Gota d'Água (EC)

Aprígio a pegou no colo, antes de atravessarem a porta. Não eram recém casados. Era o primeiro dia na casa nova e estavam simplesmente radiantes com esta conquista, que havia exigido tantos sacrifícios. Ele a acomodou sobre o sofá, no meio da pequena sala. Os móveis estavam todos amontoados entre caixas e sacolas, ainda era possível ouvir o motor do caminhão de mudança afastando-se. A casa era humilde: quarto, sala, cozinha e banheiro. Aos fundos, um tanque de roupas dava para o pequeno quintal cimentado. Mas era deles e, para eles, estava de bom tamanho.

Nas primeiras semanas, organizaram tudo.

Trabalhavam muito, passavam quase todo o dia fora. Mas, da porta para dentro, tinham o aconchego de um lar: quadros nas paredes, cortinas rendadas e flores nos canteiros. Tudo ia muito bem, até que (sempre tem um "até que...") chegou a primeira conta de água. O valor era absurdo. Incompatível com o tamanho do imóvel, da família e, principalmente, do orçamento.

Entraram em contato com a companhia de água da cidade para pedir uma revisão, mas o valor foi confirmado. A atendente os orientou a procurar por vazamentos e afirmou que também poderia ser algum resquício da obra, algum acumulado pela falta de leitura. Foi necessário pedir um parcelamento para pagar aquilo.

Não encontraram nenhum vazamento e a conta seguinte provou que, se havia resquício da obra, estavam incluídos ali resquícios das obras de fundação da cidade, pois o valor veio anda mais alto. Nova acorrida à companhia de água, novo parcelamento e uma nova suspeita: algum vizinho poderia estar fazendo um gato na instalação deles. Aprígio passou o final de semana quebrando o calçamento do quintal, à busca do tal gato. Destruiu o canteiro tão lindamente florido, e nada.

Na segunda-feira, febril e dolorido pelo esforço pouco usual, ele acabou não indo trabalhar. Quando a esposa, tensa e preocupada saiu, ele deitou-se na sala, pensativo. Neste ritmo, teriam que vender a casa, quando viviam de aluguel, nunca haviam passado por isso. Lamentava-se por esta situação, quando ouviu a descarga do banheiro. Pensou ser em algum vizinho, mas logo ouviu novamente. Levantou-se com dificuldade, o corpo todo doía, e foi até o banheiro. Mais uma descarga e ele precipitou-se para a porta. Ao abri-la, finalmente encontrou o tal gato. Na verdade, ele o flagrou ali, em pé, apoiado sobre a caixa do vaso sanitário, olhando a água descer. Quando a descarga parou, ele voltou a acioná-la com a patinha, completamente absorto em observar o movimento da água, escorrendo em espiral pela louça branca. Aprígio ficou ali, boquiaberto e atônito diante da cena, mas antes que o bichano acionasse novamente a alavanca, deu um grito, fazendo-o voar pelo pequeno basculante acima da pia, numa agilidade de fazer inveja a qualquer artista do Cirque de Soleil.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Flagrante Delito.

Saiba mais, conheça os outros textos: http://encantodasletras.50webs.com/flagrante.htm

...e foi inspirado num vídeo que recebi por e-mail já há algum tempo. Caso haja curiosidade em vê-lo, encontrei um similar em:

http://www.youtube.com/watch?v=702K-3MzrEE