A Cidade cinzenta

CAPÍTULO INICIAL: A TRUPE MEDONHA

O estômago de Yago estava revolto, as pernas bambas e pesadas como chumbo. A sensação do menino era a de que ia dobrar-se ali mesmo e despencar no chão bege da classe de história. Sustinha na mão esquerda um pedaço de papel amarelo, e agora bastante úmido de suor, com suas anotações para guiá-lo na apresentação. Ele sentia o rosto quente. Imaginou que deveria estar da cor de um pimentão. “Que vergonha” Pensou!

Olhava para todos nervosamente e premia as anotações com muita força. Nenhuma palavra conseguia ser formada por suas cordas vocais, por mais que ele tentasse empurrá-las para fora. Ele estava travado. Isabela, da fileira da frente, cochichou algo no ouvido de Maria e logo após isso as duas pareceram conter um riso. O menino viu. Ele não sabia, mas olhava para a turma como um animal acuado, com cara de choro. A professora notou.

— Querido, pode começar quando quiser. Disse dona Augusta, a professora, que estava em sua mesa a direita de Yago. Ela tinha um olhar doce, meigo. Sorriu para ele, o encorajando. Augusta, era uma senhora de 54 anos, cabelos pretos, levemente grisalhos, encaracolados a altura dos ombros. Lecionar era uma arte e Augusta era a melhor artista da escola.

— Posso ir ao banheiro antes professora? Perguntou Yago com olhos de súplica voltados para ela. Nesse instante ele escutou alguns risinhos da classe. Isso piorou tudo.

A professora pretendia protestar, dizer que já haviam passado vários minutos e que ele tinha apenas um quarto de hora para a apresentação completa, mas diante daquele olhar de pânico sua firmeza esmoreceu: — Tá bom meu bem, mas não demore. E olhou no relógio: — Ainda temos a apresentação de mais três coleguinhas.

Sem olhar para os colegas ele agradeceu a professora e saltou na maçaneta da porta. Abriu-a com firmeza, mas a fechou bem delicadamente para evitar fazer uma cena e fornecer mais gasolina aos cochichos e deboches dos colegas. Yago correu todo o caminho até o banheiro. O corredor estava vazio e era possível captar o murmúrio vindo das salas. Estavam todos em aula aquele horário. Naturalmente.

O menino entrou no banheiro e correu até a pia. E de olhos fechados começou a jogar água em seu rosto. Abriu os olhos e mirou a própria imagem. O rosto estava vermelho, como imaginou que estaria. A veia da fronte saltada. Os olhos injetados. Sentiu muita vergonha e foi tomado por mais um assomo de desespero.

Murmurou de si para si: “Porque eu sou assim?” “porque não sou diferente?” A expressão dele era de desalento total, como se tivesse ocorrido grande tragédia. O pobre menino estava apavorado.

Yago sempre foi taciturno, reservado e extremamente tímido. Ele sempre evitou, e com bastante habilidade, as situações que por ventura o colocassem em foco, em evidência perante as outras pessoas. Odiava ser ou estar no centro das atenções alheias. O lema dele era “Fujo até quando for possível”. E costumava dar certo. Bom, ao menos até aquele momento. É evidente.

As salpicadas de água fria não produziram um aspecto melhor em seu rosto. Então ele correu e se fechou em uma das cabines do banheiro. Sentou-se no sanitário. E esfregando uma mão suada na outra sussurrava: “O que eu faço? “E agora?”. O pânico foi aumentando e a respiração ficou densamente sôfrega. Nesse instante, pensou até em fugir deixando para trás seus pertences e uma classe chocada, que comentaria aquele evento por dias a fios, quando de repente algo mudou. Ele nunca havia desmaiado, mas sentiu que ia acontecer naquele instante e ali mesmo. Resolveu que era melhor sair daquele cubículo.

Quando ia levantar-se e levar a mão ate a maçaneta para sair da cabine uma espécie de mancha circular preta apareceu, de repente, na porta a sua frente. Ele deu um grito e se jogou no fundo da cabine, assustado. Com as costas coladas a parede; as mãos cerradas, ele mirou, cautelosamente, a estranha mancha. Dentro dela algo parecia se mexer, ele reparou. Como uma espiral, girando e girando. De repente a dita mancha foi aumentando de tamanho como uma nódoa oleosa de algo que a pouco foi derrubado em cima de um carpete felpudo e se alastra por toda a sua extensão.

Yago gritou por auxílio, o coração ribombando violentamente, mas estava sozinho no banheiro. Não ousou tocar na porta para tentar abri-la e não havia como passar por baixo de sua cabine e varar na que ficava ao lado pois a fresta entre as cabines era por demais estreita. Enquanto aquela mancha escura aumentava de proporção abocanhado a porta em toda sua extensão, o menino percebeu que as lâmpadas do banheiro vacilavam, apagando e tornando a acender, como se estivessem prestes a queimar, todas elas.

