VERTIGENS

Ich bin der Geist, der stets verneint!

J. W. Goethe, Faust: eine Tragödie - Erster Teil.

Na rua, fluxo ilimitado de gentes, em todas as direções, migrando, revoadas de pombos, nuvem, zumbido incessante, ruídos que se cacofoniam uns sobre os outros, semáforos, lâmpadas multicolores sobrepostas. Mosaico caótico. Vapores emanam dos bueiros. Chuva ácida, garoa. Indivíduos em massa, colados, por um instante, o tempo todo. Filas subindo e descendo nas escadas rolantes. Vertigem. O metrô se foi. Veio outro em seguida. “Faltam 55 segundos para o próximo vagão”, indica o placar eletrônico. Máquinas, pés deslizantes, fantasmas, multidões. O futuro acontece a cada segundo.

O estudante está pendurado na alça de apoio do ônibus. Quase desperto. Quase dormindo. Pálpebras semicerradas. Ouve um murmúrio sobre algum assunto do cotidiano. O velho que conta uma história pede licença para a senhora com quem conversa porque o seu ponto é o próximo. O ônibus já está quase lá. Nos pensamentos do estudante, que repousa num assento ao lado, as vozes dos dois se misturam e se desencontram. E quando ele tenta fazer sentido... Vertigem. O desembarque, ainda distante.

Círculos concêntricos se fecham até o centro empresarial Dollar Tower: um arranha-céu que se ergue acima dos prédios. Ele é visto de toda a cidade e de lá de cima tudo se pode enxergar. O estudante deixa a estação de metrô, voltando à superfície. O relógio de pulso indica que talvez não chegasse atrasado hoje. E, no futuro, quando terminasse os estudos, quando progredisse na carreira, teria paz, ou, pelo menos, algum conforto.

Em Dollar Tower, um elevador panorâmico. A sensação de um corpo voando não deve ser muito diferente. A de um corpo caindo também não. Vertigem. Cada vez que o elevador para, toca uma música e anuncia o andar. Centésimo trigésimo segundo. O estudante deixa a cabine de metal e vidro e atravessa o extenso corredor até o escritório. Ternos e gravatas apressados no meio do caminho.

Sobre a mesa, uma placa onde se lê: Diretora executiva. “Está atrasado”, sentencia. Apressa-se. Atravessa uma porta à direita, depois de dois corredores, e permanece ali dentro por algumas horas.

Desce o elevador panorâmico. Vertigem. Horário do almoço. Palavras de um personagem passam muito rápido em sua mente:

“Está quente, muito quente. Vapores emanam do asfalto. Suor, gotas pregando na pele. Roupa social, sapato fechado. Sinal vermelho para o pedestre. Carros em trânsito. Pare. Atravesse. Uma mulher dorme sobre um pedaço de papelão. Uma criança brinca com um aviãozinho de jornal. Na esquina, uma loja que vende coxinhas e frituras. Sempre cheia. Um cachorro lambe o chão. O dia ainda está quente, quente demais, muito quente, derretendo como um queijo gorduroso.”

Na volta para o trabalho, o estudante observa algo diferente na direção do centro empresarial. Ele anota rapidamente suas impressões num bloco de notas que traz consigo em sua pasta:

“As paredes da torre suam gotas azedas incontrolavelmente num mormaço ensurdecedor. O calor se acumula mais e mais. Uma tensão no ar que não se resolve. As gotas de suor do prédio vão escorrendo, levando as janelas ladeira abaixo. A estrutura vai se liquefazendo aos poucos, descendo numa tóxica massa verde-oliva-cinzenta. Toda a enxurrada de sujeira, concreto, cacos, vigas e outras terríveis casualidades vão recobrindo o território da cidade. Estamos submersos, nadando para cima, tentando respirar...”

Sobe o elevador panorâmico. Vertigem. A cidade não tem fim.

Termina o expediente.

Desce o elevador panorâmico. À tardinha. Vertigem. Já na calçada, repentino frio de inverno, que surpreende no alto do verão. O estudante caminha em direção ao ponto. Chegaria a tempo para a aula noturna? Adiantou o passo. Pensou em pedir uma corrida pelo aplicativo. Vai folheando, no banco de trás, um livro de contos de Tchékhov e se entretém com as peripécias de “O sapateiro e a força maligna”.

Desperta. A caneta sobre a escrivaninha. Fecha-se um círculo. Uma esperança ressurge. É preciso dar o primeiro passo:

“Um estudante acorda e toma seu café da manhã tranquilamente. Seu pai é um gerente de médio porte em Dollar Tower. Vai para a faculdade com seu patinete motorizado. Acompanha todas as aulas, passa várias horas na biblioteca, falta uma semana inteira no meio do semestre para bater papo na cantina. Seus dramas se dão em torno de pequenas minúcias pessoais, uma solidão que não passa, não importa o quão extrovertido tente parecer. Sua falta de propósito e de consciência o engolem. E se um dia se tornasse pobre? Uma pontada o atingiu em cheio: Sua mediocridade pesava no meio do seu peito. Era dependente das suas vantagens diárias. Não conseguiria se virar para além de seu pequeno mundo. Que mérito há nisso? Vertigem”.

Desperta. Liga o notebook e passa algumas de suas anotações para um back-up digital. Continua digitando:

“Era um estudante que morava muito longe. Podia avistar Dollar Tower de seu bairro, mas lhe era um ponto longínquo, que conhecia mais pelas notícias da televisão. Músico de alma e mecânico de ofício, desde os 16. Sua tia, com quem morava de favor, sabia apertar porcas e parafusos, trocar torneiras... Dizia que nunca precisou de homem para se virar. Juntos tinham um pequeno empreendimento, o que garantia a continuidade dos seus estudos. Com muito custo, revezava-se com ela para dar conta dos dois mundos. Não sabia se conseguiria aguentar até o fim. Vertigem”.

Desperta envolto num denso nevoeiro. Anda alguns passos até chegar ao limite entre a vida e a morte. Observa a cidade, que se estende para todas as direções, do ponto mais absoluto de Dollar Tower. Sabe que está sonhando, pois nunca esteve no topo do arranha-céu; apenas na superfície tumultuada, no subterrâneo ou no elevador vertiginoso. Subir e descer, eis o movimento da sociedade e também o de um placar de finanças. Vertigens.

Mais uma vez, desperta. Seus personagens, espelhos deformados; a realidade impassível. O que parece ser, inverte-se. Tudo que se afirma, também pode ser negado. O chão some sob os seus pés. A infelicidade humana. Ouve, então, um zunido. Do lado de fora da janela, um drone plana entre os prédios. O objeto voador não tripulado carrega uma câmera que serve a interesses obscuros. Quantos dólares nos custam a liberdade vigiada? Vertigem.