Ousada crônica natalina

    
Agora, temos um Papai Noel em cada esquina. Garbosos, eles desfilam anunciando velhos e surrados comerciais natalinos.
     Observa-se, que eles não se mostram preocupados com a tal da crise financeira que anda solta por aí, assustando gregos e troianos.
     Eles sabem que o Papai Noel verdadeiro não deu causa à quebradeira, que é geral, e horripilante.
     Por isso, não falam, nem de leve, nas Bolsas de Nova York, da Ásia. da Europa e do Brasil. Não dão bolas para o sobe-e-desce do dólar, soberbo e escravisador.
     Interessa-lhes, isto sim, os reais que deverão receber no fim de dezembro; e torcem para que a grana ganha com tanto sacrificio e garra dê pelo menos para comprar o peruzinho congelado do supermercado, vendido ao som de "Noite Feliz"
     Também se não der, vão de galeto, com um vinhozinho modesto comprado no boteco mais à mão.

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     Deixemos, porém, os Noéis pra lá.   
     Até porque, nenhum deles está interessado em ler as bobagens que escrevo e tenho a incompreensível coragem de publicá-las neste frágil site.
     Minto. Também não é assim. Em um desses Shoppings de Salvador, não direi qual, um amigo meu, gente humilde, todos os anos se veste de Papai Noel.
     E quando, por acaso, me encontra, afasta-se, discretamente, da meninada, me abraça, e diz no meu pé de ouvido: "Olha, li a sua última crônica. Você falou sobre as sogras. A minha e eu adoramos."
     Depois desaparece sorrindo como se houvesse, naquele furtivo abraço, conquistado mais um cliente para a loja que vai ajudá-lo a passar o Natal sem fome...
    
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     Com este prolongado e insosso preâmbulo, de súbito, deixo transparecer que me arrependi do título que dei a esta página: Ousada crônica natalina.   É como se estivesse correndo do pau. Não é nada disso. Claro que deveria ter ido direto ao assunto. 
     Ocorre (olha o intragável "ocorre" mais uma vez) ocorre, meu dileto leitor, que todo cronistas - ou aquele (como eu) metido a sê-lo - quando se vê diante de um computador, é dominado por um indomável desejo de escrever, de uma só vez, tudo aquilo que lhe vem à cabeça.
     Instala-se nele o que o Nelson Rodrigues chamava de "volúpia autoral".
     Correndo, inclusive, o sério risco de se afastar do tema sobre o qual desejava discorrer, para reencontrá-lo no final da página, ou nunca.
     Algumas vezes me surpreendi escrevendo sobre isso quando o meu desejo era escrever sobre aquilo!

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     Uma ousada crônica natalina. Por quê  
Fiel ao tempo presente, deveria estar aqui  a escrever sobre a Vida e não sobre a Morte, como, a seguir, verão vocês.
     A rigor, é inadmissível que alguém, durante o Advento, tome da pena e dane-se a escrever sobre um episódio fúnebre qualquer.
     Jesus é vida, foi o que aprendi nos meus tempos de seminário. E Jesus recem-nascido, então?

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     Mas como prometi, eis-me narrando um episódio fúnebre no qual creio piamente. 
     Naquele tempo, um velho carpinteiro, muito bem casado, tirava da sua modesta oficiana o sustento de sua abençoada familia. Morava num lugarejo nos confins da terra. 
     O pacato ancião tinha vários filhos legítimos e um filho adotivo. Sua mulher, muito mais nova do que ele, era um exemplo de companheira. 
     E todos viviam na mais celestial harmonia. 
     Até que o velho amanheceu doente. E foi piorando, piorando cada vez mais.
     Já com 111 anos de idade, dificilmente resistiria à enfermidade que atormentava seus dias.
     Foi no filho adotivo, que completara 18 anos, que o virtuoso ancião, embora assistido carinhosamente pela mulher, encontrou decisivo apoio e confortador consolo, nos seus instantes finais.
     Vendo que o velho estava à beira da morte, o filho adotivo abeirou-se do leito do pai moribundo, e lhe disse o seguinte:..."Mas consola-te, pois este momento não deveria ser chamado de morte, e sim passagem para uma vida eterna."
     
     O varão morreu.  
     E o filho adotivo, denunciando um misterioso poder, determinou: ..."em respeito a todos aqueles que honrarem a memória do meu pai na Terra, seja com esmolas ou colocando seu nome em seus filhos, farei com que, ao abandonarem este mundo, desapareça o livro celeste no qual estão escritos seus pecados e não sofram tormento algum." 

     O velho chamava-se José, sua mulher Maria, e JESUS, o filho adotivo...

     É uma historinha conhecida. Mas a gente só a encontra, nos Evangelhos Apócrifos.

     Antes do ponto final, duas coisinhas. Primeiro: minha Igreja, a católica romana, ainda não aceita, pacificamente, os Apócrifos.
     Por isso chamei esta crônica natalina de ousada.
     Segundo: se meu nome fosse José, com certeza seria um pecador mais tranqüilo, na hora (ingrata!) da passagem... 
     

     




    

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 12/12/2008
Reeditado em 21/03/2009
Código do texto: T1332201