Mestre Rodrigão comentava:
O silêncio das tempestades assusta mais do que o som do trovão”.
- Nestas noites não tem nenhuma alma de pescador perdida -Todas elas pedem perdão”.



Esperança nunca retornou.
Partiu com eles mar adentro.
Esperança estava no caís do porto quando eu cheguei e tudo começou.
Falava-se em grandes cardumes de anchovas na costa do Rio Grande.

Júlio
Júlio era o mais engraçado. Vivia rindo e fazendo rir.
Achou engraçado quando a casa de sua mãe foi invadida pelas águas da imensa maré alta que surgiu de repente numa noite de lua cheia.
Os móveis assim como seus brinquedos de madeira ficaram encharcados e quase Perdidos.
A casa de pau a pique foi novamente reformada e colocada mais para cima do barranco. Seus brinquedos adotados pelos vizinhos se transformaram em novos heróis e sobreviveram.
Era alegre a despeito da miséria e da falta de sonhos de seus pais.
Conformados com as situações difíceis colocavam no destino e na natureza o futuro de todos eles.
O menino ia sempre até o molhe de pedras para ver os grandes navios entrarem no canal de acesso ao porto. Ali formava os seus sonhos de grande navegador como comandante dos imensos navios cargueiros abarrotados de containeres. Imaginava as grandes maquinas a 80 km por hora sob seu comando mar adentro.
Era ali também que via seu pai, o mestre Rodrigão chegar com a baleeira cheia de pescados. Ora sardinhas, ora anchovas, robalos, tainhas, e peixe-espada. Saia dali correndo descalço sobre a areia da praia acenando para o barco e se perdia de vista, divertia-se soltando pipas e jogando bola com seus amigos.

Cresceu olhando para o mar. Não conseguia imaginar seu futuro longe dele.
E assim o tempo passou e os grandes sonhos foram diminuindo de tamanho.
De comandante aos grandes cargueiros já se conformaria em comandar a pequena baleeira de seu pai.

Em determinado dia mestre Rodrigão, velho e com pouca visão achou que era hora de passar o cargo e o Esperança para Júlio.

Fábio
Fábio nascido e batizado nas águas do rio Itajaí era meio homem, meio peixe.
Nadava melhor que caminhava.
Havia nascido de um parto prematuro fruto de uma decisão prematura de um médico interessado nos valores da cesariana. Nasceu com seqüelas respiratórias e como solução descobriu-se que a natação seria seu remédio pela vida toda.

Suas proezas de nado espalharam-se pela região. Atravessava o rio em minutos e chegava às ilhas, próximas antes dos barcos a remo.

Por isso foi escolhido para o seleto grupo dos destemidos pescadores a bordo do Esperança. Tinha desejo de ser reconhecido como um homem de verdade. Mestre Rodrigão reconhecia seus méritos e lhe queria vencedor no Esperança.

Robertson
Robertson aprendeu a cozinhar cedo.
Seu pai beberrão de esquinas onde bebia ficava.
Mas o tempo tem suas cadências e às vezes, nos leva a encontros inusitados.

Seu pai estava na beira do trapiche em noites de estrelas e encharcado de cachaça achou que poderia criar asas e voar até elas.
Caiu nas águas geladas do rio e desapareceu, levado pela correnteza. Acharam ele no dia seguinte, afogado e com uma estrela do mar em sua boca.

Rita
Rita, ao contrário, mãe de Robertson era mulher de fibra e sabia o valor do amor na vida de um homem e principalmente de seu filho.
Ensinou-lhe cedo a educação, o respeito, à correção e mais, em tempo de descriminação, que saber cozinhar não era coisa só de mulher, mas sim uma profissão de futuro para um homem também.

Cobriu a falta do pai com seus conselhos e nunca falou mal dele, assim como nunca explicou as marcas e cicatrizes em seu corpo.

Neste ambiente Robertson cresceu com infância normal, brincando e ajudando sua mãe nas grandes receitas e salgados que vendiam na feira local. Aprendeu receitas do mundo afora.

