Na Livraria!

Como que de repente, anda apressado pelo corredor não muito cheio, porém, cheio. Casais felizes deslizam pelo piso ainda reluzente da construção recém-inaugurada. Esbarra num ombro. Não se importa. Ou melhor, finge que não se importa. Elaborara uma teoria certa vez: as pessoas, ao andar na rua, sentem prazer em esbarrar nos demais transeuntes. É impressionante, parece que eles vêm com gosto, com vontade, com afinco. Não há nada que os detenha de seu objetivo, eles têm que bater em você de qualquer maneira. Prova disso é que quando batem olham pra trás com aquele velho olhar sagaz. Se fosse só acidente realmente, lamentariam, mas não olhariam pra trás. Olhar pra trás é coisa de quem ainda tem algo a resolver atrás. O que será que eles têm a resolver atrás ainda? Afinal, já alcançaram seu objetivo. Eles esbarraram em você. Vivas! Eles esbarraram.

Não ligou.

Continuou pelo corredor até encontrar o local que escolhera pra aquela fatídica tarde. Era uma livraria. Sim, uma livraria. Não gostava da idéia de ter prazo pra ler livros, contudo, preferia gozar a seu bel prazer de bens que, normalmente, seria assaltado às vistas da lei a fim de obter o direito de usufruir dele da maneira que bem entendesse. Era um desejo intrínseco uma possível subversão da ordem. Curioso é que sairia dali e iria retornar a seus hábitos pequeno-burgueses padrões. Tinha que manter-se na linha. Como diria a música, cidadão-modelo, burguês padrão.

Sentou-se, apoiou o livro e iniciou sua leitura. A cada vendedor que passava, passava também o medo de que pudesse ser expulso do recinto a qualquer momento. Não estava seguro de si, mas sentia-se pleno ao contrariar os interesses capitalistas neoliberais que deturpavam e manchavam de sangue a tão conclamada dignidade humana. Afinal, não era algo comum alguém ir contra a ordem natural das coisas: você compra, usa, abusa, vende. Até com pessoas fazemos isso. Compra-se, usa-se, abusa-se, vende-se. Na hora de vender fazemos que nem com os carros: “é bem bonito, funciona bem, tive alguns problemas com ele, mas acontece, problemas acontecem com todos”. A diferença é o preço. Normalmente costumamos explorar mais quando vendemos pessoas. Além da pseudo-eterna gratidão, há também a eterna dívida de um favor prestado.

Com carros é bem mais complicado.

Preferia ler livros de graça em livrarias privadas.

A leitura era interessante, porém, não durou mais que alguns minutos. Tinha hora pra cumprir com seus interesses de burguês padrão. Tinha uma sociedade toda a agradar e pensava que isso era só parte do contrato. “Nasci pros outros, viverei pros outros, quando morrer, os outros virão ao meu enterro”.

Sem possibilidade de volta. O destino inexorável de todos nós. O futuro irrefutável comum daquilo que vive. O único bem irremediável. Mas ainda lia. Alguns minutos depois já estava em casa, pronto pra cumprir seus objetivos.

Não tinha, pois, mais tanta convicção daquilo que desejara. Já eram três da manhã e não fazia muita coisa além de borrar alguma coisa num trabalho acadêmico. Tinha compromissos, mas não ligava. Preferia agir como cidadão modelo. Seus sonhos médios contaminariam todos os circundantes, suas palavras vazias já não mais fariam sentido por muito tempo. Seu coração um dia pararia de bater e ninguém mais se lembraria dos favores que prestara, ou das pessoas que ajudara. O que não faz algumas cervejas e carne de sol.

Não pensara nisso tudo de uma vez. Não tinha essa capacidade.

Sentou-se, comeu, correu, voltou, dormiu, acordou, não estudou, não dormiu de novo.

Cansara-se de subverter a ordem por aquele dia. Era hora de deitar e guardar mais pro próximo.

Daniel Euzébio Pinheiro
Enviado por Daniel Euzébio Pinheiro em 13/06/2009
Código do texto: T1646441
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