Por fim a mancha escura tomou toda a porta da cabine, as demais paredes e começou a deslizar para o chão, tingindo tudo de preto e nesse instante Yago foi engolfado pelo chão como se ele fosse de manteiga e se viu sugado por um túnel espiralado e começou a descer vertiginosamente. E enquanto descia o menino gritava a plenos pulmões: “socorro!” “socorro!” O túnel era todo preto e parecia não ter fim.

Os movimentos do garoto eram lentos enquanto deslizava pelo túnel como normalmente acontece nos sonhos ruins em que temos alguém nos calcanhares e precisamos fugir para salvar a própria vida.

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A sensação era a de que ele caía já há alguns minutos. Cansou de gritar, pois ninguém aparecia em seu auxílio. Ele despencava com a cabeça voltada para cima, mas resolveu içar-se um pouco para baixo para ver se era possível vislumbrar onde o túnel o levaria e lá no fundo do abismo, depois de muito descer, ele avistou uma espécie de chão. Encardido e esburacado.

Ciente da colisão iminente que o esperava, o menino fechou os olhos e encolheu o corpo em posição fetal e com os punhos serrados na frente do rosto esperou pela dor do impacto.... Mas ela não chegou. Quando tornou a abrir os olhos ele percebeu que estava encolhido e deitado no chão. Sem nenhuma lesão no seu corpo. Ao menos nada doía. Agradecido, se pôs de pé e bateu, para sua surpresa, a poeira que encharcava sua roupa e uma grossa camada de pó formou uma aureola ao seu redor. Ele ergueu a cabeça, com curiosidade e apreensão, para olhar atentamente onde estava e nesse instante sentiu muito medo. O menino se arrepiou todinho.

A sua frente se abria uma visão aterradora. Era uma cidade, ou o que restou dela. Estava em ruínas. Yago havia sido ejetado no meio de uma avenida larga. Ele estava ladeado por prédios altos e decrépitos. Torres negras e decadentes. Algumas desmoronadas e outras com um aspecto de que não tardariam a tombar. A escuridão fervilhava em todas as direções, mas havia um resquício de luminosidade porque o menino conseguia distinguir as coisas. Apesar de que não havia lâmpadas ou uma lua ali, era como se uma espécie de luar permitisse a visão. O silencio, a depender do contexto, pode ser perturbador, e para Yago era como se a qualquer momento algo fosse saltar em cima dele. Ao que parecia, o lugar estava abandonado. Ou não estaria?

Ele deu uma olhada para cima para verificar se era possível divisar o túnel pelo qual havia descido, mas não era mais capaz de vê-lo. Em cima do garoto havia apenas um amontoado de nuvens cinzentas e ameaçadoras, em constante sacolejar, que cobriam tudo. Caminhou de modo comedido; tentando apurar qualquer coisa, mas o único que lhe chegava aos ouvidos era o silvo do sopro gelado que lhe fustigava a pele. O menino pôs-se a andar observando atentamente todos os cantos. Ele sentiu um forte ímpeto de querer gritar pedindo por ajuda, mas a julgar pelo aspecto do lugar era bem possível que alguma criatura viscosa e cheia de garras saltasse de uma ou outra das janelas quebradas dos prédios e lhe devorasse ali mesmo naquela rua esburacada. Resolveu apenas seguir em frente. A brisa rodopiante não conseguia anular o fato de que ele ouvia seus próprios passos.

Por apenas um minuto ele achou que poderia estar sonhando, deu um beliscão no braço que doeu bastante, então, logo descartou a hipótese. E de todo modo, tudo ali era muito sólido. Definitivamente não era um sonho. Yago era um misto de emoções naquele momento, mas conseguiu conte-las. Ironicamente ele estava mais calmo agora, que não tinha ideia do que havia acontecido, do que estaria se estivesse apresentando o seminário diante da turma.

Continuou caminhado, na altura de um terreno baldio que ficava ao lado de um prédio tombado pela metade ele começou a escutar um murmúrio. Uma balburdia. Então o menino estacou e apurou os ouvidos. Parecia vir da mesma rua em que ele estava, só que mais à frente. Yago ficou atento. As vozes se aproximavam, mas devagar. Pareciam entoar uma canção uma estranha.

De repente, bem distante, o menino viu um agrupamento se delineado no horizonte trevoso. Vinham em sua direção, não havia duvida alguma. O grupo parecia bem numeroso. Será se eles viam Yago mesmo aquela distância? Era possível, pois ele os enxergava.

