma coisa lhe faz lembrar do Natal.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Um Infeliz Natal.
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