CADA UM QUE CUIDE DO SEU DIABINHO

Outro dia a Ana Maria Ribas, que dispensa apresentação, nos contou através de uma crônica, o motivo da transformação por que passou a sua diarista, antes “espevitada” e depois cristalizada em sua beatitude. Motivo: converteu-se a uma determinada religião, dessas que o “pastor” retira dos irmãos o demônio, que está a possuí-los. O relato da Ana, feito de forma respeitosa, contudo, não deixa de ser hilário, haja vista o grotesco da cena descrita

Pensando no texto da Ana, ressalvando a sua seriedade no tocante a evangelização a que se propõe, mas também reconhecendo a existência de uma gama de pseudos "pastores" de propositos duvidosos , dei uma de Paulo Coelho e parti para as Arábias, onde fui “pescar” uma historinha pra contar, antes, explicando como funciona a coisa por aquelas bandas. É sabido que o árabe tem contos para todas as posições da vida, alegria ou dor, ruína ou fortuna, doença ou saúde. Alivia as dores contando, aumenta a alegria contando. O interessante é que para o árabe, o contador de história não tem menos valor do que o autor, quem recolhe a história que ouviu poderá narrá-la e o mérito recai principalmente, sobre quem conta. Contudo, é bom que se diga, que o autor da história, cuja personagem principal é o Satanás, é Gibran Khalil Gibran. E é mais ou menos assim.

Existia lá pelo norte do Líbano, em tempos que já se foram, um irmão de nome Simão, versado nas questões espirituais teológicas, uma autoridade por assim dizer nos segredos do Paraíso, Inferno e Purgatório. Sua missão era viajar de aldeia em aldeia, pregando, curando o povo da doença espiritual do pecado e salvando-o das armadilhas terríveis do Satanás. O irmão era respeitado pelo povo, que dele comprava seus conselhos ou suas preces em moedas de ouro e prata.

Numa certa tarde quando cruzava vales e montes. Ouviu um choro doloroso, emergindo de um fosso ao lado da estrada. Constatou, deitado no chão um homem nu com profundas feridas abertas na cabeça e no peito. Ele implorava desesperado por auxílio. O irmão Simão pensando tratar-se de um ladrão, de principio quis negar-lhe auxílio, mas como insistia dizendo-lhe um conhecido seu, parou a caminhada. Dirigiu-se até o moribundo, ajoelhou-se e contemplou-o; e viu um rosto estanho de feições contrastante; viu inteligência com astúcia, fealdade com beleza e perversidade com doçura. Ergue-se e perguntou. Quem és tu?

E o homem ferido moveu-se lentamente, contemplou os olhos do irmão e nos seus lábios apareceu um sorriso místico e numa voz profunda e doce disse: eu sou Satanás.

O irmão Simão soltou um terrível grito e disse: Deves morrer amaldiçoado pelas línguas e os lábios da Humanidade, porque és o inimigo. Dela, e o teu propósito confessado o de destruir toda a virtude.

E Satã protestou: meu desdém pela Humanidade não é maior do que o teu ódio por ti próprio. Amaldiçoas-me numa hora de minha derrota, embora eu sempre tivesse sido, e ainda continuo sendo a fonte da tua tranquilidade e felicidade. Negas-me a tua benção e não me proteges com a tua bondade, mas vives e prosperas à sombra do meu ser... Fizeste da minha existência uma escusa e uma arma para a tua carreira e objetivo de juntar o ouro ambicionado? Já achaste impossível extrair mais ouro e prata de teus seguidores, usando o meu reino como uma ameaça? Não sabes que morrerás de fome seu eu morrer? O que farás amanhã se permitires que eu morra hoje? Que profissão seguirás se o meu nome desaparecer? Por décadas percorrestes estas aldeias, advertindo o povo do perigo que havia em cair em minhas mãos. Eles compraram os teus conselhos com os seus pobres dinares e com os produtos de suas terras. O que eles comprarão de ti amanhã se descobrirem que o teu perverso inimigo não existe mais? Tua ocupação morrerá comigo, pois que o povo estará livre do perigo. Como podes permitir que eu morra aqui, quando sabes, seguramente, que com isto perderás o teu prestígio, tua igreja, teu lar, teu ganha pão?

Satanás parou de falar por um momento, enquanto o irmão Simão fixava-o transtornado. Então Satanás continuou: depois que aqui na terra foi adotada a minha crueldade como profissão, na Babilônia o povo curva-se sete vezes na adoração diante de um sacerdote que me combatia com seus contos... Em Biblos, Éfeso e Antioquia ofereciam as vidas de suas crianças em holocausto aos meus adversários. Em Jerusalém e em Roma colocavam suas vidas nas mãos daqueles que proclamavam odiar-me e combater-me com todas as forças. E todas as cidades debaixo do sol, meu nome era o eixo do círculo educativo das religiões, das artes e da filosofia. Se não fosse eu, templo não teriam sido erguidos . Sou a fonte que provoca a originalidade do pensamento. Sou Satanás que o povo combate para que continue vivo. Se eles pararem de lutar contra mim, a indolência amortecerá seus espíritos, corações e almas de acordo com os castigos do seu tremendo mito.

Prosseguiu Satanás: sou o construtor de conventos e mosteiros em alicerces de medo. Se eu cessar de existir o medo a alegria desaparecerão, desejos e esperanças deixaram de existir no coração humano. A vida tornar-se-á vazia e fria. Sou o pai e a mãe do pecado, e, se o pecado desaparecer, os que o combatem desaparecerão comigo e com as suas famílias. Sou o coração do mal. Desejas que parem as batidas do meu coração? Aceitarias o resultado depois d destruição da causa? Eu sou a causa! Querer deixar-me morrer neste lugar deserto? Querer o laço que me une? Responde padre!

Depois de ouvir os argumentos de Satanás, o irmão Simão, estremeceu, esfregou as mãos nervosamente e desculpando-se disse:Agora sei o que eu não sabia. Perdoa a minha ignorância.Sei que a tua existência neste mundo cria a tentação e a tentação é a medida pela qual Deus avalia o valor das almas humanas. Estou certo de que se morres, a tentação morrerá, e com esta morte destruir-se-á a força ideal que eleva e alerta o homem. Deves viver porque se morrer e o povo vier a saber disso o seu medo do inferno desaparecerá e ele deixará os cultos, porque nada mais será pecado. Deves viver porque reside em tua vida a salvação da Humanidade do vício e do pecado.

E o irmão Simão aproximou-se, levou Satanás aos seus ombros e dirigiu-se para casa. Ia cuidar de suas feridas.

MORAL DA HISTÓRIA: cada um que cuide de seu diabinho, já que ele é tão necessário

Zélia Maria Freire
Enviado por Zélia Maria Freire em 29/08/2008
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