MAIS QUE RECORDAÇÕES

Faz tempo. Morávamos de favores numa fazenda e lá em casa ninguém sabia ler. Melhor dizendo: ninguém sabia ler a escrita alfabética, porque o mundo, do qual fazíamos parte, líamos muito bem. Do mundo letrado, quem tinha alguma notícia era minha mãe. Ela conhecia o ABC e de 1 a 10, garatujava seu nome, o de meu pai e o meu: Francelina, Aristides, Manoel. Só. Para mim, no entanto, foi o bastante.

Logo decorei e fixei na memória todas as letras e números que pacientemente me ensinara minha mãe.

Estudando o som que resultava do encontro de uma letra com outra, por comparação com os nomes que dona França me ensinara a desenhar, fui aprendendo a decodificar o código linguístico, desmontando e remontando o quebra-cabeça das letras do verso das folhinhas que meu pai arrancava todos os dias da parede. Dessa forma também fui aprendendo sobre os números, já que a folhinha era um calendário.

Todos os dias tentava ler e reescrever um dos pensamentos da folhinha. Lia e escrevia do meu jeito, do jeito que achava certo, era a minha palavra, sem ninguém corrigindo nem dizendo que estava errado. Apenas minha mãe elogiando. Nessa relação, ia me construindo como sujeito dos meus textos e quando me deparava com alguma dificuldade que não conseguia contornar, deixava-a para quando uma prima que estudava em Lages nos visitasse. Eram as sílabas complexas, os dígrafos e mais uma série de outros empecilhos gráficos que, assim, iam sendo superados.

Um dia falei com minha mãe sobre a possibilidade de ir para uma escola e ela respondeu que já havia pensado muito sobre a questão. O problema, porém, era que não havia escola, a não ser que fosse morar na casa de minha avó, em Serra Grande.

À noite conversamos sobre o assunto com meu pai e dias depois partimos para visitar minha avó, que me aceitou com alegria.

O mês de outubro já ia pela metade, quando me mudei e no dia seguinte, bem cedo, lápis e caderno numa bolsa de pano a tiracolo, escoltado por um tio quase da minha idade, que também estudava, fui para a escola.

Era uma construção rústica, um pequeno galpão contíguo a uma casa um pouco maior, à beira de um rio, minha primeira escola. Entramos e meu tio me apresentou à professora, dona Zemir que, não obstante me receber com carinho, despejou água fria no meu entusiasmo, dizendo que o ano estava no fim e que eu deveria voltar no início de março, quando as férias terminariam. Quase chorei, meus olhos se encheram de lágrimas e ela ficou com pena. “Pode ficar”, disse-me e apontou para um lugar vazio no final da pequena sala.

Sentei-me, tirei o caderno e o lápis da bolsa e esperei. Em seguida, dona Zemir pediu para que todos se levantassem para rezar e cantar. Quando terminamos, ela me disse que nossas aulas começavam, todos os dias, com oração e canto, depois me apresentou à turma e mandou-nos sentar.

Analisei o ambiente e constatei que havia crianças de idades distintas, alguns bem jovens, como eu, que tinha sete anos e outros bem mais velhos. A sala estava dividida em quatro filas de carteiras. Eu era o último na dos menores.

Enquanto dona Zemir atendia uma fila, a outra lia silenciosamente ou se concentrava em alguma atividade programada na aula anterior. Para os mais adiantados, escrevia na lousa, dividindo-a em várias partes. Naquele tempo era lousa mesmo.

Como eu ficara esquecido lá no “finzinho”, passei a copiar tudo o que via.

Pouco antes do recreio, ela se lembrou de mim, foi até minha carteira, olhou para meu caderno e exclamou: “Você sabe escrever, copiou tudo, até as coisas do 4º ano! Você já esteve em outra escola?” Quando lhe respondi que não e que aprendera sozinho lá na fazenda, a princípio não acreditou, depois percebeu que eu falava a verdade e me abraçou, dizendo que eu podia ir para o segundo ano forte.

Então me mudou de fila.