Na feira compareciam chefes de cozinha dos navios transatlânticos internacionais que iam até li pela curiosidade da culinária local e entre um inglês arrastado e outro acabou descobrindo as palavras chaves para se comunicar e para descobrir os segredos de substituir os produtos estrangeiros por produtos da terra.Criou pratos especiais e reconhecimento local.

Julio era seu melhor amigo e a pedido dele pediu licença de 15 dias para seu chefe no Restaurante onde também trabalhava para acompanhá-los como cozinheiro na última pescaria do Mestre Rodrigão no Esperança.

Jonathan
Jonathan alto e brigão era conhecido por sua força extraordinária. Contavam que havia brigado com 5 homens e nenhum ficou de pé.
Era pesado, mas rápido nas ações e no pensamento. Atuava a tempo com Mestre Rodrigão e todos o respeitavam. Era rude, mas fiel e nenhum amigo seu ficava sem defesa, mesmo ausentes.

Seu divertimento quando criança era surfar, andar em grupos de bicicleta pelas redondezas da cidade. Gostava de acompanhar seu avo na venda de pescados de porta em porta.

No barco valia por dois homens na pesca e retirada dos peixes, das redes e seu armazenamento nas câmaras frias. Muitos acreditavam que Mestre Rodrigão passaria para ele o comando do Esperança, na sua aposentadoria.

Para Jonathan tanto fazia o que mais gostava era do mar, que dizia ser o seu segundo lar. E como segundo mestre embarcou no Esperança.

Mestre Rodrigão

Mestre Rodrigão nunca gostou de mulheres em seu barco, aliás, até para o namoro dizia-se que não tinha muita destreza. Não gostava de beijar.

Teve um grande romance, mas acabou com ele quando falou a namorada que preferia ter mais um barco a ter filhos.

Ela partiu para outra cidade. Ele para o mar.
Soube anos depois que ela estaria grávida, mas nunca procurou esclarecer o assunto.

Dizia que as mulheres traziam má sorte.
Quando na alta estação a pescaria fracassava tinha que optar por transformar seu barco em cruzeiro Marítimo, guardadas as devidas proporções.
Viagens curtas até as ilhas da região. Nestes momentos, passava o Esperança para Jonathan e ficava descansando em sua casa. Consertava as redes com os outros pescadores e preparava o material de pesca para as futuras pescarias.


Fayana
Nesta última pescaria seu filho Júlio queria levar uma amiga sua Fayana para documentar toda a pescaria, desde os preparativos até a volta. Mestre Rodrigão disse que não, mas sem a mesma firmeza na voz, como das outras vezes. No fundo sentia-se triste por parar com as pescarias e “abandonar o barco”.
Gostaria de emoldurar seu trabalho para sempre, em fotos, vídeos, letras, não importava sentia necessidade de retratar para seus netos e amigos o gosto pelo mar e o quanto devia a ele.

Assim um tabu foi quebrado, como o tempo quebra as horas e separa os minutos entre a vida e a morte.

A Véspera da Viagem
A rádio informava tempo bom. A tábua de maré não acusava nada de diferente.
O dia estava realmente maravilhoso. Temperatura de 30 graus. Sol a pino. Vento sul leve a moderado.

Os amigos e curiosos se acotovelavam no cais aguardando a chegada do Mestre Rodrigão, que para espanto de todos chegou acompanhado de Rita.
Falou para os embarcados que sempre foi desejo dele embarcar Rita em suas viagens em face de saborosa moqueca de peixe que fazia. Muitos não entenderam, mas, todos riram. E como seria a última viagem tudo era diferente. Desta forma duas mulheres embarcaram.

