Cordel do Auto da Barca Rubra (Humilde tentativa de reler Gil Vicente)
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As personagens
A – o Anjo
D – o Diabo
P – Popolo; P(r) – resmungando
L – Lato, o latifundiário
E – Elite, a soberba
T – Torturador, a alma penada
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Veio-me a Dama da Morte
Indicar-me a passagem
Para o destino final
Qual me espera a viagem
Foi escolhida alma letrada
Guiar-me até a enseada
E me aconselhar coragem
Foi me dado Gil Vicente
Será com ele que eu vou
Merecia eu tal lisonja?
Alma tão pobre que sou?
A caminhada aproveito
Com o sábio perfeito
Que no porto me deixou
Um porto bem diferente
Um tanto quanto nublado
Espírito bom e ruim
Há alma em todo lado
Parece a nobre leitura
Em que todos clamam brandura
Pra embarque no barco alado
A barca mais reluzente
De tanta pureza alva
Terá o direito à proa
Aquele de alma salva
Da luz divinal do arcanjo
Tão belo em seu arranjo
À luz da Estrela D´Alva
Ao lado tem a outra nau
Tão rubra e ardente em chama
Que o choque com a toda água
Compõe nuvens sobre a flama
Por tais, surge o capitão
É o Caído, o anfitrião
Que todas almas reclama
Perto do embarque eu fico
A minha vez esperando
Dá pra ouvir de tudo um pouco
O que os pobres estão clamando
Resenha mui cabeluda
Pra ver se o destino muda
Quem o inferno está esperando
Eis que chega um maltrapilho
Popolo, diz ser seu nome
Argumenta com o Diabo
Em vida morrer de fome
D – Famintos não tenho aceito
O bote branco é seu direito
Há de matar quem o consome!
Ao anjo se mostra o trapo
Tão magro, o vento o conduz
A – Por aqui terás passagem
Na Terra tiveste a cruz
O Paraíso és tua sorte
Descanso por dura morte
Lá encontrarás tua luz!
Logo após chega um pomposo
Arrogante senhor de terra
Se dirige ao barco branco
Certo que o rumo não erra
L – Qual destes é meu lugar?
Anseio logo em sentar
Cansado que sou de guerra!
A– Aí esperas, não tenhas pressa!
Precisamos conversar
Por que trazes motosserra
Pra destino de além-mar?
L – Pois é este meu ofício
Do meu poder vitalício
Não há nele o que julgar
L – Sou de família abastada
Da velha aristocracia
Comtemplada por rei luso
Direito à Capitania
Não entendo seu protesto
Já que sou homem honesto
E sou dono desta baía!
A – Grande erro cometeras
Gabaras ostentação
Correrás ao outro barco
De mim tens a rejeição
Imploras a outro barqueiro
Teu lugar, oh cavalheiro
De Deus não terás perdão!
P(r) – Este é o de nome Lato
Das florestas, o vilão
Tanta ordem que gritou
Promoveu desmatação
Tanta mata incendiada
Foi o terror da caipirada
E aqui quer absolvição
P(r) – Tanta terra conquistada
Pelos atos da grilagem
Velho inescrupuloso
Acostumado à sabotagem
Construiu sua dinastia
Com fé que não morreria
Nem em nau rubra ir de viagem!
Com o nariz ainda empinado
Vai o velho a barca rubra
Com o Caído debater
Imponente na penumbra
Quis evitar o amigo
A quem sempre deu-lhe abrigo
Ter na Terra, burro em sombra
D – Foi observado, Lato
À nau branca ter rumado
Por acaso se esqueceste
Que temos um combinado?
Pois por todo teu império
Dirigi teu ministério
O que quer no barco alado?
L – Ora, ora grande amigo
Julga mal a filosofia
Quis saber do barco branco
Que deseja em minha baía
Decerto está em porto errado
Não sairá daqui lotado
Com tão pouca galhardia!
D – Suba então sem cerimônia
Seu lugar está reservado
Içar vela, alinhe o leme
Aqui será meu criado
Na Terra teve sua sorte
Que é cobrado no pós-morte
Pelo serviço prestado!