O menino ficou sem ação. Esperaria para pedir ajuda ou se esconderia? Seriam pessoas perigosas? E se não fossem pessoas? Não havia como saber. As vozes foram ficando cada vez mais distintas. Foi aí que houve uma reviravolta. Por debaixo de um amontoado de escombros caídos que formavam uma espécie de alcova com o muro do terreno baldio, em meio ao breu, uma voz farfalhou: —Se eu fosse você não ficaria aí parado no meio da rua esperando eles.

Yago girou nos calcanhares com os punhos já cerrados, olhos arregalados, na defensiva. —Quem está aí? Berrou nervoso e tremulo.

Ele começou a andar, cautelosamente, em direção a voz misteriosa quando subitamente a cabeça de um garoto brotou para fora dos escombros: —Anda, venha para cá. Rápido! Sibilou a figura enigmática antes de se recolher para dentro da alcova novamente.

Yago sentiu uma tensão na voz do estranho garoto. Era como se ele, Yago, corresse grande perigo, mas sem se dar conta disso. Olhou mais uma vez na direção do agrupamento estrambótico, estavam mais próximos. Resolveu correr para a alcova junto do estranho. Era melhor ter que lhe dar com um desconhecido do que com milhares deles, raciocinou Yago, para seu espanto, friamente. La dentro, para a grata surpresa de Yago, um toco de vela fixada ao chão batido queimava preguiçosamente. Yago ficou curioso, da rua ele não viu luz alguma.

O estranho parecia ter a sua idade, mas as roupas eram encardidas, puídas e o garoto tinha um tom de pele que lembrou a Yago a cor dos peixes, acinzentado. Em certos trechos a cor da roupa se confundia com a pele do menino, mas por incrível que pareça, Yago não sentiu medo ao constatar esse detalhe. De todo modo o estranho não tinha um aspecto saudável. Ele estava de cócoras diante da vela e de cabeça baixa comia alguns pedaços de pão de um vasilhame que segurava com as duas mãos.

O estranho lhe lançou um olhar neutro, quase desinteressado, e voltou a comer o seu pão. Yago estava bem menos apavorado, mas ainda apavorado. Ele reuniu forças para enfim falar: —Eu me chamo Yago....hum, você é....?

Sem tirar os olhos da comida o menino respondeu categórico: —Ismael.

—Ismael..., você pode me dizer que lugar é esse? Perguntou Yago, perturbado, correndo os olhos pelo teto da alcova.

Ismael parou de comer de repente e levantou os olhos na direção de Yago. A expressão desinteressada abandonou o seu rosto e agora era possível ver curiosidade genuína em sua face: —Você realmente não sabe que lugar é esse? Disse o menino como se fosse óbvio a qualquer um que lugar era aquele.

Yago hesitou, gaguejou e o menino continuou o encarando de maneira interrogativa. Por fim Yago sussurrou: —Não sei... E sentindo que ia chorar continuou: —Eu estava no banheiro da escola, muito nervoso e de repente......

Ismael o interrompeu: —Ah, claro, claro! Isso explica tudo. Soltou um risinho e voltou a sua atenção novamente para comida.

Yago indignado falou quase gritando: (—Isso não explica coisa alguma, o que......) Mas o menino não conseguiu completar a sentença.

Ismael levou o dedo indicador a boca e fez menção para que Yago se calasse imediatamente e habilmente esmagou o pavio da vela deixando os dois na escuridão. Ele beliscou o ombro de Yago e cochichou: —Olhe! Lá na rua.

Yago virou o pescoço na direção da rua e nesse instante levou a mão a boca para reprimir um grito. Na rua, em marcha lenta, a trupe que Yago ouvira, segundas atrás, passava agora quase pela frente do esconderijo do garoto cinzento. Os meninos conseguiam ver a trupe, e com sorte, sem serem vistos. Havia cerca de uma dúzia de figuras na rua. Todos elas maltrapilhas e com a pele cor de peixe também, mas definitivamente eram mais desagradáveis que Ismael. Em todos os aspectos.

O mais gordo da trupe estava sem camisa, com uma calça em retalhos, descalço e com uma coroa de galhos secos em volta da cabeça. Ele estava sentado em uma espécie de trono de madeira que estava sendo carregado por outras figuras cinzentas.

O gordo, munido de uma espécie de chicote, parecia se divertir açoitando quatro infelizes que estavam presos em correntes e se arrastavam de quatro na frente do cortejo.

De repente o gordo vociferou: —Para cada chicotada eu quero de vocês uma gargalhada. E ao açoitar os acorrentados, estes enchiam o ar com as gargalhadas mais generosas. Os que carregavam o rei fajuto também se divertiam. Todo mundo ria. O soberano distribua igualitariamente chicotadas entre cada um dos quatro acorrentados. Aquilo era bizarro.

