Como se não houvesse amanhã. (Maria Mal-Amada)

Crônica extraída do livro Maria Mal-Amada

de Lorena de Macedo

O corpo responde ao grito do sistema emocional. Alguma coisa está errada, muito errada. Emoções truncadas causam dores no meu braço esquerdo. Tensão que embaraça os músculos da coluna e os nervos da cabeça pendente. Cabeça que mais parece uma granada de pino duvidoso.

Como se o dia não fosse terminar, eu me arrasto pelos corredores de paredes mornas. Nada de cores, nada de bom-dia ou boa-noite. Boa tarde é coisa de quem não tem problemas. As pessoas insistem em cumprimentar o molambo que se arrasta pelos corredores. Não quero responder. Não quero nada.

Você já reparou que as pernas do molambo parecem correntes de aço? Pesadas correntes de infinitos elos. Alguns cadeados adornam meu pescoço fraco. Pescoços fracos não sustentam cabeças-bomba e por isso elas pendem, ou explodem.

Como se não houvesse noite, eu me nego a dormir. O braço esquerdo avisa que a gritaria está piorando. Só agora me dou conta de que o cachorro não fez festa quando cheguei. Não se esfregou em minhas pernas para pedir colo. Será que consegui deprimir o ser mais alegre que conheço?

A dupla de gordinhas que caminha diariamente na rua de casa parece não se importar com o resto do mundo. O resto do mundo que sofre e se lamenta em períodos sazonais. Sei que o mundo não vai parar para lamentar comigo. Sei que as gordinhas não serão solidárias a mim porque nem sequer me conhecem. Sei que períodos de lamento são normais, mas mesmo sabendo de tudo isso, teimo em agir como ignorante.

Quero sentir a tristeza ignorante que gosta de ser sentida. Quero me dar o direito de ocupar o sofá o fim de semana inteiro. Não tomar banho, não escovar o cabelo, não depilar ou modelar a sobrancelha. Quero me sentir a mais feia das mulheres, a gelatina mais flácida do buffet de sobremesas.

Depois que estação da seca passar, renascerei como a Fênix. Uma escova bem feita e uma cinta apertada são capazes de promover milagres espantosos. Colocarei o salto mais fino e mostrarei para a dupla de gordinhas que posso caminhar de salto. Mas acho que elas nem perceberão. Parecem tão felizes consigo mesmas e tão equilibradas com o ambiente que às vezes me pergunto se é só o meu mundo que entra em crise.

Como se não houvesse amanhã, vou viver o hoje. Caminhar descalça no asfalto quente. Substituir o remédio pra dor de cabeça por sementes de mostarda. Se eu disser bom dia pode ser que as gordinhas me convidem para um passeio.

Maria

Lorena de Macedo
Enviado por Lorena de Macedo em 27/05/2009
Código do texto: T1617825
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