Histórias de Passaegeiro: Parte IV

Hoje contei pra lua todas aquelas meias verdades que estavam entaladas na garganta. Mas eu vi no fantástico que uma meia verdade é, na verdade, uma mentira e meia e, então, não conto mais minhas meias verdades pra ninguém. Guardo-as até que um dia elas se tornem duas mentiras completas pra, então, eu poder contá-las a alguém. Sim, minto. Minto porque a verdade se tornou tão banal que não tem mais graça destilá-la. As frivolidades mundanas de todos os dias não permitem que brinquemos de mentir ou que falemos o que realmente se passa nas horas em que se é necessário. Agora brincamos de falar a verdade e mentimos sempre que precisamos.

Nesses dias, no ônibus, o motorista se virou para os passageiros e disse: “vou ter que parar. Deu um probleminha aqui, mas logo vai passar outro que leva vocês”. Onde já se viu isso, meu Deus?! Claro que o motorista estava mentindo. Ônibus são infalíveis, por isso que pagamos tão caro pra andar neles. Isso foi bem um chifre que ele levou da mulher e não estava mais suportando o fato de ter que trabalhar enquanto a safada o traía com requintes de crueldade e gritando o nome dele no ouvido do outro. Um absurdo, evidentemente.

Nesse mesmo dia, no banco atrás do qual eu sentara, uma mulher diz para uma senhora que estava ao lado: “Mas olhe só que coisa feia, esses estudantes de escola pública não se ajeitam mesmo, hein?! Lá vão eles derrubando a lata do lixo”. Que mentira deslavada. Como alguém tem coragem de mentir desse jeito tão descarado? O sistema educacional brasileiro é uma maravilha completa, mesmo nas escolas particulares, quanto mais nas públicas que são administradas por nossas autoridades competentíssimas e que nunca deixam faltar nada em canto nenhum. Um absurdo, claro. Nunca alunos de escolas públicas seriam marginalizados pelo resto da sociedade, isso é invenção da cabeça daquela pobre mulher que mal conhece a realidade, com toda certeza.

Mas uma grande verdade eu ouvi naquele dia mesmo. Ainda bem, já cansara de tantas mentiras ridículas e indizíveis. A cidade de Natal candidata-se a disputa para ser uma das sedes da copa do mundo no Brasil em dois mil e lá vai bolinha... E o grande e genial passageiro profere em palavras claras, e nada mais do que claras, uma das grandes verdades da humanidade: “acho que Natal tem total condição de receber uma copa. Essa cidade é um paraíso. O trânsito aqui é uma maravilha, se comparar com Recife as ruas de Natal parecem um deserto. A violência aqui é algo extremamente aceitável, tudo corre dentro da normalidade, nada de errado, vivemos nos jardins do Éden, sem congestionamentos, sem problemas estruturais e, afinal, a copa só trará desenvolvimento, claro”.

Graças ao meu bondoso Deus uma verdade. Será que é possível ser tão difícil assim encontrar alguém que fale verdades nesse mundo? Será que aquele rapaz é abençoado? Às vezes penso ser ele o nosso novo Messias. Às vezes penso ser eu o novo diabo encarnado, afinal, a copa é um sonho pra todos, uma verdade cruel e inaceitável para quem mente. Pois nós mentimos, nós enganamos, nós traímos. E não porque somos mal-caráter, mas porque eles são gente de bem e pensam no futuro da humanidade.

Uma vez decidi guardar minhas meias-verdades até que elas virem duas mentiras completas para que eu possa contá-las a alguém. Por enquanto poupo os outros dos meios devaneios, dos meus delírios e da minha insuportável mania de se achar certo. Mas fato é que a soma das minhas verdades não consegue derrubar uma mentira sequer daqueles que supõem ter o controle.

Pois é, caro leitor! Não só motoristas... Passageiros também têm suas histórias...

Daniel Euzébio Pinheiro
Enviado por Daniel Euzébio Pinheiro em 17/03/2009
Código do texto: T1490499
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