O atraso

Um acontecimento marcante? Impossível. Um cronista que se respeite não elege nunca um só fato, um momento, um acontecimento envolto em uma aura etérea e inesquecível. Nunca. Se assim fosse, teria a vida limitada a uma única e solitária crônica.

Assim, uma perspectiva canônica despe de beleza e significado os outros momentos da vida. E por serem “ outros “ não são vida? Não faz parte do cotidiano e não é importante perder uma oportunidade, guardar um texto escrito em um velho papel, ser acometido de dengue, receber um caloroso “ bom dia “ ou simplesmente atrasar-se?

Pois digo que sim. Tudo isso é importante e fundamental para se chegar aos “momentos inesquecíveis” que ocupam nossos álbuns fotográficos e espaços respeitáveis em nossas paredes.

Um dia, há um mês, eu simplesmente me atrasei. Quando atrasados, deixamos de captar as músicas, os olhares, e as cenas que passam distraídas à nossa frente, mas mesmo assim, em meio a pressa, algo me chamou a atenção. Uma senhora muito suja e mal vestida que revirava uma papeleira no movimentado centro do Rio, em busca de páginas amarelas, amassadas e perdidas de um velho livro.

Que intrigante! Uma papeleira no centro de uma grande cidade poderia fornecer àquela mulher formas de suprimento para as suas necessidades mais básicas, mas suas mãos trêmulas e sujas juntavam páginas de sonhos. Mas por que um livro? Seria para ela a válvula de escape de uma realidade tão dura e sufocadora? O atraso não me permitiu saber.

Só posso afirmar que para ela, ter um livro nas mãos e se sentir nele representada ou reconfortada , foi tão importante quanto foi pra mim, a primeira crônica publicada e o primeiro premio literário tão sonhado e recebido sem esperar.

Isso tudo também está envolto de significado e beleza. Basta atentarmos um pouco mais para os atrasos. Aprendi que eles não devem ser desprezados.