Pneu furado
Assaltos, medo e pneus furados... Viajar pela BR-070 é uma aventura perigosa, que pode acabar em tragédia. Se sempre foi difícil confiar em alguém à beira da estrada, ali ninguém está confiando em ninguém; é cada um por si. Se o carro quebrar, não é difícil imaginar o pode acontecer. Essa é uma das histórias possíveis.
Na última semana de abril deste ano, retornava de Cuiabá a Poxoréo no meu Fiesta 1.0, iniciando minha viagem às quatro da tarde, com a intenção de chegar em tempo de ir à escola dar minhas aulas de Matemática. Leda ilusão. Nem de longe imaginava que não iria abraçar os meus filhos naquela noite.
Passei em Campo Verde quando o tempo começava a turvar, prosseguindo no limite legal da velocidade, a 110 km/h, patrolando os buracos que haviam sido tapados com barro. Vinte quilômetros após passar pelo Posto “Tio Maninho”, fui engolido por uma cratera destapada; tão grande, que poderia ter servido de pista para o pouso de algum disco voador.
Graças Deus, minha esposa Lourdes e eu, fomos poupados. O cenário era perfeito para uma capotagem, mas, pela misericórdia do Alto, tivemos apenas uma roda amassada e um pneu furado. Descemos do carro e peguei o estepe para substituir a roda danificada. “Fui mal, companheiro Lula!” O estepe estava quase murcho! Troquei assim mesmo, pensando que talvez indo mais devagar, fosse possível chegar em casa. Que nada! Não andei dois quilômetros e tive que parar. Pus o carro à beira da estrada e fui bater o dedão, os braços e tudo o que tinha direito para ver se conseguia que alguém parasse e me socorresse. Passaram ônibus, carretas, lotações e outros veículos. Todos passaram e se foram. Na minha opinião eles estavam certos. Não podiam se arriscar, parando no meio da noite para um maluco que gesticulava à beira da estrada. Mas não custava tentar!
Na fazenda ao lado da estrada, um trator arava o solo para o plantio. Como Lourdes insistisse que eu fosse até lá pedir socorro, eu fui. Pelo menos tentei ir, até perceber que a máquina estava indo embora, talvez exatamente por perceber a nossa presença pelo pisca-alerta do nosso carro e pensar que éramos bandidos. Afinal, à noite, todos os gatos são pardos e não dá para diferenciar os bons dos maus. Até de dia isso é difícil! Parei e fiquei olhando a negritude da noite até aqueles faróis da esperança sumirem no horizonte. Então voltei ao carro, decidido pegar o pneu e rodá-lo até o posto para enchê-lo. Estávamos com essa idéia, quando surgiram novos faróis que reascenderam as nossas esperanças. Corri para o meio da pista e abanei os braços para lá e para cá. E não é que o bem-aventurado motorista parou! Era um filho de Poxoréo. Depois de explicar-lhe o que se passava e de me apresentar, tentamos colocar o estepe do Pálio dele em nosso Fiesta, mas os encaixes das rodas dos dois carros não conferiam e baldou-se o nosso intento.
O governo deveria tomar uma providência para padronizar os encaixes das rodas dos carros populares. Foi um absurdo aquilo que aconteceu comigo. Eu já estava me sentindo em casa, quando a minha bola de esperança murchou de novo, apenas por causa de poucos milímetros de diferença no encaixe da rodas dois carros. Ah, companheiro, Lula! Os fabricantes que se cuidem! Se esse “fiesteiro” seguir a sua trajetória, com certeza a padronização estará há um passo. Aí eu quero ver se perco um socorro tão sincero e honesto como o daquele jovem poxoreano Danielle Ruicci, a quem só me restou agradecer pela boa intenção.
Mas Deus não nos abandonara. Aliás, Ele nunca abandona ninguém. Nós é que nos distanciamos de suas orientações seguras. Assim, enquanto estávamos ali discutindo uma possível carona para Lourdes até Poxoréo, surgiu um novo personagem na história: o ex-prefeito de Juscimeira, MT, Sr. Tião Goiano, o qual também, atendendo ao meu aceno de braços, parou, me informando que no “Posto Tio Maninho”, próximo dali, havia uma borracharia, prontificando-se a nos levar até lá. Na viagem, ele contou a Lourdes histórias aterradoras de roubos e mortes ocorridos na rodovia, inclusive, de um assalto de duas carretas que ocorrera há poucos dias, bem próximo de onde estávamos.
Chegando ao posto, pedimos a gentileza do borracheiro para nos encher o pneu, ao que ele respondeu: “se eu mexer no pneu, vai ter que pagar o conserto”. Concordei. Paguei-lhe os cinco reais cobrados pela enchida. Perguntei-lhe se ele não teria um carro para nos levar até o nosso Fiesta. Ele disse que tinha uma moto. Informado pelo seu Tião que o nosso carro estava a uns doze quilômetros dali, aproximadamente, ele fixou o socorro em quinze reais. Achei caro e tentei outra carona de volta, mas era a mesma história. Ninguém parava. Então decidi ir com o borracheiro mesmo, que a esta altura já relutava em atender-nos, alegando que a moto não estava boa e etc.. Era o medo, coitado! Mas, certamente pensando no dinheiro que ganharia, acabou aceitando. E lá fomos nós.
Percorridos uns dezoito quilômetros sem chegar ao local, o borracheiro começou a desconfiar da nossa história. Apagou os faróis e a moto, dizendo que tinha acabado a gasolina. Sugeriu me deixar ali. Concordei com ele e disse-lhe que me esperasse; que logo após trocar o pneu eu o pegaria na volta. Então, creio que novamente alimentado pela idéia do dinheiro que precisava para sustentar a família, ele resolveu continuar arriscando a vida; funcionou a moto e continuamos. Percebi que ele estava com medo e não lhe tirei a razão. Aquilo ali está realmente muito perigoso e aquela rodovia precisa ser arrumada com urgência. Se existe prioridade, essa é uma delas. Muita gente já morreu na BR-070 por causa dessa buraqueira.
Chegando ao carro, comecei a trocar o pneu sob o olhar do borracheiro que permanecia sobre a moto. Pedi-lhe que iluminasse o local, mas ele disse que o farol da moto não estava muito bom e recusou. Então lhe pedi que me ajudasse a trocar o pneu, pois ele possuía mais experiência, mas ele disse que sem luz era muito difícil e me deixou suar um pouco mais até se dispor a me ajudar. Trocado o pneu, voltamos ao posto. A viagem de ida e volta durou mais de hora. Lourdes já estava aflita.
Antes de partir pedi ao borracheiro que desamassasse a roda danificada. Foram mais cinco “pilas” por duas marretadas na roda e outra enchida de pneu. Como acerto, ofereci-lhe os últimos trinta reais que eu tinha no bolso e que ele somente aceitou após saber que eu não tinha mais nada. Ele queria pelo menos trinta e cinco. Esse é o preço da vida na BR-070. Então, segui a viagem, agradecendo a Deus pela lição e pela providência do socorro diante das tantas aflições que passamos. E não somente pelas nossas, mas também pelas aflições de todos aqueles que foram personagens nessa história.
A lição que ficou é óbvia. Se tivermos pressa de chegar em algum lugar pela BR-070 é melhor desistirmos, sob pena de, na melhor das hipóteses, acabarmos nos encontrando apenas com o borracheiro do Posto “Tio Maninho”. O resto da história, com certeza você já conhece. Haja dinheiro e orações!
Izaias Resplandes de Sousa é pedagogo, gerente de cidades e concluinte do curso de Matemática da UFMT em Primavera do Leste, MT.