O narrador, o homem e a morte
As roupas estavam largadas no canto quarto e o homem sobre a cama. Estava também largada entre o homem e o lençol uma garrafa vazia de vinho.
- Que noite difícil deve ter tido ele, imaginei.
Mas logo se seguiram alguns minutos e algo o despertou.
- Quem está aí, resmungou ele.
E através da porta ressoou uma voz:
- Sou seu inquilino, paga o que me deves e te deixarei em paz!
O homem respondeu:
- Não te devo nada maldito, este apartamento é meu. Quem é você?
Novamente, através da porta ressoou a voz:
- Tu me deves e vim buscar. Mas não me deves dinheiro ou coisa de valor.
O homem, ainda deitado, e com profunda vontade de dormir retrucou outra vez:
- Seu maldito filho da puta, não sabe que é contra a porra da lei divina acordar um homem em sua cama sem motivo algum?
Se aproximando mais e abrindo a porta a figura sinuosa, caminhou através do corredor escuro e chegando ao quarto respondeu o homem:
- Sei que estas dormindo um sono profundo, que vai além dos olhos fechados e da escuridão sem sonhos. Mas estou aqui porque me deves, assim como qualquer alma vivente.
O homem não acreditando e com os olhos ainda fechados, respondeu:
- Bom, leve minha alma então. Leve minha alegria também, não sei ao certo se já existiu, mas pode leva-la. E por fim, se ainda quiseres, leve a mim. Nada vivi. Nada sonhei. Leve o que quiseres, mas me deixe em silêncio, em nome da porra dos santos, em profundo silêncio.
A morte assim o fez. Tirou-lhe a alma e a alegria. A morte sabia que homem não se levantaria mais da cama. Ele já estava muito distante da vida, mesmo antes e sua chegada. Todavia, uma coisa a intrigou. O homem era indiferente a sua presença. E ela o questionou:
- Não me temes? Debaixo dos meus pés estão as coroas dos reis, os heróis, o rico e o pobre. O homem justo e o corrupto. Até o filho de Deus enrolei em meu manto. Por que não te aflijo?
O homem não respondeu, havia voltado a dormir. A morte cutucou-lhe, ele despertou. ergueu suavemente seu dedo do meio e sorriu. A morte consternada urrou alto, com trovões e todas estas que remetem a um poder transcendental.
E o homem, agora relativamente acordado, respondeu:
- Ah, mais que caralho eu tenho que fazer pra dormir? Eu estou pouco me fodendo pra quem você matou. Você é a morte, o que queria, uma medalha? A vida é uma imensuravelmente confusa e dislexa. Sonhos são pequenas e tolas construções de nossos egos inflados, isso quando não somente objetos de desejo e consumo cuidadosamente plantados e regados em nossas mentes. O amor é como a mais forte chama um dia acesa, mas sempre se apaga com a mais tenra brisa da realidade. Dissestes que te devo. Jamais pedi a vida. E quando a ganhei, deitei nessa cama e dormi.
Atônita, a morte engoliu seco. A modernidade humana estava lhe roubando o emprego. Criando ordas de zumbis, mortos-vivos. mas ela prosseguiu com o questionamento.
- O que o levou a desistir?
O homem respondeu:
- Talvez penses que perdi a fé nos deuses. Fodam-se os deuses, nunca acreditei neles, não como deveria. Talvez agora penses que me decepcionei com o amor. Mas foda-se o amor também, não foi ele. Na verdade, eu jamais vi o sentido ou alegria que todo mundo falava que encontraria. Não tinha um céu azul, eram somente gases na atmosfera que como um prisma filtravam a luz do sol; E o mar, infinito e misterioso, tornou-se apenas uma solução química salina; O amor era um contrato social, com contrapartidas de ambas as partes que geralmente se encerra quando os dois lados obtém lucro suficiente. Tudo era exatamente o que deveria ser, descrito e explicado nas enciclopédias. A política, as leis, os humanos e suas instituições. Nada disso nunca me disse respeito. Não havia mais qualquer mistério. Talvez o único grande enigma restante fosse a alma humana. Mas eu, ao olhar para o fundo de mim não vi coisa alguma. Então dormi. E ainda durmo.
E o homem continuou sua história, a morte o ouvia atentamente. Conversaram por eternidades. Por fim, ao notar o profundo pesar existencial e os ombros cansados do homem a morte lhe propôs um acordo:
- Eu aliviarei sua dor, o carregarei em meu manto e a vida, se ainda posso chama-la assim, não mais o ferirá e seu sono será tranquilo e duradouro. Contudo, não é a mim que ofereço. Mas sim um lugar para descansar, caso um dia você resolva viver o trarei de volta.
Então o homem dormiu.
E a vida não sentiu sua falta, porque sentiria? Fiquei, então, sozinho naquele quarto. Arrumei as roupas no canto e comprei outra garrafa de vinho e deitei. Estava cansado e lá fora, não havia muita coisa que me dissesse respeito. Porém, algo que incomodava: quando eu fechasse meus olhos e dormisse e a morte também chegasse para mim, quem contaria minha história?