Do brejo de mim, sou ser tão violeiro

I

Tenho uma alma aflita,

Um coração de viola,

Arado naquele brejo

Saltitante e cabriola

Trago o cheiro de deserto,

Nesse meu moleque esperto,

O conhecido Frajola.

II

Aprendi desde a aurora

A ser muito curioso

Cubando o meu papai,

O Violeiro Fogoso,

A tirar leite de pedra

Usando uma cátedra

Naquele ritmo dengoso.

III

Eu ficava a matutar,

Cá aqui no coração:

Como a aquela andorinha

Ouvia essa canção?

Ela em cima da cerca,

Eu com o medo da perca

Num momento de tensão.

IV

Meu pai rasgava o acorde

Naquela garganta doida

Alargando bem a boca

Com a sua voz polida

Eu ficava era animado,

O pensamento aflorado,

Compondo a nossa vida.

V

Quando eu ficar bem grande,

Quero viola pra mim

Pra justar o meu sertão

Desse jeitinho assim:

Falar do mato verdoso

Desse meu campo

cheiroso

Bordado de alecrim.

VI

Remendar o nosso povo

Já há tempo, vem cansado

De esperar esperança

Com o coração armado

Só plantando a bonança

Nesse chão muito rachado

De tanta desesperança.

VII

Fui arrebatado em sonho

No meio desse breu brejo,

Teve na prosa comigo

Um enorme réptil tejo.

Tive logo um arrepio

Quando ele abriu a boca

E quase me engoliu

VIII

Ele espiou nos meus olhos,

Fez foi uma profecia,

Disse que estava escrito

Do tempo da minha pia,

Que eu seria violeiro,

Um cantor de romanceiro

Que a tudo principia.

IX

Seu destino tá traçado

Nas mãos de Nossa Senhora

Sua madrinha da sorte

Presente em toda hora

Desde o seu nascimento

Arcando o cumprimento:

Abençoar a viola.

X

Era a Senhora da Graça

Com o manto todo azul

Da cor lá daquele céu

Com o Cruzeiro do Sul

A dona do meu destino

Que me cedeu esse tino

De ser violeiro consul.

XI

E assim me apresento

Pra esse público meu

Eu sou o consul Frajola

O que fez e mereceu

Das mãos de Nossa Senhora

Eu toco minha viola

Pois foi ela que me deu.

XII

A missão da cantoria,

Das coisas do nosso chão,

Falar de seca e de chuva,

De cerca e criação,

Da nossa gente querida,

Do brejo, do lugarejo,

Da nossa situação.

XIII

Pode não ser a melhor

Nem a que mais desejamos

Porque a vida é difícil

A nós falta os encantos

Da fartura pra viver

Nesse mundo de prazer

Sem precisar dos estranhos.

XIV

Aqueles que aparecem

De uns quatro em quatro anos

Achando que somos bestas

Analfabetos e tontos

Pra receber as migalhas

Os políticos sem almas

Esses coronéis do campo.

XV

Sou o ser tão violeiro

A voz da nossa justiça

O que carrega o campo

E denuncia a cobiça

A voz que nunca se cala

O que não tem a preguiça

De descascar essa fala.

XVI

Precisamos de respeito

De um olhar de atenção

Não podemos aceitar

Essa vida de aflição

O sertão é nosso berço

Já basta de sermos vistos

Como um não cidadão.

XVII

Vixe, que nossa Senhora

Passou voando na nuvem

Acenou assim pra mim

Com um sorriso que vem

Igual ao da andorinha

A mais bela avezinha

Lá do meu amado bem.

XVIII

O terreiro lá de casa

Quando o meu pai tocava

A sua viola boa

O universo ficava

De ouvido arregalado

Os olhos amendoados

Coração balanceado.

XIX

A andorinha da graça

Não desprendia o olhar

Parecia a maestrina

Daquele belo cantar

Meu pai era o artista

O mais pleno violeiro

Existente no lugar.

XX

Agora veio a memória

Aquela nossa senhora

Pode ser a minha mãe

Que partiu naquela hora

Que fizeram o meu parto

Ela foi morar no céu

Eu fiquei aqui no mato.

XXI

Só peço a Deus mais clemência

De fazer mais cantoria

De levar mais alegria

Pra essa gente de tristeza

É preciso mais poesia

Pra estampar neste mundo

As mais belas melodias.

XXII

Agora eu vou é ali

Por esse mundo cantar

Despertar beleza e sonhos

A vida desencantar

Porque sou consul Frajola

O tocador de viola

Artista desde lugar.

XXIII

Se você não acredita

Eu não sei o que fazer

Pergunte a Nossa Senhora

Ela poderá dizer

Dos mistérios dessa vida

Que por mais que eu lhe diga

Eu não sei lhe responder.

XXIV

Só sei que estou aqui

De coração bem aberto

Pra levar amor por mundo

Ser um cidadão honesto

Aflorando os valores

Do sertão da minha casa

Lá no brejo, entre as flores.

Marcus Vinicius - professor, escritor e Contador de história.