TUDO SE TRANSFORMA
                                   A VIDA
                                 A MORTE
                                 A TERRA
 
 
         Estou maravilhada com a lucidez da compreensão. Não é hora de modéstia, ou de impiedade ou crueza de olhar para o que é e como é.
Por exemplo, o caso daquele rapaz que fez refém uma mulher e recebeu um tiro na cabeça na hora oportuna ao “atirador de elite” para acertá-lo sem ferir a vítima-refém. Um horror social. Mas não é hora de ver isso: de como chegamos a esse extremo de deterioração social e urbana; de pensar o que é o mau e o bom, de a polícia agir ou não. Se o bandido merecia ou não aquele tiro, ou se é hora de culpar ou justificar. Nada disso. Há um ponto que é preciso olhar e “ver”. Não é momento de julgamentos. Nada de ser a favor ou contra.

É hora só de ver.

Há cerca de dois meses tenho passado os dias mais intranqüilos de vida. Não é qualquer um de chegar a esse ponto de olhar e ver.
É um patamar de sofrer e se transformar. De reconhecer que só passando pelos dissabores inimagináveis, passar por eles atravessando ou sendo atravessada por tais males e de ser maior que tal ataque, ou imprevisto. Tal nível é alcançado com conhecimento, simplicidade, natureza saudável, estudos, cultura livre do componente de religião, inteligência, modéstia misturada com sabedoria, ética, respeito, arte, bondade e compreensão, liberdade de não ter vínculos de ordem moral ou regras fundamentais, e coragem e amor, com o talento de ver e entender. Aquele que olha e vê entende e percebe que ultrapassou a linha do “bom comportamento social ou ético”.
Chega a ser um modo de ver o outro lado da questão.

Não é banal. É simples, mas o simples é talvez o mais difícil de alcançar.

Vou confidenciar com o leitor que eu fiz um quadro de papel de fundo negro com desenho a cores por cima, cabeça pensante e intencional e expressão de arte: é um dos desenhos mais belos que já fiz. Um corpo nu de mulher madura, suspenso no espaço, mas com as mãos agarradas a uma corda branca esticada e não está presa a nada. Só a intenção. Eu mesmo e sem modéstia, confesso que é um belo trabalho de arte; adoro tal quadro, diz muito de mim. Esteve numa exposição no Museu de Arte Moderna de Rezende e foi muito apreciado pelo Helio Rodrigues, aquele pintor da Escolinha Brasil, acho que até ganhei um prêmio, mas não me lembro desse detalhe.

Conto isso como exemplo de ver o outro lado: olhar e ver.

Estou perto da vida. Estou perto da morte. E estou maravilhada por que tudo é transformador.

Enquanto tomava meu café, fui pra defronte da TV e passava uma cena de beleza comovente: um bebê de uma vaca acabara de nascer e estava estirado sobre a grama do pasto, ainda com o cordão umbilical, e a cabecinha voltada para a cabeça materna, focinho com focinho os dois. A sua grande e macia língua limpava o corpo recém-nascido. Era um beijo de amor dulcíssimo. Eu que fui e sou mãe, entendo esse laço de amor, que Deus deve ter criado para dar sentido à vida e suas transformações. Aí se confia que tudo sempre tem um sentido, e para melhor, por pior que possa parecer ao primeiro momento.

E fui para a varanda acabar de regar e cuidar das minhas jardineiras. Mexendo na terra de uma delas, eu gosto de mexer na terra, acho que é mãe protetora e transformadora; a abandonada, em que eu plantara os bulbos de tulipas que passaram do tempo do plantio, mas tentei salvá-los. E depois tive que desistir, pois passara o prazo deles brotarem. Doeu essa desistência, tive até preguiça de plantar mais alguma coisa. Mas o tempo ajuda a renovar interesses perdidos.
Remexi e limpei um pouco a terra. E o imprevisto surgiu entre meus dedos. Os bulbos se multiplicaram e todos eles estão brotando naquela terra seca. Deus! Deus! Afofei com os dedos aquela terra milagrosa e replantei rapidamente todos os bulbos brotados, parecia não caber no vaso. E reguei toda a jardineira com renovado amor e esperança de novas folhas e flores. Com novo sentido de vida.

Eu um dia estarei envolta na terra, e meu corpo será protegido e bem recebido pela mãe terra. Eu virarei Natureza.

E beneficiarei as raízes que se alastrarem pela terra que eu serei.

 
 
 


Terça-feira, 29/09/09