Mestre Rodrigão sempre, tinha além das consultas à marinha, as rádios, aos amigos pescadores, um feeling de seus 50 anos de pescaria...algo que não se aprende, se adquire.
E nesta viagem atarefado com os preparativos e mais a entrevista para gravação, não andou pela praia e nem subiu no farol o que sempre fazia uma noite antes de embarcar.
Naquelas oportunidades, observava o vento, o vôo das gaivotas, a quebra das ondas, a direção das nuvens e o sentido de seu coração. Talvez hoje seu coração estivesse abalado.


Capitão (Daniel Crescêncio)
Capitão, como era conhecido Daniel Crescêncio, nasceu num ilha mágica, Florianópolis. Cercada de belezas naturais esplendorosas e água por todos os lados, descobriu sua vocação para a Marinha muito cedo.
Aos cinco anos já fabricava barcos de papel em escala para seus amiguinhos e brincava com os marinheiros na Capitania dos Portos, nos dias de visitas. Não conheceu seu pai, sua mãe lhe dizia que tinha nascido de um amor verdadeiro e era isso que importava. Mais tarde Capitão soube que o romance fora em Itajaí onde tinham uma tia que os adorava.

Tanto que se mudou com ela quando tinha dez anos para Itajaí onde conheceu tudo o que atracava. Corvetas, Destróier, Navio Escola, Fragatas, além de ter em sua casa inúmeros álbuns de figurinhas, enciclopédias, coleções e fotos destas embarcações, era apaixonado pela fauna e flora marinha.

Nada passava despercebido pela sua atenção que se se relacionava ao mar e ao contato do homem com ele.

Aos dezoito anos serviu a Marinha Brasileira e de lá a Aeronáutica na área Marinha. Nunca mais saiu. Pouco tempo permanecia em terra. Foi transferido inúmeras vezes de Itajaí para o Rio de Janeiro, daí para Recife, para Salvador e aos quarenta e cinco anos para o Santos.

Adquirira durante todo este tempo o respeito e admiração de Todos na marinha e Aeronáutica, desde os recrutas até o alto comando que já havia lhe enviado em diversas missões perigosas Desde o mar da Amazônia (seus grandes rios) até as plataformas da Petrobras, em missões de salvamento.

Era responsável pela região das costa entre Santos e o Paraná, porém sua divisa era marcada por seu coração, nunca tinha perdido um homem ou um resgate em toda sua trajetória.
Nada lhe preocupava naqueles 08 de Setembro de 1988.


A Partida
Mestre Rodrigão e seus companheiros partiram no alvorecer, com os atrasos normais para uma grande ocasião. Alguns queriam soltar foguetes, mas o Mestre Rodrigão não permitiu. Habituou-se ao silêncio do Mar E queria que fosse um dia normal, sem alardes.
Todas estavam lá, Júlio com suas brincadeiras, deixava a todos alegres e sorridentes.
A preocupação de Rita e Robertson foram os alimentos e seus ingredientes. Tudo fora devidamente preparado e marcado.

Poucos perceberam a quantidade de alimentos fora calculados por eles para 5 dias a mais do que o necessário.

Jonathan imediatamente iniciou o serviço de desengate das amarras e em minutos Esperança estava liberta e de frente ao canal do molhe.
Fábio prostrado na proa do barco acenava para todos e jogava beijinhos para a esposa Andréa, grávida de cinco meses.

Fayana, falava incansavelmente o tempo todo para obter uma melhor fotografia dos embarcados.
Sua preocupação no momento eram os raios de sol em cálculos de incidência para uma melhor fotogenia. Conhecia diversas línguas e por isso sua facilidade de falar com todos e em todos os momentos.
Era rápida, objetiva e atenciosa.

Todos queriam ser fotografados por ela nas melhores posições, menos Jonathan para quem as fotos traziam tristezas e saudades. Nunca acreditou que elas marcavam os momentos de felicidade, mas sim que nos afastávamos destes momentos por nossa própria conta.

Mar adentro

O encontro das águas doces com as salgadas e as primeira ondas, o leve vento sul lhes materializou o destino, pescaria em alto mar para 5 dias de labuta, divertimento e grandes imagens.
Cada qual curtiu os seus momentos na forma de seus pensamentos. Alguns se benzeram, outros beijaram a água do mar e outros apenas silenciaram.

