INUNDAÇAO - ANO 2.008 - ITAJAI - SC - A SOBREVIVÊNCIA

Um Texto. Uma situação Verídica

Já vi muitas cenas de inundação na Televisão.

Já vi várias ao vivo nos Bairros da minha Cidade de Joinville, próxima à Serra do Mar na divisa com o Paraná.

Mas estar dentro de uma inundação, passar por suas privações, suas faltas e seu tédio foi uma experiência nova que ocorreu neste fim de semana. Muitos, talvez, já passaram pelas etapas que vou abaixo colocar ou até piores, porém é importante deixar registrado o que se passou e como se passou.

Itajaí

Trabalho na Cidade de Itajaí, Cidade portuária onde exerço a função empregatícia de Despachante Aduaneiro como Analista de Comércio Exterior. A região de Itajaí é a porta de entrada do Vale do Itajaí que vai desde aqui (do mar) até próximo de Rio do Sul, passando pela Cidade de Blumenau. Por ser um vale sua geografia é quase toda plana, ao longo de todo o Rio Itajaí e do Itajaí - Mirim que segue rumo a Brusque. Esta região portuária de Itajaí esta em franca ascensão e o número de containeres são impressionantes. Sua economia praticamente gira em torno de embarques e desembarques de containeres cheios ou carga consolidada (exportação/importação de mercadorias de/para Santa Catarina e o Brasil todo).

A construção naval de médias embarcações também tem crescido bastante. O trânsito de caminhões é constante e o número de Armazéns e Escritórios de Despacho além dos Órgãos da Receita Federal, Ministério da Agricultura e Ibama, criam uma rotina peculiar aos grandes portos brasileiros. Seu comércio acompanha esta trajetória crescente da economia e se multiplica dia-a-dia.

Como começa uma grande inundação

É neste ambiente de ritmo frenético de trabalho que a chuva nos atrapalha. E ela o fez por dois meses quase ininterruptamente. Por uma série de fatores climáticos Que não mudará o que já aconteceu os dias de chuva se repetiram, repetiram e repetiram. O solo com a sua capacidade de absorção exaurida começou a repelir a novas quantidade de água e a devolve-la por sobre a Terra molhada. E as encostas perderam a sua aderência. E o que começou a se ver foram os deslizamentos. Uns mais trágicos do que os outros. Casas inteiras foram soterradas. Famílias inteiras em sua rotina diária sucumbiram embaixo de barro e lama. Rodovias perderam seu traçado em questão de minutos. Obras da natureza, desleixo do Homem, Sinal de Deus? Não importa muito para quem partiu.

Neste fim de semana as águas da chuva e dos ribeirões, córregos e valas, juntaram suas forças no Rio Itajaí e Itajaí-Mirim e vieram céleres em direção ao Mar. Vieram pelo seu caminho natural e pelo excesso, cortaram caminho ao natural, Pelos aclives e depressões feitas pela natureza a milhares de ano e ocupadas pelo Homem de forma racional (?). E num lugar de alta densidade populacional ocorreu a tragédia anunciada.

Onde estávamos quando a água apareceu

Na sexta-feira sempre se dá uma “aliviada”. O trabalho é feito corretamente, mas Sempre de uma maneira mais leve. Parece que prenunciamos o sábado e o domingo Psicologicamente e flui melhor o dia todo. Na última sexta, 21/11, foi uma sexta-feira a normal, com chuva contínua. O sábado foi normal, com chuva contínua e o Domingo foi diferente, com chuva leve e inundação.

Resido numa kitinete, para quem não sabe, são diversos ambiente onde existem duas ou três peças aí consideradas um quarto e cozinha e um banheiro, ou cozinha+quarto+banheiro.

