O natal de cada um

Estavamos reunidos na casa da Tia Regina, neste sábado, ainda com cara de ano novo, e como logicamente não poderia deixar de ser, comentavamos sobre a fartura, graças a Deus , da nossa mesa, onde a parentada toda se reuniu para as comemorações de Natal e Ano Novo. Cada um relembrava alguma coisa engraçada que presenciou nestes dias. Algo natural em todas as familias depois que passam as festas. È um que bebeu de mais e deu alguma mancada, é outro que bebeu de menos, e mesmo assim não deixou de dar, também, a sua mancadinha. Os micos que alguns pagaram e as peças que outros pregaram.

Tudo estava indo muito bem, até que a Tia Maria, 80 anos de janelas abertas , me sai com aquela conversinha padronizada, que me irrita prá cacete:

----È, com tanta gente sem nada na mesa neste natal, e vocês com tanta fartura a mesa, que chegou até a se jogar comida fora, pois não conseguiram comer tudo . È por isso que eu não gosto de Natal e Ano Novo. È tudo consumismo. Tem gente que faz uma exagero danado nesses dias e depois passa o ano todo pagando dividas.

Ahhhhh!!! Meu Deus do céu!!! Se tem uma coisa que me deixa puto da vida é esse tipo de conversa! Já me dá uma vontade tremenda de mandar a pessoa ir tomar no meio do rabo, só pra ver se para de falar merda!

E só não fiz isso por que era minha tia, e além do mais, oitenta anos no meio da costela, a gente é obrigado a dar um desconto à sua caduquice.

Meu irmão, se a minha mesa estava farta é por que eu trabalhei o ano todo que nem um cavalo, me arrebentei todos os dias sem nunca chegar atrasado, e em seis anos de serviço faltei apenas duas vezes em todo esse tempo. Estou com quase 60 anos e nesse periodo todo, desde os 12 anos, nunca fiquei sem trabalhar. Quando não arrumava emprego com carteira fichada eu me virava de tudo quanto era geito, vendia sorvete, engraxava sapatos, vendia limão na feira, ia trabalhar de ajudante de entrega, jardineiro e mais uma porrada de coisa, até conseguir arrumar um emprego de verdade. Mandava curriculum, pedia aos amigos, preenchia fichas em agências.

Madureira, nunca fiquei mais do que dois meses desempregado. Nunca na minha mesa faltou comida em dia nenhum. Nunca fui rico. Nem mesmo classe média consegui ser. Não tenho quase estudo nenhum, pois não tive na minha época a oportunidade que está tendo um monte de parasitas que vejo hoje por ai, todavia minha família nunca passou necessidade. Em todos os Natais, desde a minha meninice até hoje, nunca faltou fartura na nossa mesa. Aprendi a ser assim com o meu pai que era um humilde operário e com a minha mãe que era uma simples empregada doméstica. Eles nos ensinaram a ter vergonha na cara. Eles nos ensinaram a não ficar sem trabalhar, pois quem trabalha consegue emprego. Quem trabalha, nem que seja de varrer rua, que é uma das profissões que eu mais dou valor, pois esse pessoal mantém a nossa cidade limpa, nunca deixará de ter a sua fartura estendida sobre a mesa. Devemos entender o seguinte; cada qual tem o seu tipo de fartura. A fartura do operário é de um geito e a do empresário é de outro geito. Porém não tem importância, o que interessa é que a mesa não está vazia. Cada uma delas está repleta de comida conforme a sua condição.

Agora pergunto eu; será que aqueles que estavam com a mesa vazia, caso você os chamasse para carregarem uns quarenta sacos de entulhos, lá do fundo da sua casa até a caçamba áli na rua, eles o fariam por cinquenta reais? Fariam?... Fariam um cacete! Chamei um monte, e cada um inventou uma desculpa. Uns para poderem ficar o dia todo serrando cachaça dos outro ali no barzinho da Célia, outros para ficarém o dia todo fumando maconha ali em frente onde funcionava antigamente a sorveteria do seu Pedro Barrigudo, e alguns outros que, apesar de estarem desempregados, se sentiram ofendidos por eu achar que eles estavam morrendo de fome. O desgraçado não tinha um centavo no bolso, todavia jamais se submeteria a esse tipo de humilhação.

Sabe quem foi que aceitou a parada. Foi o Elias, que parou de beber e usar drogas, e agora virou evangélico. Que Deus o abençoe e o proteja por toda a eternidade. E ele mesmo me disse que a ceia de Natal e Ano Novo já estava garantida, pois nos últimos dias pegou uma casa para pintar, um quintal para carpir, uma calçada para fazer, carregou os sacos de entulhos da minha casa e mais um monte de biquinho que andou fazendo. Esse com certeza, assim como eu, recebeu as bençãos de Deus para que houvesse fartura em sua mesa nas comemorações de fim de ano. Pois aquele que trabalha Deus não abandona. De maneira alguma o Pai Celestial deixará que falte alimento a mesa de um homem trabalhador.

Tenho pena sim. Pena dessas crianças abandonadas pelas ruas, exatamente por esses hipócritas, que hoje não tem nada à mesa para comer. Tenho pena sim. Pena de muitos idosos abandonados por ai, exatamente por esses hipócritas, que hoje não tem nada a mesa para comer. Todavia dos hipócritas não tenho um pingo de pena.

Agora se alguém pensa ao contrário, é simples, pegue esse monte de vagabundos e leva eles para a sua casa nas próximas festas. Porém tome cuidado. Não lhes de a costa, pois eles podem matar a você e a sua família só para roubarem o pouquinho que você conseguiu trabalhando, igual a um cavalo, o ano inteiro. Eu heim! Tô fora!