Como foi seu dia

Como foi seu dia

A impressão que eu tenho é que, para certos dias, os planos inexistem. Tais dias já vem prontos, com vontade própria, esperam apenas que o protagonista acorde para dar seqüência ao que já estava escrito. Também faz-se oportuno mencionar que, mesmo previamente arquitetado, não se trata de um épico. O protagonista não vai matar leões ou se jogar de pára quedas do alto de um penhasco. Não é um dia à la Ben Hur. Em suma, o dia me esperava para que transformássemos em boa estrada mais uma estada nesta vida.

Um único passarinho canta por aqui, nos finais de semana.

Cheguei na Nave Cultural e, todas as vezes que lá coloco os pés, já não mais me sinto “um estranho em terra estranha”. De perto uma voz maviosa conta a seguinte história: “Por causa de você”, música de Tom Jobim e letra de Vinicius de Morais, teve, seus versos alterados pela mente de Dolores Duran. Com a permissão dos mestres a cantora modificou a letra original, sendo esta a versão mundial, só para rimar. Daí a voz cantou, “Por causa de você”, “Só danço samba” e “Geórgia on my mind”. A dona da voz chama-se Izzy Gordon. Palavra que eu fiquei absolutamente impressionado com o que essa mulher canta.

Olhei para o céu e senti o coração leve. Novas gravações para uma nova vida.

Passeando pela nave, vi em fotos um pouco do que a minha mocidade viu aos 18, 19 anos. Estão montando uma exposição sobre os grafiteiros de 78 e 79 na cidade.

“Gonha mó breu”, levei 20 anos para descobrir o que isso significava, e foi por acaso. Estava lá, esse “incrível” grafite, e outros, sob o texto da curadoria explanando acerca “ do valor da arte quando começou a interagir no espaço urbano”.

Fotos e mais fotos. O passado em fotos, o fugaz presente se demorando intervalos em cada quadro.

Hora do e-mail. Uma amiga do coração estava na caixa postal.

Li e reli. Li e reli. Li e reli.

Na lanchonete tinha quiche de espinafre, o que me pareceu um bom negócio.

Fumei um cigarro olhando para o céu. O céu mostra um céu de prenúncios. O que a vida nos reserva(?), pensei, no plural, pois às vezes também penso no singular.

Um amigo me liga. Boa alma. Ótima alma. Dez anos mais do que eu e está na fase dos amigos (dele) que estão partindo. Amanhã é missa de sétimo dia de um. Ele me explicou, pelo fato da cerimônia realizar-se na igreja xis (não prestei atenção), será um rito alegre, e o morto pode partir sorrindo.

Minha amiga, no e-mail, deseja que meu coração se recupere. Não soube o que responder. Coração vagabundo, normalmente, é evasivo.

Voltando pra casa, fui procurar a Maria. A Maria vendeu um jogo para minha filha que não funciona. Nem sempre isso acontece. Maria sumiu, disse o porteiro. De fato, faz uma semana que não a vejo. Aos sábados a tenda dela finca posição na esquina da Eugenio de Lima. Quando o “rapa” chega, ela sai correndo, com o filho no colo e os produtos no outro, já que, certas cruzes, de dois colos carecem.

Do outro lado da avenida encontrei Aldine, distribuindo santinhos para os passantes. Quando olhei a foto no santinho e vi a cara dela, indaguei: é você?

Ela sorriu, confirmando e distribuindo santinhos. Outras pessoas faziam a mesma pergunta. Ela assentia.

Tive vontade de indagar qual seria a sensação de trocar a vida da ribalta pela vida oficial. Depois, supus que nem mesmo ela acharia essa questão relevante.

Nada da Maria.

Minha amiga, no e-mail, diz que espera falar comigo quando eu tiver “noticias frescas neste disco”, coisas de sucesso e congêneres. Isso porque ela não falou com o meu amigo. Além dele ter uma missa de sétimo dia, amanhã, depois de amanhã vai ver a ex-esposa, que foi atropelada

Um céu com o azul possível da metrópole ganha uns fiapos brancos e rosa no pouco do horizonte.

“Prefiro não perguntar quanto tempo ainda e quando”.

Pousando no lar, lembrei que tinha umas questões para tratar com o gajo do celu, cuja loja fica logo ali.

Anoitece rapidamente, nesta época do ano.

Talvez seja possível estarmos todos, coletivamente dizendo, sonhando o mesmo sonho. Ocorre que ele parece tão inverossímil que guardamos para nós mesmos, supondo, então, tratar-se de um sonho particular. Talvez.

A loja de celulares é ampla e radiante, toda cheia de apetrechos, como uma floricultura oriunda dos Jetsons.

Minha amiga do e-mail, eu, ora, falaria com ela qualquer assunto, ainda que o real pretexto fosse ouvir sua voz e, quem sabe, contar, não sem uma ponta de constrangimento, que volta e meia sinto uma tontura assaz desagradável, me obrigando a parar e respirar pausadamente. Não seria, contudo, uma conversa de sucesso.

Depois de muita luta o sujeito consegue me explicar que o celular não filma e toca música ao mesmo tempo.

- Essa não é a finalidade – explicou ele.

- E por que não? – argumentei – um aparelho com tantas funções além da função original... O regozijo do proprietário, no mínimo, seria vê-las manifestando-se simultaneamente.

O gajo, impassível, esperou que uma caravana de sirenes passasse para que se fizesse audível sua explicação sobre como fazer o rádio funcionar no viva-voz. Não achei uma boa idéia.

A lua cheia do sábado quer me dizer alguma coisa, mas não é de hoje que isso acontece.

Vamos jantar.

Na janela, cigarro em punho, poucas estrelas e o fone de ouvido do novo radinho.

Bem na hora do Farnésio Dutra, que botou pra quebrar na casa dos gringos, sob a alcunha Dick Farney. Programão.

O sábado se despede, levando suas medidas.

Novas gravações para uma nova vida.

Isso porque, talvez, ou, afinal, nada é tão importante que seja definitivo.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 17/08/2008
Reeditado em 04/10/2013
Código do texto: T1132571
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