Aos poucos, descobri que a fila dos menores, que ficava num dos extremos, era constituída pelo 1º ano fraco e pelo 1º ano forte; a fila ao lado era dividida entre os 2º anos fraco e forte e as outras duas, pelos 3º e 4º respectivamente. Como os dois primeiros anos foram subdivididos, a professora atendia, na verdade, seis séries.

Aquele final de ano com a professora Zemir foi de uma relevância incomensurável na minha formação. Ir para a escola todos os dias era um prazer imenso, não só para mim, mas para todos os alunos, porque na escola nos sentíamos importantes, tínhamos uma professora amiga.

Num contexto histórico em que o autoritarismo e o castigo físico permeavam todo o processo educacional, dona Zemir era carinhosa, jamais ralhava com os alunos e estava sempre alegre, numa demonstração clara de que gostava do que fazia. Não tinha formação para o exercício do magistério e não conhecia outro método que não o do amor, do afeto, da criatividade e da paixão pelo que fazia.

Em março do ano seguinte, quando as férias chegaram ao fim, minha primeira escola já não existia: fora demolida e dona Zemir mudara-se.

A cinco quilômetros havia outra escola, maior, mais bonita, mas teríamos que ir a pé. A professora era “louca” e tinha “pouco estudo”. Era o que todos diziam.

E agora? A caminhada diária não me preocupava, ainda mais porque os colegas também iriam, mas enfrentar uma professora maluca, que poderia até bater na gente, me deixava assustado.

A vontade de estudar, todavia, venceu o receio e eu acompanhei a turma.

Santa era o nome da nova professora. Dona Santa, bonita, alta, loira, sorridente. À primeira vista não me pareceu nada louca, nem má.

A escola, uma casa comum, sem pintura e de madeira, da qual haviam tirado todos os cômodos, ficava no meio de um gramado imenso e muito verde, ao sopé de um morro. A vista era bonita e impressionava.

Dona Santa recebeu-nos com satisfação e acomodou-nos dois a dois nos bancos e mesas rústicos, construídos pelos próprios pais. A aula começou com os alunos muito à vontade, fazendo muito barulho e se aglomerando em torno de alguns livros velhos. Ao mesmo tempo em que escrevia na lousa, dona Santa também falava muito, perguntando ou respondendo. A grande surpresa veio com o recreio: dona Santa saiu com a turma, como se fora mais um aluno e como uma criança correu, brincou de esconde-esconde, de pega-pega, de pata-cega, de roda; cantou com as meninas, deslizou morro a baixo numa casca de coqueiro, como os meninos faziam e virou cambalhotas. Então descobri porque a chamavam de louca e me perguntei ressabiado se ela era mesmo louca porque virava cambalhotas e brincava como uma criança.

A menos que fosse uma louca mansa.

Assim foi durante toda a semana e eu estava gostando. A professora era muito divertida e ensinava. Na Segunda feira, porém, quando chegamos para mais um dia de aula, encontramos a escola fechada. Um vizinho nos informou que poderíamos voltar para casa, porque a professora fora levada à força para o hospício. “Também, - acrescentou o vizinho, - uma mulher que veste calça de homem e vira ‘carambota’ no meio da criançada, só pode ser louca”.

Retiramo-nos tristes, cabisbaixos, com pena de nossa professora e acreditando que era mesmo louca.

Nunca mais soube de dona Santa. Hoje tenho certeza de que era de fato louca para aquele contexto; louca pela ousadia de ter nascido num tempo que não era o seu. Louca por teimar em viver seus próprios significados.

Voltei para a fazenda e no ano seguinte, no mês de janeiro, mudamo-nos para Serra Grande. Meu pai arrumara um emprego numa fábrica de papel.

Próximo da casa para a qual nos mudamos, do outro lado do rio, havia uma escola nova, construída há pouco pela empresa. A professora nos visitou no mesmo dia em que chegamos, para saber se havia criança com idade escolar. Nadir era seu nome: nova, negra, recém casada. Olhei para ela e achei que era brava, o que, sem demora, constatei que era verdade. Para ser sincero, ainda era mais brava do que imaginei. A única sala, multisseriada, como as anteriores, recebera carteiras novas, mandadas pelo Estado, com lugares, cada uma, para dois alunos e lousa nova. Dona Nadir disse que não era mais lousa, mas “quadro-negro”.