A rotina da tripulação

Nos dois primeiros dias a preocupação de Fayana, Rita e Robertson mudaram. O enjôo lhes tomava a maior parte do tempo. Apreciavam mais o fundo do barco e deitados de barriga para cima, sob o forte sol e o imenso céu azul viam vezes ou outras as gaivotas majestosas em vôos rasantes sobre o barco a procura de peixes.

Até mestre Rodrigão aprendeu a operar a câmera fotográfica, e ele ria feita criança pequena, batendo foto dos enjoados. Os demais estavam envolvidos na labuta diária, paravam uma vez e outra para lançar as redes e as recolhiam com algum sucesso.

No terceiro dia adentravam as águas gaúchas e um vento frio começou a açoitar o barco e seus tripulantes. Estavam preparados e agasalhados e não pararam a rotina pesqueira.

Almoços, jantares e...A grande rede

Os melhores momentos eram os almoços e os jantares. Os pratos preparados pela Rita, venciam o cansaço de todos facilmente, ninguém resistia. Nem quando a grande rede engatou na hélice e os fez parar um dia todo para o conserto os desanimou.

Neste dia enquanto Fábio, com a ajuda de Júlio, mergulhava e recortava a grande rede que envolvia a hélice, Jonathan, Mestre Rodrigão e Roberto lançavam ao mar as outras duas redes, menores e de mais fácil manuseio. Para surpresa e alegria geral as duas redes voltaram ao barco, abarrotadas de anchovas.

Recolheram todo o pescado e um ritmo febril de serviço tomou conta do barco. Todas trabalhavam inclusive as mulheres. Separavam os peixes por tamanho e os levavam para a câmara fria. Foi uma tarde toda de ótima pescaria. Além das anchovas, lulas e peixe espada foram pescados. Tarde da noite a hélice estava liberada, mas não foi testada com o motor ligado.
A grande rede foi lançada novamente já consertada com bóias luminosas junto as duas pequenas para pesca do peixe espada e anchovas e seriam recolhidas  na madrugada seguinte.

O Rádio

O único senão foi o rádio não dava mais sinal de contato. Mestre Rodrigão chamou então seu filho, Júlio que havia estudado eletrônica à distância, bem longe. De frente ao rádio Júlio parou de rir. O defeito era mais grave do que parecia no início. Um forte cheiro de queimado estava impregnando o ar da cabine.

E o risco de um incêndio fez Mestre Rodrigão optar por não tentar religar o rádio naquela noite.
Todos sabiam da importância do rádio que os mantinham informados sobre qualquer mudança.

Os sinais de mudança climática

Naquela noite Mestre Rodrigão e Jonathan não dormiram. Começaram a analisar os problemas que tinham pela frente. As gaivotas tinham sumido. Observaram ao longe dois cruzeiros marítimos em velocidade acima do normal seguindo rumo ao norte.

Na madrugada, noite ainda, mais dois navios que deveriam ser cargueiros também desapareceram rapidamente. Um sentimento de aflição tomou conta de Mestre Rodrigão, aquele feeling de outras pescarias ressurgiu, mas de uma forma como nunca tinha acontecido,

Como tinham hesitado de acordarem aos demais pelo barulho do motor, mudaram rapidamente de idéia. Tentaram ligar o motor.. Então um barulho repentino se fez ouvir e o barco balançou. Todos acordaram sobressaltados. Jonathan quase foi atirado nas águas geladas, Mas equilibrou-se e correu ao bordo do barco.

Os dois tubarões

O espanto foi geral! Dois enormes tubarões tinham vindo atrás dos cardumes de anchovas e atacaram aquelas que estavam nas redes. O prejuízo era certo.

