LÁGRIMAS DO PENSAMENTO

LÁGRIMAS DO PENSAMENTO

Chovia escandalosamente. De súbito vi-me ilhado de escuro. Fantasmas vestidos de negro serviram-me de horizonte.

Através do tato vi uma mesa.

E uma cadeira de palha.

Em cima da mesa havia um livro e, junto a ele, uma fruteira com frutos tropicais.

E, assim, com os olhos não enxergando além das pupilas, o pensamento, com seu próprio gerador de luz, transportou-me para uma favela. Mais precisamente para um certo casebre dessa favela, onde o escuro nato da noite fazia sua morada permanente. Lá não havia necessidade de tato, pois nada havia. Nada havia além de um sujo catre e duas esteiras a um canto do único cômodo daquele casebre. Um casal de idosos, ele aposentado do INSS. Dois ou três netos infantes neles amoitados, faziam-lhes parceria em sua miséria.

Não havia necessidade de referências visuais.

Lá nem havia mesa.

Não havia cadeira.

Muito menos o livro.

E, menos ainda, as frutas.

A pane elétrica havia sido consertada. Voltou a iluminar-se tudo ao meu redor. Fora somente um apagão momentâneo. Mas lá na favela o colapso da luz e da vida era permanente, de dia e de noite ... e continua.

Na minha casa os fantasminhos vestidos de negro fugiram apavorados. Vi que estava, para felicidade da minha família, dentro de quatro paredes mais ou menos habitáveis; que não havia goteiras, apesar da forte chuva fazendo eco no telhado sólido; que havia ali alimento suficiente para todos; que eu tinha tudo o que faltava naquela favela. Lá os casebres continuavam no escuro – o escuro da falta de iluminação e do emedo e da desesperança e da miséria. Lá não havia móveis, nem alimentos, nem roupas para trocar as molhadas; nem havia os resquícios mínimos de infra-estrutura condizente com a dignidade humana.

Mas havia grandes e inúmeras goteiras.

Meu pensamento encolheu-se, muito triste, no cantinho do cérebro reservado às células da impotência. De soslaio ele, o pensamento, olhou desdenhosamente para as mansões. Nelas vivem pessoas na fartura de todos esses bens de consumo do ser humano. Alimento que não é fresquinho e móveis que não condizem com a moda atuante, jogam-nos ao lixo. Nem sequer um sentimento de solidariedade e de compaixão leva-os a repartir sua sorte com a dos menos afortunados dela. E fazem gosto e honra dessa despreocupação e desse desprezo pelo seu semelhante.

E lá, no seu cantinho encolhido, inútil, meu pensamento chorou ao monologar as asperezas da sua própria impotência.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 23/08/2009
Código do texto: T1769797
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