O trem e eu

Não nos combinávamos. Eu era um e ele era outro. Totalmente diferentes. Não me refiro ao detalhe de ele ser uma máquina e eu um humano, isso não tem mais valor hoje em dia. Também não falo de debates filosóficos, esse negócio de penso logo existo, isso de revolução das máquinas. To falando de peculiaridades de personalidade. Eu em presença dele não intimido, sou só uma de suas responsabilidades. Ele tem que me levar onde eu quero em segurança, precisa ver o ímpeto do sem - vergonha com aquele ar de executivo pós-moderno: só corro pra frente! Agora ele pra mim é como um estagiário ante a sua primeira cirurgia em um paciente de verdade: ele entra na sala tremendo, põe a mão dentro do paciente com nojo e opera desesperado, sua como um condenado.

Veja a cena. Eu venho do mercado, entro no trem, ou melhor, eu posso chamar de trem um veículo cheio de seres cadavéricos, figuras vestidas de couraças, velhos babando? Tava mais pra casa do terror. Pior que não tinha nem uma namorada na hora para descer gritando, e eu ir consolando.

Entro no trem, sento com medo do assento (todo mundo tem medo de assentos quentes, tradicionais transmissores de todo tipo de doenças contagiosas), quando olho para o fundo uma velha sinistra quase caolha me vara com um olhar aterrorizante. Eu viro pra frente para ver o mar, a infinidade negra e tomo o susto do século: seios enormes amamentam uma criança com a fralda amarelada, e que mulher horrorosa.

E como se não bastasse ao meu lado esquerdo, na outra extremidade do vagão (o infeliz ainda se divide em vagões, provando que o terror se estende após as paredes...) sujeitos mal encarados tragam um cigarro que parecia ser não um fumo no papel, mas uma chaminé incessante e fedorenta. Esta exalava as suas intenções de assaltar os deformados do meu vagão, mesmo ciente do pouco lucro. Não é nenhuma cisma não meus amigos, peguem um trem á noite, dá arrepios...

Então, sem questões biológicas, filosóficas, futuristas, posso dizer perfeitamente que eu e o trem não nos combinamos, e essa crônica sem sentido só vem lamentar o fato de “ele” ser o transporte mais barato. Parece que eu tenho que deixar o preconceito e vencer as diferenças, inda mais nesse período de crise mundial.