Com suas enorme mandíbulas os tubarões arrebentaram as malhas e estava comendo os peixes. Mas o mais grave, eles estavam quase abalroando o barco na proa. Mestre Rodrigão já tinha escutado de barcos que afundaram por um só tubarão e ali havia dois. Um preso na malha e tentando se livrar dela. O outro que parecia ser mais feroz batia no barco como que tentando ajudar seu parceiro.

O medo fez o tamanho dos tubarões aumentarem enormemente. Rita e Fayana choravam copiosamente na porta da cabine. Os demais pareciam estátuas congeladas pelo frio e pelo medo sobre o convés.

Subitamente, Júlio correu para a cozinha e retornou com duas enormes peixeiras e lançou uma para seu pai que entendeu o recado. E correram os dois mais Jonatham para o costado do barco e passaram a cortar as malhas. O barco em alguns momentos adernava perigosamente.

As malhas molhadas eram de difícil corte e no vai-e-vem da lâmina outro batido fez Júlio passar a lâmina sobre seu punho e um jato de sangue jorrou. Imediatamente Robertsson correu em seu auxílio e fazendo um torniquete estancou o sangue.

A adrenalina a mil
 
Júlio foi levado para a cabine onde as mulheres procederam com maiores cuidados. Fábio assumiu o lugar de Júlio. Tudo estava mudando naquele momento, a lua que antes prateava o mar sumiu. Uma chuva leve começou a cair. As ondas se ergueram. O vento aumentava minuto a minuto. Jonathan na cabine tentava ligar o motor. Após duas tentativas o motor pegou.

Todos gritaram aliviados. Porém o barco não saia do lugar. A hélice provavelmente estava novamente emaranhada, agora pelas redes pequenas. O tubarão mais feroz parou de bater no barco. Fábio acabou de cortar a rede antes de Mestre Rodrigão e o tubarão no afã de se livrar puxava o barco para baixo.

De repente libertou-se e o barco voltou abruptamente ao prumo. Chamando palavrões, recolheram o que restou das redes pequenas e as lançaram no interior do barco.

As dificuldades vistas  à luz do dia

O dia demorava a clarear e perceberam então as verdadeiras dificuldades que teriam pela frente. As ondas já passavam de dois metros de altura, o vento assobiava e passou a ser difícil se comunicar sobre o convés.

Mestre Rodrigão chamou todos para o interior da cabine e lá num pequeno espaço tentaram recuperar suas energias. As respirações ofegantes embaçavam todas as janelas do barco. O medo os deixava de olhos arregalados e cabelos eriçados. Júlio estava deitado sob cobertores. Ardia em febre. Estava medicado, mas precisaria de um médico urgente.

Estavam a um dia da costa em velocidade acelerada, calculou Jonathan e um frio passou por sua barriga.
Nestas situações se resolvem primeiro os problemas imediatos e quando se tem tempo para pensar é que tem-se a dimensão da situação. Mestre Rodrigão falou em voz alta, o que ninguém queria ouvir.

“Estamos a quatro dias e meio em alto mar, nosso barco não se move sozinho mas levado pelo vento e pelas ondas em direção ao norte, talvez para o mar adentro, não sei mais. Nosso rádio esta enguiçado
E é impossível nas condições lá fora, tentar liberar as hélices. Teremos que enfrentar toda a tempestade aqui dentro e quem souber rezar, não precisa se ajoelhar é melhor rezar se segurando em alguma coisa.

Os cuidados com a Tempestade

Vamos aguardar com calma, e cuidado. Evitar que mais pessoas se machuquem. Esperar que a tempestade passe, a hélice seja solta, o motor funcione e aí então..., neste momento uma vaga com mais de 3 metros de altura abateu-se sobre a popa. A água chegou a entrar na cabine e todos se seguravam para não cair. Júlio que estava no estrado, caiu de cabeça no chão e seu ferimento abriu novamente.

Fábio e Fayana o reergueram sobre a cama e começaram a cuidar do ferimento. Novamente outra onda esparramou-se sobre o convés e entrou pela escotilha quebrando os vidros e tudo o que via pela frente. Foram momentos de pânico em que todos se seguravam para não serem levados pelas águas.