De repente o rei guardou o chicote, o homem ria tanto que segurava a barriga, e pegou um porrete que estava ao alcance das mãos. Se curvou para frente com o porrete bem seguro nas mãos. Yago viu o porrete subir no ar para depois descer com toda força na cabeça de um homem cinzento que ia a pé ao lado dos agrilhoados que se arrastavam de quatro. Nessa hora o menino reprimiu mais um grito e fechou os olhos. Ao tornar a abri-los esperava ver sangue e tripas por todo lado. Mas não havia nada.

O porrete desceu direto na cabeça do homem comprimindo-a até ficar só o pescoço aparecendo, mas assim que o bastão subiu, a cabeça do homem, inviolável, se restabeleceu como se fosse feita de uma espécie de balão elástico cheio de ar.

—Que diabos foi isso........ sussurrou Yago, embevecido.

—Shiiiiiiii. ordenou Ismael, tenso.

Os dois continuaram observando. O cortejo percorria a rua preguiçosamente com o seu show de horrores.

O rei de repente disse: —cansei do riso, chorem um pouquinho. Todos vocês! A voz do homem gordo era grave, imperiosa. Nesse instante, Yago pode perceber que sentia medo.

Após a nova ordem do rei todos começaram a chorar violentamente. A trupe estava aos prantos. Os que iam de quatro tinham que parar uns segundos para que com uma das mãos pudessem secar as lágrimas. Os carregadores do rei enxugavam os olhos com a mão livre. Todos choravam um choro grave, engrolado. Yago ficou todo arrepiado. Foi o pior som que ouviu em sua vida. Ao menos até aquele momento. Ele viria a descobrir mais tarde outros "sons" terríveis.

Mas o rei não chorava. Do conforto de seu trono e com os braços cruzados, ele parecia, agora, apenas irritado e entediado. Yago esqueceu por um segundo que tudo aquilo era bizarro e pensou “Talvez ele tenha se arrependido da ordem do choro”.

Como se tivesse ouvido o que Yago dissera o rei, de súbito, tamborilou com os dedos no apoio do trono e se levantou. Curvou o corpo para frente e com um gesto floreado disse:

—Recomecemos com a canção de agora a pouco! E depois da ordem deixou-se cair novamente na poltrona: —Agora! Crocitou.

Nesse instante o choro foi encerrado para que o ar fosse preenchido pelo canto. Aquele mesmo que Yago havia ouvido antes de se juntar a Ismael na alcova.

Todos cantavam:

“Este é o nosso senhor, o REI!

Este é o nosso senhor, o REI!

Até para nos molestar é CORTÊS!

Todas as suas vontades são nossas vontades!

Por isso executamos a tudo com lealdade!”

(Este é o nosso senhor, o REI.........).

Bem lentamente aquelas pessoas saíram do campo de visão de Yago e Ismael. A sua música bizarra foi diminuindo de tom até se extinguir num sussurro ininteligível. Com um grande suspiro de alívio Yago se deixou deslizar pela parede da alcova e se sentou quase deitando. Ismael reacendeu o toco de vela e tratou de comer o restinho de sua comida sem dizer palavra alguma. Como se aquilo fosse rotineiro.

—Ismael, o que foi isso? Quem são essas pessoas? Por que aquele homem não morreu com a porretada na cabeça? Que lugar é esse? Yago, queixoso, atropelava-se nas palavras. Queria respostas. Estava indignado com a placidez de sua mais recente amizade, por assim dizer.

—É a trupe do Rei, eles sempre percorrem a cidade atrás de novos membros para o cortejo real. Respondeu Ismael, com voz pastosa, enquanto terminava de comer.

Yago aproveitou que o menino parecia mais disposto a responder as suas perguntas agora que estava finalizando aquela estranha refeição e atalhou: —Que cidade é essa?

Ismael não respondeu. Sustentava um olhar sério, imperturbável. Mirava, agora, a escuridão da rua.

—Esse rei é poderoso? Algum tipo de feiticeiro? Arriscou Yago.

—Não, ele não tem poder mágico algum. Proferiu o outro enfático e com certo fastio.

—Não entendo, então por que os outros pareciam tão dispostos a realizar os seus caprichos? E concluiu: —E se não havia perigo porque você apagou a vela e tivemos que ficar em completo silencio? Yago estava confuso.

Ismael, agora, parecia levemente irritado com o volume de perguntas: —Não falei que não havia perigo. E continuou: —Viu o que aconteceu com a cabeça do homem depois da paulada que levou? Questionou.

—Sim, a cabeça voltou ao normal.... Disse Yago meio constrangido.