O outrora senhor grande
Foi ao Caído se entregar
Pois não tinha argumentos
Que o podiam livrar
Seu embarque é o prelúdio
Para o ardente latifúndio
O qual da Terra o fez mandar
Eis que aparece tal dama
Uma coroa um tanto enxuta
Quero ficar bem atento
Qual seria sua conduta
Deus perdoe meu julgamento
Mas suas vestes e ornamentos
A descrevo prostituta
D – Já é bem vinda, Dona Elite
À nau rubra do Caído
Deixo sempre a porta aberta
Quem me tem como querido
Lá será minha imediata
Pois nascera pra bravata
Desse espírito bandido
D – Para longa estadia
Terá tudo a seu agrado
Advogado, burocrata
Corrupto afortunado
Por ter sido minha madrinha
Viverás como rainha
Em meu eterno califado!
E – Agradeço imensa oferta
Amigo de muitas horas
Mas hei de ter com o arcanjo
Conversa mui séria agora
Pois vela devota a ti
Igual prele acendi
Farei uso da penhora!
E – Arcanjo quem lhe dirige
É Elite Brasilis Nobre
Permita-me já o embarque
A esta de muito cobre
Que muito orou a Deus
E sempre cuidou dos seus
Acima de tudo, o pobre!
P(r) – Acima de tudo, o pobre?
É certo que o abandonou
Pois fui vitimado à fome
E ao frio que me fulminou
Morri como analfabeto
De iletrado era o bisneto
Que chance pra nós deixou?
A– Aí esperas, não tenhas pressa!
Precisamos conversar
De que servirão tais moedas
Pra destino de além-mar?
E – Pois saiba que de onde vim
Dinheiro é o mandarim
No Paraíso irá agradar
E – Com ele tudo se pode
O mundo inteiro comprar
É o grande instrumento
Usado pra barganhar
Então me suba no bote
Ajuste-me o camarote
Que sua parte, estou a contar!
A – Entendeste tudo errado
Camarote aqui não há
Mesmo todo seu dinheiro
Não farás de ti, Sinhá
Todos entram aqui iguais
Aqui os sonhos são reais
Não haverá colher-de-chá
A – Aceitarás a humildade
E me ofereço a dar-te abrigo
Levo-te até a Porta
Pra Deus conversar contigo
Não garanto teu ingresso
Pois confuso és teu processo
Pelo flerte com o inimigo!
Tal palavra que odeia
Essa tal Dona Elite
Da humildade tem alergia
Tal orgulhosa qual Afrodite
Simplesmente vira as costas
Vai ao Caído dar resposta
Um aceite a seu convite
E – Estou de volta, vil barqueiro
O outro embarque foi impossível
Pois aceito seu convite
A outra oferta é desprezível
Rebaixar-me a um mau trapo
Não engulo esse sapo
O que eu quero é ser visível
E – Faça então os preparativos
Meu embarque é triunfal
Tenho muita habilidade
Serei a parceira ideal
Governemos soberanos
Em quaisquer sejam os planos
Salve, salve oh general!
E assim foi Dona Elite
Embarcar à rubra barca
Sob o olhar desconfiado
Do Caído, o monarca
Fosse eu ele, abria o olho
Seria bom por barba em molho
Ter cuidado em sua comarca
E a partida se anuncia
Doutra vez minha chamada
Mas tem aquele que implora
Uma vaga à barca alada
Chegou de modo furtivo
Decerto é fugitivo
Que terá em sua jornada?
A– Aí esperas, não tenhas pressa!
Aqui não terás amparo
Seu barco já há de sair
A nau rubra dos avaros
Estás tempos a vaguear
Vai-te logo lá embarcar
Teu castigo é bem caro!
T – Anjo bom, misericórdia!
Arrependo-me a cada dia
Toda morte e tortura
Que apliquei com covardia
Eram tempos de revolta
Torturar era minha escolta
Pra salvar uma ideologia
T – Rejeitei todos os votos
Que Cristo me ensinou
Trocados por sujo cobre
Que o próprio Demo forjou
Já me tornei alma inglória
Esquecida pela história
Pobre fantasma que sou!
A – Não tenho autoridade
Que entres à embarcação
Serás preciso mais tempo
A alcançares redenção
Mas és alma arrependida
Decerto que foste ouvida
ELE tem tua apelação!
Assim partem ambos os barcos
Cujo destino sabemos
Será pela ação na Terra
Qual das naus embarcaremos
O ser humano há de mudar
O navio branco lotar
Luz eterna alcancemos!