O beijo não vem da boca. (Maria Mal-Amada)

Crônica extraída do livro Maria Mal-Amada

de Lorena de Macedo

De todos os lugares possíveis. A resposta que me deram, a resposta que dei para mim mesma. O beijo não vem da boca, mas de todos os lugares possíveis. Impossível seria se o beijo viesse de um único lugar.

Dos dedos do pé que reagem ao toque, enrijecendo-se dentro do sapato subitamente apertado. A excitação nos deixa com cara de loucos. Você já reparou como é fácil parecer ridículo?

O beijo não vem da boca. A felicidade não vem de fora. Você não pode marcar uma hora para se entregar. Também existe loucura na estupidez de quem premedita todas as reações. Agende um horário nessa sua rotina deprimente para ser feliz. Talvez você consiga encaixar o beijo no meio de dois compromissos menos importantes.

O sorriso não vem dos dentes. A gargalhada que faz as bochechas doerem tem qualquer coisa louca e gostosa. Gostosa como aquela boca desenhada que você conheceu em algum momento da sua vida. Todo mundo tem uma boca desenhada na memória.

Sabores não são de graça. O sabor de um beijo bem dado custa um pedaço significativo de memória. Você não vai esquecer do gosto. O amargo de uma decepção também custa caro e é tão valioso quanto qualquer momento doce. No cinismo que mais parece ironia inofensiva, você acaba se acostumando com toda a amargura do mundo. Não se acostume. Não haja como se azedo e amargo fossem a mesma coisa. Não pare de desejar o doce da vida.

A verdade não vem dos outros. Está nos olhos que não sabem disfarçar. Na gagueira de quem não sabe mentir. Na mentira mal-contada, disfarçada de engano. Na vergonha estampada na cara limpa, sem rodeios. Ainda dá para acreditar que as coisas podem se arranjar. A verdade não está lá fora. Aqui dentro tudo pode ser pra valer.

Segredos devem ser contados. Saber o tempo de um segredo é talento para poucos. Mistérios e segredos foram feitos para revelação. Isso não é desculpa para justificar qualquer atitude fofoqueira. Não sou delatora, mas está na natureza de um bom segredo a sua descoberta fatal.

Pensei que a fé viesse da religião. Graças a Deus que não vem. A fé tem qualquer coisa de entranhas, profundezas, cegueira e perdição. Como o amor que o ser humano ainda não sabe sentir. Acho que vem de dentro. O amor e a fé. Dentro do mais profundo ponto. Daquele lugarzinho que parece preencher tudo ao redor, crescer e multiplicar, extrair das entranhas. É como eu disse, a fé vem das entranhas.

Amizades não são perfeitas. Ainda bem que não são. Quebrar o pau com uma amiga faz bem pra relação. É como um teste, uma bala de canhão na muralha aparentemente intransponível. Muros podem ser reconstruídos. Ainda bem que existe reconstrução.

Família não é sagrada. O sagrado está naquilo que se sente. O sangue não fala mais alto que a convivência. O grito de quem se importa com a criatura desde os primeiros passos abafa qualquer som. Dos primeiros laços, dos nós mal-feitos, das incontáveis ocasiões em que se quis bater e assoprar, beijar e amassar. Família é coisa de sentimento, de histeria desvairada, de briga comprada, de fartura em meio ao nada.

Enquanto eu pensava que o beijo vinha da boca, achava também que sabia o lugar de tudo em mim. Mas vivo na completa ignorância, sabendo apenas que as coisas nem sempre são o que parecem, e nem sempre vêm de onde aparentam vir. Você já reparou que o beijo tem qualquer coisa de loucura e redenção? Arma secreta, cura infalível, nada de mais, tudo de bom.

Não vem da boca. Não mesmo.

Maria

Lorena de Macedo
Enviado por Lorena de Macedo em 09/04/2009
Código do texto: T1530247
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.