—É porque aquele homem era vazio ora bolas. Todos os servos do rei são vazios. E olhando para Yago deu o fecho:

—A vontade do rei consegue preencher e exercer poder sobre tudo que é vazio. O rei gosta de mandar e outros, vazios, estão ávidos a servir.

—Se você estiver vazio com apenas uma olhadela do rei direto nos olhos ele te puxa para o cortejo.

Yago não teve certeza se havia entendido aquilo. Entretanto ponderou, silenciosamente, a respeito. Mas resolveu não perguntar mais nada da trupe bizarra para Ismael. Ele se deitou no chão batido da alcova. A vela estava quase no final. Ismael olhava dentro do potinho vazio laconicamente. Yago pensou que ele ainda deveria estar com fome.

O menino cinzento não havia respondido que lugar era aquele, então como Yago sairia dali? Será se algum funcionário da escola havia ido até o banheiro atrás dele? Talvez a polícia já houvesse sido acionada? Quanto tempo teria transcorrido? Havia aflição, dúvidas. Tudo boiando como numa grande sopa na cabeça de Yago.

De repente, num tom quase etéreo, Ismael falou a Yago como se tivesse acesso aos seus devaneios: —Eu não pensaria muito sobre qualquer coisa se fosse você. E atalhou: —Ao menos enquanto estiver aqui.

As respostas do menino cinzento nada esclareciam nada. Onde era aqui? Que lugar era aquele? Por que não deveria pensar muito?

—Devem estar me procurando. Disse Yago em resposta.

—Te procurando? Questionou Ismael, e depois soltou um risinho. —Você não está perdido, deixa de ser bobo.

Yago não entendeu.

CAPÍTULO DO MEIO: O VALE DAS CABEÇORRAS

A vela de Ismael foi consumida por completo, sobrando apenas um montículo de cera ao chão. Yago estava mortalmente sonolento. Entre cochilos breves sonhou que voltava do banheiro e ao dar início ao seminário os colegas começavam a apontar para a calça dele e rir e olhando para baixo ele constatava que havia se mijado todo, nessa hora acordou de supetão, ressabiado. Não sabia há quanto tempo estava naquele lugar, haveria dia e noite ali? O tom da escuridão parecia o mesmo desde quando chegou. Talvez fosse um lugar de noite eterna.

De repente Ismael disse: —Eu vou atrás de luz, quer vir comigo? Yago espantou o sono para longe, levantou-se, esfregou os olhos e disse com voz sonolenta: —Luz?

—Sim, velas. retrucou Ismael energicamente.

—Ah sim, vamos. Sussurrou Yago tentando despertar por completo.

Jamais ficaria sozinho ali por opção, pensou o recém chegado. Os dois caminharam para fora da alcova. Enquanto saiam do esconderijo Yago não pode deixou de notar que dos prédios próximos era possível ouvir estalos e sons esquisitos como se algo se movesse dentro deles, e devia haver realmente mais pessoas ali, raciocinou o menino ao lembrar da trupe medonha. Se resignou em não perguntar a Ismael. Não queria irritá-lo pois ele poderia simplesmente desistir de sua companhia e deixá-lo sozinho.

O garoto cor de peixe apontou com a mão para o fundo do terreno. Deviam ir na direção oposta à rua principal. E os dois seguiram lado a lado. O mato do terreno baldio estava alto e as ramas pendiam sob ação do próprio peso, a vegetação tinha um aspecto um pouco repulsivo, notou Yago. Os meninos deslizaram por entre a vegetação rumo ao fundo do terreno. Yago notou que havia uma fenda no muro que dava acesso ao outro lado. Ismael olhou para ele e fez um gesto com a cabeça para que passasse primeiro. Yago atravessou primeiro para logo mais descobrir que o terreno baldio no qual ficava a alcova de Ismael dava acesso a outro terreno baldio. Entretanto, ladeando este novo terreno que eles agora acessavam havia várias casas bem semelhantes umas as outras. Estavam na área habitacional do lugar, era o que parecia. Algumas casas delimitadas com muros tortos e decadentes e outras por sebes de plantas semimortas.

Quase todas as casas possuíam duas janelas na parte da frente, porta principal e uma varanda embutida. Não eram nem grande e nem minúsculas. As vidraças estavam quebradas na maioria delas e a tinta descascando em outras tantas. Algumas não tinham mais portas resguardando o seu interior. O quadro geral sugeria que já haviam sido saqueadas há tempos. Será se Ismael encontraria nalguma delas vela ou qualquer outra coisa útil? Ponderou Yago. De qualquer forma a ideia de acessar àquelas casas fez uma fisgada ser sentida na espinha do menino.