Fui matriculado no 2º ano e recebi uma lista do material que deveria levar para a próxima aula: lápis preto e de cores, caneta e pena, tinteiro, cadernos comuns, caderno de caligrafia e de aritmética.

As lembranças do tempo em que fui aluno de dona Nadir continuam indeléveis em minha memória. Lembro-me de tudo, desde como exercia sua prática alfabetizadora, por meio da cartilha, que lhe servia de programa e método. Primeiro ensinava as vogais, as quais escrevia no quadro-negro, todas de uma vez, depois apontava cada uma com a régua, pronunciando o respectivo nome e as crianças repetiam. Posteriormente copiavam-nas no caderno de caligrafia e, enquanto faziam a cópia, ela atendia as outras turmas, com atividades de cópias no caderno de caligrafia, de aritmética no caderno de aritmética, de ditado, de escritura de cartas, de tomadas dos pontos de Geografia, de História ou ciências. Quando o primeiro ano já havia decorado as vogais, passava para as consoantes e posteriormente para as famílias silábicas, das simples para as complexas, com figuras de apoio, para facilitar a “decoreba”. Por exemplo, havia na cartilha a figura de uma pata em um lago, com o nome escrito em baixo e a sílaba pa em seguida, que as crianças cantavam em coro, acompanhadas pela professora: a pata nada, pata-pa, nada-na. Assim, o 1º ano passava as manhãs com aquela cantilena, e copiando as sílabas no caderno de caligrafia, até terminar o ano letivo e a cartilha.

Como eu aprendera a ler e a escrever sozinho, lia e escrevia do meu jeito, mas dona Nadir disse que estava errado. Eu tinha que escrever como ela mandava, de acordo com os modelos que ela escrevia no quadro-negro. Até os bilhetes e as cartas eram padronizados, com os mesmos inícios e fins. Entendi logo o jogo da escola e em pouco tempo só escrevia do jeito que minha professora desejava, sem errar nada, por isso era elogiado.

Minhas mais gratas lembranças desse tempo, porém, são as canções. Cantávamos todos os dias muitas canções, das quais ainda hoje lembro com saudade. Foi assim que também aprendi muitos hinos, como o Nacional, à Bandeira, da Independência, do Estudante, da Marinha e outros.

As aulas transcorriam sempre em completo silêncio. Ninguém podia sair de seu lugar, nem perguntar nada sem antes levantar o dedo, sob pena de receber castigos exemplares, com os quais os pais concordavam plenamente.

Tive quatro professoras na minha educação primária. A primeira, minha mãe, que mesmo não sabendo ler nem escrever a escrita alfabética, foi decisiva na minha aquisição dessa linguagem, porque me apontou o caminho das letras. Com a segunda, dona Zemir, que não era formada, que não conhecia teorias e nem métodos educacionais, aprendi a linguagem do afeto e do amor, fundamentais no fazer pedagógico do verdadeiro educador. Com dona Santa, a “louca”, aprendi a linguagem da dimensão lúdica e a loucura da alegria de se amar aquilo que se faz e assim ser feliz, mesmo sob pena de não ser compreendido. Por último, com dona Nadir, que tinha formação para o exercício do magistério no Ensino Primário e usava o método das cartilhas para alfabetizar, aprendi a linguagem formal de uma cultura que não conhecia. Aprendi que falava “errado” e a aceitar os significados da escola. Aprendi que precisava lutar muito para tornar-me sujeito de mim mesmo e, acima de tudo, conheci a beleza e a magia da linguagem musical.

Aprendi, muitos anos depois, que a escola, felizmente com exceções cada vez maiores, continua esquecendo que crianças são crianças e as prende, durante toda uma manhã, sentadas em silêncio, uma atrás da outra, recebendo conteúdos mecânicos, prontos e acabados.

A escola continua alfabetizando quase da mesma forma que dona Nadir, não obstante as modernas teorias sobre a construção do conhecimento e as pesquisas sobre alfabetização.

São José, ano 2002.

Manoel Costa Sobrinho

MCSobrinho
Enviado por MCSobrinho em 11/11/2008
Reeditado em 11/05/2020
Código do texto: T1278016
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