Não sabiam mais quantas ondas passava por sobre o barco. Sentiam que subiam, subiam e de repente, caiam e subiam novamente e caiam... O velho Esperança fazia jus ao nome pensava Mestre Rodrigão mal acreditava que estavam sobrevivendo a tamanha força descomunal.

As sobras do furacão

O furacão demorou dois dias para se acalmar ao final do quais poucas partes do barco resistiram.
Entrava água no porão e havia necessidade de sempre ter alguém lá para impedir sua entrada.
O mastro não existia mais e até as redes foram levadas pela tempestade. O que sobrou estava presa na
Hélice de tal forma que somente tirando o barco da água poderia ser resgatada a hélice.
E o motor nem pensar. Estavam à deriva.
O sol retornou, a água doce escasseava, a alimentação graças a Rita duraria mais dois dias. Passaram-se nove dias de uma viagem que seria de cinco dias.
Não sabiam mais onde estavam. A boa notícia é que Júlio se restabelecia dia a dia. Seu ferimento começou a cicatrizar. Roberto usava uma erva que trouxera para os pratos exóticos para criar um ungüento que fez um efeito fantástico sobre o corte.

As horas que não passsam, o socorro que não chega

Todos estavam estafados. Acreditavam que o pessoal de terra já tinha sentido a falta de Esperança e não entendiam tanta demora. Alguns deitavam no convés e ali ficavam horas sem falar com ninguém, apenas olhando o céu e o mar. Nenhum pássaro. O azul tornou-se uma cor enjoativa, o que mais queriam era ver uma cor qualquer de um avião ou de um barco.
No outro dia o sol começou a ser evitado. Os lábios se ressecavam e rachavam. Andavam com panos na cabeça e mal conseguiam ver o horizonte com os olhos inchados.
Com o restabelecimento de Júlio alguma piada se ouvia a bordo e o ambiente ficava menos tenso sem perder sua trágica realidade. A comida antes racionada agora era só uma vez por dia e a água obtida
Nas câmaras frias chegava malcheirosa e suja.

As ondas do Rádio ressurgem

Júlio e Fayana começaram a fuçar no rádio, trocavam fios, inventavam fios, destruíam fios.
Levantaram o tinha sobrado da antena e colocaram sobre o que tinha sobrado da cabine.
Na manhã do décimo dia ouviu-se um grito. Era Fayana. Júlio tinha conseguido fazer funcionar o rádio, por alguns minutos. O chiado conectou todos eles imediatamente à civilização e nos poucos minutos que se passaram acreditaram que poderiam sobreviver. Todos se aproximaram de Júlio e do rádio. O silencia era total. Só chiado, chiado, chiado... e nada de contato.
Assim passou a tarde toda e a noite também sempre com alguém na tentativa.

A Visão de Mestre Rodrigão

Nesta madrugada Mestre Rodrigão acordou sobressaltado. Tinha visto seu falecido pai apontar seus dedos calejados em direção a proa do barco e sorrir. Mestre acreditou que era um bom presságio.
No décimo primeiro dia pela manhã sob os Auspícios de um arco-íris e sobrevoados por um bando de albatrozes que surgiram não se sabe de onde e resolveram descansar sobre a antena, Fábio conseguiu o primeiro contato.

O primeiro contato

Primeiro inaudível, depois aos poucos o contato foi melhorando, melhorando e escutou-se uma voz – por favor, identifique-se! E repetia.. Por favor, identifique-se, nome e posição em que se encontram... Fábio começou a falar sem parar... Como haviam chegado a um lugar nenhum e como não sabiam onde estavam.