Eles saíram do novo terreno baldio e seguiram pela calçada das casas abandonadas. Yago não conseguiu suprimir mais uma de suas curiosidades. Desde quando chegou naquele lugar não ouviu pios, latidos, grasnados, miados, chilreios ou qualquer outro som proveniente de animais.

—Ismael, aqui não tem animais? Inquiriu Yago, decidido a sanar sua curiosidade.

O outro que ia, calado, um pouco mais a frente virou a cabeça levemente para trás, mas logo voltou a olhar para frente: —A existência deles neste lugar seria algo completamente incoerente. Disse numa voz quase etérea. Yago fez um muxoxo enviesado e não disse mais nada. Estava cansado das respostas incompletas de Ismael. Não entendeu o que aquilo queria dizer, mas desistiu de uma nova pergunta. O menino cinzento andava depressa, olhando para as casas de ambos os lados. Yago, no momento, limitava-se ao papel de uma companhia silenciosa, deslizando ao lado do outro como um fantasma. Ismael de repente parou diante de uma casa que outrora pareceu ter sido amarela. Olhou-a atentamente de cima a baixo, coçou o queixo e resolveu chegar mais perto. Cutucou a porta com a unha do dedo indicador, mas deve ter decidido que não era a casa certa porque fez um meneio negativo para si mesmo e voltou para junto de Yago. Continuaram andando.

Os meninos já haviam desbravado um quarteirão inteiro e rumavam para o próximo quando Yago notou de repente gemidos horríveis, e não parecia que eram de uma pessoa só, mas de várias pessoas numa espécie de coro de dor. Ele puxou Ismael pelo braço e forçou o menino na direção de um arbusto próximo e logo em seguida agacharam-se. —Ismael. Disse Yago desesperado e tremendo. —Tem mais alguém aqui. E olhando de um lado a outro: —Você não está ouvindo isso?

—Claro que estou, é o vale das cabeçorras logo ali a frente. E levantando-se calmamente concluiu: —Vem comigo que eu te mostro.

—Vale do que? Os olhos quase saltaram das orbitas de Yago nesse momento.

—Vem logo! Chiou Ismael pressuroso.

—Apenas venha! Reforçou.

Yago hesitou em um primeiro momento mas, vacilando, foi ao encontro do outro que já se encontrava mais à frente. Quanto mais eles se aproximavam do dito vale mais alto eram os gemidos agonizantes. Aquilo angustiou demais Yago. O menino sentiu o coração comprimir-se dentro do peito. A julgar pelos urros era óbvio que não haveria nada de bom ali para ver. Ismael chegou primeiro na entrada do vale e olhando para Yago apontou com o dedo a direção em que ele deveria olhar. Assim que Yago chegou e olhou para o lugar indicado caiu, esvaído de suas forças, de joelhos aos pés de Ismael. A mão foi a boca tentando conter, a custo, um vomito que ameaçava ejetar-se. Os olhos ficaram vidrados de desespero e ameaçaram romper em lágrimas, por fim romperam. O que ele viu era aterrador.

O dito vale era na verdade num terreno entre duas casas. O local parecia ter sido implodido pois havia uma depressão funda e dentro dela havia o horror encarnado. Várias pessoas agonizavam ali, apinhadas, estavam sentadas, com as duas mãos nos joelhos e as cabeças pendendo violentamente para trás devido ao tamanho e o peso, eram gigantescas. Quatro vezes maior que uma cabeça de dimensões normais. Os rostos das cabeças eram completamente descarnados, pestilentos. Os olhos dum vermelho berrante e saltado. As pupilas que nada viam se revirando freneticamente. Moscas adejavam cobiçosas entre aquele ninho de cabeças suplicantes. As bocas, escancaradas em um horror perpetuo enchiam a atmosfera de gemidos que pareciam provim do núcleo do próprio inferno. Os gemidos não tinham palavras, mas aqueles seres ali pediam para morrer.

Yago estava em torpor. Com os olhos marejados observava. Ismael ao seu lado pareceu, nessa hora, se compadecer. Olhou para o companheiro com compaixão. Yago se sentia muito torturado por tudo aquilo, estava sem forças até de se levantar naquele momento. Mas merecia uma explicação a respeito daquele horror. Sem olhar para Ismael apenas disse com voz firme: —Por quê?

Ismael baixou a cabeça. Parecia meditar cautelosamente sobre como responderia àquilo. Por fim começou:

—Eles passaram grande parte de suas vidas pensando sobre as coisas...

A voz do Ismael era serena, mas melancólica: —Pensando acerca dos seus sonhos, desejos, de seus medos e de como transpô-los.