O que muda como sempre são os valores. Mas para uma semana de trabalho diário, Pouca diferença isto faz. Importa é que você pode fazer o seu almoço e jantar com liberdade e do jeito que você gosta e descansar. Neste local, com mais de cem kitinetes existem bastante moradores. Nesta oportunidade em torno de 80 pessoas aproximadamente. No recinto andar térreo E andar superior. No sábado escutávamos notícias de que haveria inundação, era fato consumado. Mas aqui neste local? Havia dúvida no ar. Este lugar é central, tanto que tem um Hotel em frente. Um morador mais antigo da rua, com ares proféticos veio nos mostrar aonde tinha chegado a famosa última enchente. Se subir... Disse ele calçado em sua bota... Como da última vez em 1983, chegará até aqui! E apontou com seu guarda-chuva, um degrau da kitinete no estacionamento e próximo das portas das kitinetes inferiores.

Até aonde chega a água de uma inundação?

O Senhor do Guarda Chuvas quase acertou. Passou mais ou menos meio metro acima do esperado por ele. O que isto significou? Todas as kitinetes da parte inferior invadidas pelas águas sujas e contaminadas de uma cidade poluída de lixo, óleo e resíduos fecais.

E no meio da noite, saíram apressadamente com suas roupas do corpo, documentos e um objeto ou outro, colchões e roupa de cama. A água encharcou seus móveis, as geladeiras e as paredes quase um metro acima do piso.

As pessoas rumaram para o primeiro andar e ali ficariam por mais dois dias e duas noites.Os carros no estacionamento ficaram submersos até a altura das janelas. A água da enchente tomou aproximadamente setenta por cento da Cidade de Itajaí. Cinqüenta por cento de forma total, trinta por cento de forma parcial e apenas vinte por cento sem danos. A inundação tornou impraticável qualquer tipo de ação. Qualquer deslocamento incidiria em adentrar na água na altura da barriga ou do peito. Ser contaminado por elas ou sofrer algum tipo de acidente em buracos escondidos sob a água nas calçadas ou nas ruas.

O Confinamento

O que fariam oitenta pessoas aproximadamente em um reduzido espaço físico? Por haverem bastantes kitinetes no andar superior havia possibilidades de se andar de uma parte a outra como forma de exercício. Mas, sempre era um espaço limitado e o inconformismo era questão de tempo. No início como novidade da infeliz da situação

As conversas e tomada de decisões. Assim que a primeira atitude foi a escolha de um local para almoços, cafés e jantares coletivos. E a escolhida foi a lavanderia. Imediatamente surgiram as mesas, cadeiras, panelas, garrafas témicas, pó de café, açúcar, fogão a gás, comida variadas e água potável que ainda havia disponível nos ambientes. E neste ambiente se passaram os melhores momentos dos dias de clausura.

As Cozinheiras, e os almoços, jantares, os cafés ..

Cozinheiras do improviso fizeram almoços memoráveis, feijoadas, virados, até galeto na brasa. Doações espontâneas surgiram de diversos moradores das kitinetes. Alguns ofereceram suas últimas alimentações, Sua última caixa de fósforos, litro de água, arroz, macarrão, feijão, carnes. Mas nunca seu último sorriso. Todos ofereceram sua amizade, sua franqueza, suas melhores Piadas, suas melhores histórias, seus melhores sorrisos, suas melhores avaliações da situação e das possíveis causas e soluções. E ninguém esmoreceu. Pessoas se conheceram que nunca tinham se cumprimentado anteriormente. Dividiram quartos, banheiros, roupas, assuntos, opiniões, decisões e as melhores soluções foram encontradas.

As profissões de todas as categorias: atendentes, representante comercial, despachantes, Aposentados, contadores, motoristas de caminhão, donas de casas.técnicos...

As conversas, os jogos, a curtição (tédio) das horas olhando a marcação da água.

Cada qual tinha a sua marcação d’água. Um selim de uma bicicleta estacionada e com cadeado presa em uma grade tinha simpatia de uma grande maioria dos moradores. Outros preferiam a marca no azulejo. Outros da barra do Portão eletrônico. Outros os frisos dos carros, as maçanetas, as placas... Enfim todos com suas medidas. Mudavam de altura conforme nosso ânimo.

