O Encontro

O Encontro

Praça da Liberdade.

Manhã gelada de junho.

O termômetro, a minha frente, marcava 15 graus.

Vindo em minha direção, uma senhora vestida no que parecia um quentinho moleton preto.

Na cabeça, um chapéu de palha, desses usados para se proteger do sol.

Atravessada no peito, uma bolsa que era para ser usada tira-colo.

Num daqueles instantes que a gente nunca sabe explicar, prestei atenção nela assim que a vi, a uns dez passos de mim.

Devia ter sido mais alta há algumas dezenas de anos atrás.

A velhice encolhe as pessoas.

Ao passar por mim, para minha surpresa, ela parou e falou:

“Desculpe falar isso, mas na vida a gente tem que contar é só com a gente mesmo”.

Tinha um rostinho encovado pelas rugas, mas ainda mantinha traços de beleza.

O batom vermelho, àquela hora da manhã, comprovava uma vaidade que o tempo não fora capaz de destruir.

O lencinho rosa chá no chapéu de palha (só de perto o tinha percebido) era a certeza disso.

O rosto estava ligeiramente empoado com pó de arroz, o que me fez lembrar minha avó, grande usuária de talco para tampar as rugas e se fazer perfumada.

Percebendo a minha atenção, ela continuou:

“Imagina você que tenho 86 anos e moro num apartamento desse tamaninho ó, onde não bate sol. Hoje acordei morrendo de frio, fui direto tomar um banho quente e a única coisa que pensei em fazer foi sair de lá e pegar um pouco de sol.”

Perguntei se ela ia dar uma caminhada pela Praça da Liberdade, hábito que mantenho há anos, mas ela me explicou: “Adoro a Praça, minha filha, mas estou indo para o Minas”.

Nada mal: encontrar com uma senhora de 86 anos, indo para um clube, às 8 horas de uma manhã gelada!

Tentou explicar:

“No Minas, faço caminhada.

Quando canso, sento, tomo sol e, se tiver sorte, encontro com algumas amigas, que como eu, usufruem do milagre de ainda estarem vivas'.

Não pude deixar de achar muita graça naquela velhinha.

Ela era uma benção para a minha terça-feira .

Perguntei seu nome e comentei que minha mãe era um pouquinho mais velha do que ela.

Ela fez um beicinho e depois sorriu (o que achei ser um cacoete).

“Quem me dera se meu filho tivesse a paciência que você tem com velho. Hoje em dia ninguém tem. Acham nossas conversas chatas e repetitivas”.

Achei aquilo um absurdo.

Como não gostar de conversar com pessoas idosas?

Sempre gostei da companhia de minha mãe e de suas amigas.

“Não quero tomar seu tempo. Sei que deve estar na hora de você trabalhar, mas tenho que te contar uma coisa. Posso?”

Mal esperou meu animado “pode!” para dizer:

“Sou viúva e tenho um filho que mora fora. Quando meu marido morreu, pensei em ir morar num apartamento que batesse sol, longe de lugar tão barulhento como a rua da Bahia. Falei com ele a respeito e já se passaram oito anos e nada. Você sabe como é: a vida é muito corrida e ninguém hoje em dia tem mais tempo para nada”.

Acho que ela percebeu meu olhar de como-não-ter-tempo-para-resolver-assunto-tão-importante-para-pessoa-tão-importante?

Olhou para os lados, como se para ter certeza de que não seria ouvida por ninguém, segurou-me pelo braço, chegou bem perto do meu ouvido e sussurrou:

“Pra você eu vou contar: ele não quer é vender o imóvel da rua da Bahia. Não importa se bate ou não bate sol. É apartamento pequeno e você sabe como é, com o dinheiro de um, não compra outro e ele não deve estar querendo mexer nas economias. Quer esperar. Afinal, tenho muito mais tempo para trás do que terei para frente. Mexer com mudança agora, pra quê?”

Fiquei revoltada.

Tive raiva.

Senti pena.

Olhei para ela.

Quem eu via a minha frente não combinava com revolta, nem com raiva, nem muito menos com pena.

Tudo nela era alegria e vontade de viver.

“Gosta de dançar?” Arrisquei.

“Ih! Minha filha! Adoro! Dançava muito até meus olhos me pregarem uma peça. A vida, na minha idade, é manhosa – quando a gente se sente muito bem por dentro, tem sempre alguém para te falar o que vê por fora”.

Dizendo isso, empinou o pequeno corpo e com as mãos apontou para si mesma, repetindo o beicinho e depois o sorriso (era mesmo um cacoete).

“Agora já não enxergo muito bem e minhas pernas não estão lá essas coisas. No mais, sou muito feliz porque tenho saúde e não dou trabalho pra ninguém”.

Falando isso, consultou o imenso relógio digital em frente da Biblioteca Pública, franziu as sobrancelhas e falou:

“Estou atrasada”.

Tomei o maior susto: se ela estava atrasada, imagina eu!

“A conversa está muito boa, mas o Minas me espera. Obrigada por ter me escutado. Você passa sempre por aqui? Mora por perto? Quem sabe não marcamos um chazinho lá em casa dia desses?”

E rapidamente me falou onde na Rua da Bahia era seu apartamento sem sol.

Despedimo-nos e eu fiquei ali parada, vendo-a ir embora com passinhos rápidos e um pouco cambaleantes.

Pensei na minha terça-feira.

Como a vida é sábia...