O menino fez uma breve pausa e depois retomou a preleção: —Mas uma vez que todas essas vontades não saíram do campo dos pensamentos...... O garoto chegou mais perto de Yago e gentilmente tocou o seu ombro:

—O assomo de todos os desejos não realizados se avolumara duma tal forma que não havendo mais espaço para conte-los, e pelo fato deles não terem sido exteriorizados, dilataram os limites anatômicos do crânio.

Yago tremia...

—E mesmo que por um milagre essas pessoas, agora, quisessem agir.

E lançou um olhar pesaroso para uma cabeçorra que agonizava mais próximo deles.

—Não seria mais possível. Por isso só gaste pensamentos naquilo que puder executar. Concluiu.

Nessa hora Yago caiu em prantos. O choro engrolava na garganta. Grossas gotas salgadas pediam de seus olhos. Ele lembrou dos próprios medos, de como até aquele momento fugia deles, e percebeu, amargamente, que poderia, muito bem, estar dentro daquela depressão junto dos outros pobres diabos. Olhando mais atentamente para os sofredores, em uma questão de milésimos, se viu lá dentro em agonia, como numa miragem. Nessa hora Ismael o puxou para cima e o abraçou fortemente. Ele chorava e tremia convulsivamente.

—Eu sei por que essa visão te afetou, mas lembre-se a sua cabeça ainda está do tamanho normal. Disse o menino cinzento enigmaticamente e depois deu uma batidinha nas costas do outro: —Agora vamos. Eu ainda quero aquelas velas.

Os dois saíram a passos largos de perto do vale. Abandonando aquela agonia palpável que tanto molestava os ouvidos e a alma.

CAPÍTULO FINAL: O CEMITÉRIO DOS MORTOS-VIVOS

Yago e Ismael caminhavam, taciturnos, lado a lado. O rosto de Yago era uma máscara neutra. Ele caminhava olhando para o chão, talvez ruminando todas aquelas experiências. O céu de nuvens escuras e ameaçadoras permanecia imperturbável. O nível de noite, sempre constante, não clareava. Marchavam agora por uma região onde as casas se alternavam com lojas e outros tipos de comércios. Havia também arvores, mas a cor de suas folhas era estranha. Não eram verdes, mas, contudo, havia uma insinuação do verde no tom delas. Os troncos; completamente escuros.

—Ismael, estamos muito longe ainda? Perguntou Yago com voz desanimada.

—Quase lá, não se preocupe. Você está bem? Disse Ismael sorrindo gentilmente.

—Sim, obrigado por perguntar. Falou o outro constrangido ao lembrar do choro recente.

Passaram do lado de uma grande arvore despossuída de suas folhas. Ela era apenas um intrincado de galhos escuros chocando-se uns nos outros e produzindo um farfalhar solitário. Num quadro geral ela tinha um aspecto assustador. Mas foi enquanto passavam em frente de um comercio em ruínas que Yago viu dentro da loja um sujeito que através do vidro fosco e quebrado parecia os observar. Nesta hora o menino teve um sobressalto, mais de susto que de medo. A figura indiscreta correu para o fundo da loja e desapareceu do campo de visão dele.

Yago, bruscamente, condensou um pensamento que o fez reviver até um pouco de humor, mesmo naquela situação. Pensou ele, havia passado a vida inteira com medo de tudo e sempre fugindo. No entanto, havia descido, a pouco, por um túnel, caído num lugar tenebroso e entrado em contato com pessoas estranhas e mesmo assim, estava ali. Não desmaiara e nem morrera. Ou estaria morto? De qualquer forma, definitivamente, não reconhecia a si mesmo. Era como se ele fosse outra pessoa.

—Ismael, eu estou morto? Questionou e sentiu o corpo tremulo pela coragem de formular tal pergunta.

—Claro que não Yago Disse o outro, divertido.

—Que lugar é esse? Arriscou novamente.

(Silencio)

—Chega Ismael! Disse Yago e estacou, aborrecido. —Você nunca....

Mas interrompeu-se, algo ao seu lado lhe chamou a atenção. Eles estavam, agora, diante de uma espécie de casarão. Havia uma porta central de ferro e um infindável número de janelas de ambos os lados. Em uma seção do casarão a parede havia tombado e dentro era possível divisar uma porção de camas. Quando Yago percebeu que as camas possuíam ocupantes um leve entorpecimento percorreu seu corpo. Ele olhou para Ismael e a expressão deste traduzia: “Vá, dê uma olhada”.