Rita teve que lhe dar uma cotovelada para fazer ele ouvir o contato que tentava responder. . Imediatamente do outro lado ouvi-se... Aqui é da Guarda Costeira. Navio salva-vidas Santo Antônio. Quem lhes fala neste momento é o Capitão Carlo Setúbal. Estamos a procura de vocês fazem 3 dias. Estávamos quase finalizando esta operação sem sucesso. Não temos suas coordenadas, mas avisarei ao Capitão Crescêncio da Operação de Salvamento Aéro que tentará resgatar vocês.

O que peço é que não se apavorem, mantenham a calma, evitem esforços físicos, descansem, mas fiquem atentos ao horizonte a aos céus porque é por aí que vira o socorro e Deus há de nos guiar até vocês.
O rádio que vocês usam é muito potente. Tem um alcance de 60 milhas e com o deslocamento do barco sem rumo, acho que para o norte, é difícil descobrirmos onde estão. Aumentaremos nosso raio de busca
Aérea.

Um misto de euforia e desânimo tomou conta de todos. Uns mais alegres outros nem tanto.

O Esperança, a Esperança e o tédio

Não tinham mais alimentação e a água já estava provocando diarréia e vômitos em Robertson, Fayana.
E Rita... Resolveram fazer mais dois revezamentos. Já tinham o problema do porão onde a água insistia em penetrar cada vez em mais quantidade. Neste momento Jonatham se encontrava lá, reclamando pela troca do plantão. Um ficaria na proa e o outro na popa. Mestre Rodrigão preferiu a proa, lembrando de seu sonho. E assim fizeram. O rádio funcionou mais duas horas e queimou novamente, desta vez quase toda a fiação interna.

Décimo nono dia, uma gaivota parecendo um avião

No décimo nono dia, após o alvorecer, Rita estava encostada no bordo arrebentado da popa, vomitando o que restava no seu estomago quando observou ao longe sem saber distinguir se sobre as águas ou se no céu um vulto negro, pequeno, parecendo um gaivota... o vulto foi crescendo e Rita teve impressão que fazia barulho. Tentou chamar os demais, mas sua voz soava como um sussurro. Olhou em direção a Mestre Rodrigão deitado sobre as tábuas revoltas na proa..porém o mesmo olhava fixo para o mar em outra direção.
Rita tentou levantar-se, mas já tinha chegado até ali rastejando e não conseguiria se erguer.
Num esforço sobre humano, que poderia ser o último que faria se pos de pé. Encheu se pulmão com todo o ar que Deus lhe enviou e gritou... UM AVIÃO! UM AVIÃOOOOOOOOOOO... E caiu desmaiada sobre as cordas enroladas na ancora.

O estado físico e psicológico dos sobreviventes

De imediato como se fosse um alimento, uma benção, uma injeção ou um tapa... Os demais levantaram, menos Mestre Rodrigão que permaneceu olhando em direção a proa...
Gritavam... se erguiam, caiam, batiam com paus....facas, cordas, o que tinham á mão.
Fábio não conseguia mais andar.. Estava todo queimado pelo sol e urinava sem controle, Jonatham já tinha perdido sua robustez e devido a ficar No porão inundado por muito tempo tinha contraído tuberculose e tossia sem parar... Fayana não falava havia dias..sua garganta não permitia..ínguas e a falta de alimentos lhe fizera um corpo esquelético.
Robertson gemia num canto do barco... Espumava pela boca e botava a língua para fora a todo o momento...
Seus lábios estavam rachados e sangravam... Julio se encontrava abraçado ao rádio. Tentaram tira-lo dele, mas em vão..dormia com o radio, fazia suas necessidades com o rádio, falava o tempo todo com o rádio.
Seu corte já abrira duas vezes e o principio de uma gangrena era questão de tempo, balançava o rádio em direção ao avião e gritava palavrões...
Mestre Rodrigão emagrecera, sua fama de grande homem dos mares virara numa traiçoeira depressão.
Com horas de júbilo e horas de choro. Nunca entenderia porque em sua última viagem ao mar fora pego de surpresa. Esqueceu que o que afoga a Vida não são as águas, mas o Tempo. Não estava mais naquele barco.

