PONTAPÉS

Caminhava pelas ruas, perambulando, quase sempre sem rumo. Os dias e as noites eram praticamente iguais, diferenciados apenas por um detalhe ou outro. Cedinho, o sol ainda saindo, punha-se a procurar comida; questão de sobrevivência. Seguindo o instinto, ia por onde o faro lhe ordenava, na expectativa de aliviar a fome.

Muitas vezes, nada conseguia além de rostos enraivecidos que se punham a lhe enxotar. Sem dignidade, dali a pouco repetia a tentativa, tão faminto que nem lembrava o quanto era terrível a humilhação. Mas, sabia o que era humilhação? Habituado àquela vida, não mais diferenciava a maneira como lhe tratavam; conhecia agora apenas a diferença entre barriga vazia e menos vazia.

Vez em quando enrabichava-se por alguém (também por instinto e afinal não estava morto), mas a “paixão” não durava muito. Talvez fosse uma maneira de amenizar a solidão, de dar um pouco de sentido à sua triste existência.

Filhos? Não sabia se tinha. Aliás, não sabia o que era “filhos”. Vivia tão preocupado com a própria sobrevivência que tal coisa nunca lhe passara pela cabeça. Sabia sim, o que eram o frio e a rejeição. Sabia o que era levar uns pontapés, o que era dormir na calçada, sabia que a verdadeira felicidade estava em comer, em saciar a fome, sabia o que era o prazer de dar uma boa coçada nas sarnas que carregava já há algum tempo consigo. Do resto, não sabia.

Uma vez alguém lhe dera um pouco de atenção e carinho, lhe oferecendo um prato de comida. Mas, da mesma maneira como apareceu, logo sumiu, no meio da multidão. Fora a primeira (e talvez a única) vez que ele sentira aquela sensação de calor e cuidado, tão agradável e tão leve, que ele pensou ter findado o seu sofrimento. Pura ilusão.

Tudo o que ele queria (mesmo inconsciente) era um lar, uma família que lhe desse a adoção e o amor de que tanto necessitava. Mas, tão raras eram as chances dessa felicidade quanto são raras as chances de olharmos um cão sarnento na rua com a coragem de o levarmos para casa.

E assim, nosso triste personagem seguia entre sarnas e pulgas, o seu destino. Sempre à procura de comida, sempre levando pontapés. Até encontrar um motorista descuidado que, sem piedade, lhe quebrasse as costelas e alguns outros ossos. Ou encontrar o carro da Zoonoses.

Beatriz Lopes
Enviado por Beatriz Lopes em 01/09/2009
Reeditado em 03/09/2009
Código do texto: T1786744