E ambos seguiram até o casarão. Perpassaram a brecha gigante na parede e se precipitaram dentro do local. Podiam ser trezentas camas? Talvez. Haviam muitas. Em cima de cada uma delas havia uma pessoa. Em vestes brancas imaculadas deitadas de peito para cima. Os braços e pernas, retos, ao lado do corpo. Os olhos abertos fitavam o teto do casarão. Dava para atestar que não eram estátuas pois de quando em quando as orbitas delas piscavam. Yago notou que estavam todos com uma expressão neutra. Era como se estivessem hipnotizadas ou como se a consciência estivesse longe dos corpos. Havia uma aura perturbadora que contrastava com as vestes brancas e as feições aparentemente serenas.

Como todos os "pacientes" olhavam para o teto era natural que a curiosidade incitasse os olhos de Yago na mesma direção. E ele olhou. O teto era uma nesga da mais profunda escuridão. A visão o perturbou, era como se ele estivesse ficado cego por alguns segundos, não dava para divisar coisa alguma naquele teto. Desviou de imediato os olhos daquela direção. Aquilo tudo era naturalmente perturbador, mas o menino sentia-se cada vez mais forte para encarar todas as prendas e horrores que pudessem se adiantar à sua frente.

—Qual é o problema com essas pessoas Ismael? Tudo isso parece horrível, no entanto elas não parecem sofrer!

—É porque não estão exatamente em sofrimento. Disse o outro se aproximando da cama onde Yago se encontrava na frente. O menino estava diante de uma senhora morena, bata branca, olhos castanhos, assim como dos outros, fixos no teto.

—Não entendi, elas estão mortas? Compaixão e curiosidade estampavam o rosto de Yago.

—Bem, sim e não. Após breve silencio Ismael continuou:

—Após muitas experiências; algumas boas e tantas outras ruins ou simplesmente por não entenderem quem realmente eram, elas decidiram, por si, que viver não valia o esforço.

—Elas piscam os olhos. Rebateu Yago, decidido a entender aquilo.

—A biologia as obriga a existir em corpo, mas existe algo que há muito se foi. Uma vez que já não almejam absolutamente nada tudo lhes é indiferente.

Yago olhava para aquelas faces genéricas, milhares de orbitas neutras piscando em silencio. Ismael nunca explicava coisa alguma de forma direta, isso ele já havia percebido. Mas desta vez, achou que entendeu o que ele quis dizer.

—Não há nada que elas queiram?

—Exato, e quando não se deseja nada, bom ou mau, já se estar morto Yago.

Ele notou que Ismael segurava um pacote de velas na mão direita. Mas não lembra de ter visto o amigo pegar as velas em qualquer um dos cantos que os dois percorreram.

Yago pressentiu por algum motivo que aquilo era uma despedida e sentiu tristeza. Já gostava de Ismael. Seus olhos ameaçaram transbordar novamente. O outro, sorrindo, veio caminhando em sua direção e o abraçou. Depois o afastou levemente e olhou bem em seus olhos e disse: “Agora vá, eu encontrei minha luz” e levantou a mão que segurava o pacote de velas “e você a sua” e apontou para um ponto atrás de Yago. Este girou de imediato e viu; uma fenda de luminosidade dourada se abria num espaço as suas costas.

Olhou novamente para Ismael: —Iremos nos encontrar novamente?

Ismael, como de costume, não respondeu à pergunta e se limitou a dizer: —Você tem um trabalho para apresentar, ande!

Yago sentiu que algo o arrastava em direção a fenda luminosa. Um zumbido forte lhe encheu os ouvidos atordoando os seus sentidos, ele crispou ambas as mãos nas orelhas. Quando deu por si, o seu corpo já estava metade dentro da fenda de luz dourada.

—Você fala do seminário? Mas não dá mais tempo, eu acho. Quanto tempo eu passei aqui? Yago gritou. Mas o outro também não respondeu à isso.

A fenda de luz estava o aninhando, ele já estava quase completamento engolfado por ela. A sensação era quente. Sentiu que era empurrado para traz e que foi de encontro com uma superfície sólida. Depois foi como se um aspirador de pó gigante o sugasse para cima. Instantaneamente o menino deu por si sentado dentro do box do banheiro como estava antes. Olhou ao derredor. Levantou as mãos e as analisou em minúcia. Estava inteiro e com as mesmas roupas, mas sentia que algo havia mudado. Não se sentia o mesmo. O seu relógio Cássio, para seu espanto, indicava que haviam passado apenas dois minuto desde quando pediu para ir ao banheiro. Isso era bizarro.

Ele saiu do box e mirou o espelho e um garoto sorridente e de semblante altivo lhe sorriu de volta. Desamassou a sua roupa, passou a mão nos cabelos, os arrumando, e partiu rumo a classe de história. Por ele; por Ismael, estava determinado a fazer a melhor apresentação de toda a classe.

Leonardo Castro
Enviado por Leonardo Castro em 21/01/2022
Reeditado em 18/03/2022
Código do texto: T7434539
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