Este ano resolvi mudar, fazer algo diferente

Este ano resolvi mudar, fazer algo diferente.

Voltei então ao tempo em que eu era criança e acreditava no bom velhinho de barba branca, roupa vermelha e sorriso incomparável. Naquele que na noite do natal vinha a nossa janela, recebia com carinho nossos pedidos e deixava debaixo da rede ou da cama os mais belos presentes de todos os tempos e no outro dia, quando acordávamos, nossos olhos brilhavam como se fossem estrelas de árvore de Natal.

Comecei então a vasculhar pelas gavetas das estantes encostadas e em desuso, a procura de folha e caneta. Queria fazer a lista de pedidos que iria fazer naquela noite ao bom senhor dos meus sonhos pueris. Uma lista como as de antes, escritas em letras caligráficas, legíveis, impecáveis, para que não houvesse erro na hora da leitura.

Cada gaveta que abria era como se eu estivesse abrindo minha própria vida. O barulho, a poeira, o cheiro do mofo, no mesmo instante em que cartas, fotos, bilhetes, cartões, convites, agendas... Nossa, quanta coisa ia saltando daqueles cômodos que há tanto tempo eu nem se quer lembrava que existiam.

Foi como se um retrocesso fizesse um vendaval na minha memória, um túnel do tempo, uma ponte se instalasse entre mundos díspares e uma leve tonteira a invadir meus sentimentos, tudo ao mesmo tempo, em segundos de tempo como piscar de olho. Alí mesmo sem sentir, sentei sobre minhas lembranças e debrucei-me sobre o desconhecido e sorria para mim, para dentro. Sorria sem mexer os lábios, sorria com os olhos e com minhas mãos trêmulas de emoção.

Passei longos e demorados momentos de volta a um tempo que até apagado de minha memória tinha sido. Tempo de recordação, encarnado levemente. Tempo que passa, que fica arquivado no arquivo morto ou na lixeira da memória intacto. Caso seja acessado um botão mágico, ele salta, sai do seu estágio de inércia e vem como ebulição, fervendo no sangue, na respiração. Um tempo morno, aquecido, um tempo que ferve a grau Celsius em frações de segundos. Eu mudo, ali, naquele mundo de tempos remotos, remontando velhos hábitos; montando quebra-cabeças de personagens, histórias até tanto tempo ficado para trás...

Comecei pela leitura de velhos cartões amarelados pelo tempo. Cartões de fim de ano, musicados, de encerramento de ano escolar com fotografia da turma toda em preto e branco. Cartão de aniversário, de convite missa de sétimo dia. Cada um com seu valor, seu significado. Olhei para o colorido e para as imagens e a cada novo cartão lido, um novo momento, uma nova vivência.

Passei a folhear as cartas com muito cuidado. As que me enviaram e os borrões das que eu enviava e foi aí que me dei conta de que um outro eu existia dentro de mim e eu não me dava mais conta deste fato. Um ser que escrevia, que gostava de escrever e escrevia longas e belas cartas aos amigos, as pessoas amadas, a luz da lua, da lamparina. Cartas de amor, versinhos rimados, folhas perfumadas, folhas douradas, enfeitadas e uma coleção de papel de carta.

Encontrei objetos: coleção de selos enviados por amigos de tantas partes do mundo, coleção de chaveiros de times de futebol, pequenas pelúcias de animais, porta-jóias e uma caixinha de música, nossa a caixinha de música de minha infância. Aquela pequena e doce bailarina que me fazia viajar pelo mundo nos seus giros... Frascos de água de cheiro vazios, pequenos frascos de amostra grátis que ganhava de tantas revendedoras de marcas famosa para a época. Os álbuns de figurinhas de atores, atrizes, cantores e cantoras famosas. Minha caixinha de pequenos trecos roídos pelas traças: papel de bombom, de chocolate, fotografias 3x4.

Encontrei então as recordações fotográficas. Quantos álbuns tinham ali e eu nem dava conta. Fotos de batizados, dos meus quinze anos, dos parentes que já se foram. Fotos dos mortos, dos velórios, dos domingos festivos e das quermesses. Cada foco uma história para ser lembrada e onde caminha todos?

Aos poucos percebia que meu coração ia ficando apertadinho tão apertadinho que passava a bater lentamente, paulatinamente para no momento seguinte disparar, trotar a velocidades de cem cavalos ao mesmo tempo.

As fotos, as pessoas, os lugares, os momentos...

Dei por conta de severas mudanças em mim. Há quanto tempo? Existem coisas na vida que parecem não permitir serem medidas. A velha casa, a velha mangueira, o balanço de pneu...

E de repente meus olhos teimosos, marejados se refletem no espelho da cômoda, pareciam querer inundarem meu rosto tão marcado pelos anos de vivência e maturidade....

Resolvi mudar, isso mesmo, fazer diferente.

Encontrei no fundo, lá no fundo da gaveta reminiscências de blocos de carta que usava num outro tempo para escrever cartas aos amigos. Bloco de folhas amareladas, como amarelado estava o meu pensamento naquele momento.

As coisas começaram a brotar...

Passei então a escrever com as gotas da saudade do meu peito meus desejos para serem depositados na meia do meu Papai Noel. Em pouco tempo percebi que os pedidos eram tantos que talvez não coubessem em uma única meia.

Comecei pedindo um novo coração. Percebo que esse que tenho já não mais desenvolve suas funções como devia. Trabalha compassado, falhando vez por outra como se fosse relógio a corda. Endurecido pelo tempo. Insensível coração que já não sente coisas que deveria sentir. Acredito que vive embrutecido querendo romper o contrato acertado.

Pedi um novo pensamento. Mais veloz, mais informatizado, mais de acordo com esses tempos, loucos tempos de correria, de... Minhas idéias já caducam e eu não consigo mais acompanhar a velocidade do novo que me assusta. Meu código de conduta precisa ser renovado. Um pensamento novo, ativado e interligado aos novos tempos.

Novos pés e novas mãos. O peso do meu corpo já não é sustentado pelos que tenho e os movimentos das mãos, nossa. Quero mãos que sintam esses apertos mecânicos. As minhas são tão sensíveis, tão humanas, tão solidárias que foram descartadas. Para este novo mundo, parece não terem utilidade, não são bem vistas.

Um par de novos olhos para poder alcançar a vista no horizonte e sempre descobrir o que há ainda de vir. Os meus já se cansaram de ver tantas cenas de violência.

Por fim, pedirei um bom descanso, num bom lugar, já que está tão difícil de continuar.

Resolvi mudar, fazer diferente e mesmo que Papai Noel não apareça para recolher minha meia e realizar meus pedidos, o fato de parar, listar e repensar a minha vida, já me dá motivação para continuar a viver até que meu corpo possa ser chamado para o repouso eterno.