Desceu! Falavam alguns. Subiu! Falavam outros... Que nada, ficou parado horas e horas. Alguns passavam as horas jogando truco. Outros conversando, contando piadas, histórias passadas. A palavra mais usada foi água, com certeza. Quantas vezes ela foi pronunciada, seria questão de contagem eletrônica.

O racionamento da água e da comida, das velas e dos fósforos.

As horas do almoço e do jantar eram as mais complicadas.

A falta de água potável sempre exigia que alguém se prontificasse na busca dela. E assim diversos voluntários o fizeram. Adentraram na água contaminada e voltaram Com a água que conseguiam nas vizinhanças, com algum distribuidor ainda aberto ou Com doações. Uma noite entre os dias de chuva e das águas paradas.

O medo de um choque elétrico forçou o desligamento da energia elétrica. E nenhum medo é maior do que da escuridão ou do desconhecido, ou desconhecidos. Ouvíamos notícias de diversos saques ocorridos nas vizinhanças por pessoas mal intencionadas. Vândalos mesmos. Bandidos mesmos. Necessitados? Alguns talvez.

A descida da água, presos amotinados, tiros, helicópteros, aviões.

No vai e vem das águas, escutamos o que pareciam tiros numa possível fuga de um Presídio ao longe. Boatos de que haveria água contaminada abundante naquele local. Os helicópteros se sucediam. Para o norte, para o sul, para o leste. Ás vezes pareciam pássaros alados, outras vezes, maus presságios. Os aviões descendo normalmente na Cidade vizinha, Navegantes dava a impressão

Que era somente um pesadelo tudo aquilo e que logo acordaríamos.

O banho, a conversa amiúda, as notícias de tragédias pela rádio e pelos celulares.

A falta de água requer artifícios higiênicos antigos. Com um copo de água se fazem “milagres’. E o velho rádio com suas pilhas quase gastas também nos mostram que alguns aparelhos sempre tem sua serventia. E o rádio nos deixa A par do Mundo e das tragédias na região. Nossa situação é complicada, mas existem Piores situações nas redondezas, mortos e desabrigados. Em contraste ao velho rádio os celulares nos permitem atualizações com o Mundo e registrar em fotos os acontecimentos no local.

As águas baixam, os desalojados retornam.

Depois de muito tempo, dois dias e duas noites se passaram e a água baixa. Começa a lavação das kitinetes com a própria água da inundação. Água potável só no dia seguinte, talvez. Luz, da mesma forma. Tenta-se retornar a rotina também. Nada fácil.

O que guardamos em nossas memórias nunca mais sairá.

A cozinha é desfeita, os carros além de lavados, terão sua troca de óleo, Velas e estofamento trocados, se necessário.

Perdeu-se muito materialmente, mas a Vida saiu preservada e é com ela que Vamos em busca de nossos sonhos, pode ser que atrasou um pouco, mas Chegaremos lá. A Cidade de Itajaí esta praticamente destruída. Seu maior patrimônio, o Porto, teve berços de atracaçao levados pela força da água e levará tempo para recuperar tudo. Dependerá de ajuda, muita ajuda de todos os governos e das pessoas,

principalmente.

O que mudou?

Tudo tem um sentido em nossa Vida.

Até as inundações que podem ser de água, de amor, de dor, de solidariedade..

Fortalecemos nosso respeito pelas pessoas, suas diferenças, suas virtudes, sua garra E disposição. E conhecer suas opiniões. E elas as nossas. Aprendemos a respeitar a Natureza e seu poder que ainda esta acima do poder dos Homens.

*

Lembrete nas inundações:

Mantenha a calma

Organize-se

Antecipe-se aos problemas

Racione a água e a comida

Evite entrar e beber a água contaminada (leptospirose – urina do rato, a doença mais fatal)

Mantenha o astral elevado, apesar da situação

Do autor:

Aos velhos amigos, aos novos, aos parceiros deste ambiente singular, numa situação atípica.

Números em SC até o dia 27/11/2008

78.656 desalojados/desabrigados

19 desaparecidos

97 mortos (alguns enterrados nos quintais de suas casas)

Robertson
Enviado por Robertson em 27/11/2008
Código do texto: T1305700