E o avião passou... Rasante sobre o barco....

Os primeiros socorros e o resgate

Numa manobra arriscada, desceram dois pára-quedistas. Um Capitão. Seu nome, Daniel Crescêncio.
O outro era médico, jovem, cheio de vida e isto foi trazido por aquele pequeno grupo de homens vindos do céu para aquele encontro em alto mar, sob um sol de 30 graus, vento nordeste e barco à deriva....
Um barco da Marinha Brasileira os resgatou após mais um dia.

A volta a vida de todos a vida normal

A notícia deste resgate ultrapassou as fronteiras, foram entrevistados, fotografados, prestaram declarações e depoimentos. Cada qual permaneceu internado no tempo de sua cura...

Mestre Rodrigão
o último a sair foi Mestre Rodrigão..andava esquecido mas nos momento de lucidez, lembrava de tudo e de todos...

Rita e Robertson
Visitava Rita e Robertson no Restaurante que compraram e ali conversavam sobre a sobrevivência, o amor à vida.

Júlio
Voltou às águas depois de um ano. Não encontrava emprego e enfrentou o maior desafio. Embarcar novamente em pescarias de alto mar. Sobreviveu a todas e comprou seu barco. Colocou o nome de Rodrigão.

Fayana
Fayana se recuperou bem e rapidamente. Aproveitou os filmes que sobreviveram a tragédia e mais os depoimentos e suas observações, publicou um livro. E vendeu muito bem. Conheceu um jornalista em umas das entrevistas, se casaram e vivem bem em São Paulo.

Fábio
Teve aumentado seu problema respiratório, mas era tratado com muito carinho por sua esposa Andréa e seu filho. Trabalhavam no mercado público com uma banca de peixe e suas histórias faziam de sua banca a mais visitada e com a melhor clientela.

Jonathan
Tinha na época do naufrágio 40 anos e amava o mar. Não sabia porque.
Ao se restabelecer dos traumas optou por ficar em terra firme. Consertava barcos, redes.
E contava histórias para as crianças à beira do caís. Formou um time de futebol de meninos
Nunca casou. Dizia que as mulheres nunca o entenderiam ou vice-versa.

A Lucidez de Mestre Rodrigão

Em certas situações, médicos, psiquiatras e psicólogos diriam que Mestre Rodrigão nunca mais voltaria a ter momentos de lucidez, face às seqüelas que o naufrágio lhe acarretou. Sua responsabilidade sobre seis pessoas e a sua também e mais, seu barco Esperança, foram demais para ele.
Julgava que fora incapaz de prever o mau tempo, os problemas com as redes e os tubarões.
Não conseguira resolver o problema do rádio e nem se guiar pelas estrelas, pelo vento e pelo coração.

O reencontro em alto mar do pai e do filho

Mas justamente pelo coração é que retornou aos seus momentos de lucidez.
Quando Esperança estava à deriva o que desceu do avião não foi apenas a salvação para suas vidas.
Foi o reencontro em alto mar com o seu passado e o seu futuro. Capitão Crescêncio era seu filho.

As interpretações dos pescadores

Alguns pescadores acham que Esperança esta ancorada em alguma ilha ou ainda esteja à deriva.
Alguns navegadores afirmam que vêem Esperança ressurgir no horizonte a cada novo amanhecer.
Outros acreditam que as tempestades repentinas são sinais a serem sempre considerados.

***

Robertson
Este texto escrevi num tempo em que trabalhava num Escritório de Despachos Aduaneiros em Itajaí e os personagem aqui presentes tem o nome deles. Foi uma deliciosa forma de perpetuar a minha emoção e a minha saudade em palavras, por tão grandes Amizades.

E fica

Uma homenagem aos náufragos, dos mares e da vida... Muitos sobrevivem pelo coração de quem os ama.
Robertson
Enviado por Robertson em 16/11/2008
Reeditado em 04/06/2015
Código do texto: T1286521
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