.  O sertanejo, mal  se atreve a pensar em saudade. Embora só se sinta saudade do que bom, não está a nosso alcance ou escorreu entre os dedos, como fortuna mal ganhada. Mas aos dezessete anos tudo é um mar de rosas, a não ser quando se está longe de casa, longe das pessoas que amamos. A bate a saudade, e não cabendo nos olhos as lágrimas, derramam no coração.
— Em que pensas, Generoso?
— Penso que é hora de voltar pra casa.
— Para Vitória da Conquista?
— Não. Para o lugar de onde viemos.
A índia Apinajé  esperava o marido. Mas o  relógio dele anda atrasado.  Apinajé eleva uma prece à Virgem Imaculada da Conceição: ‘Daí pressa Senhora, em favor do mundo...’ Nhá Santa reza o terço e intercedede pelo filho postiço.Mas o amava muito. Nossa Senhora Aparecida chega trazendo Onofre pelo braço. A família é toda reunida. Apinajé toca cangoeira. Cuiarana dança.
— Esses são teus netos, pai!
O cacique ergue três tendas. O dono da venda aparece brincado com um tatu-bola. O tatu rola... Escapa das mãos do goleiro. A torcia grita: ‘goooool...’ O time do tatu preto perdeu. Ganhou o time do santo.
— São Jerônimo acudiu-me. Honrou seu nome — Disse Jerônimo.
Doutor Adilson confere o registro na pia batismal. Norberto é seu nome no céu.
— Não aceito purgatório, disse a mulher de Norberto.
— Direto pro céu? Isso é que é ter fé.  Com que nome entraste aqui? Quis saber Norberto, que é o mesmo Adilson, que é o mesmo Dílson...
Edna fez-se de não entendida.
— Tem visto Dilsinho por aí?
— Está brincando com os irmãos.
— Brincando? Ele já tem Neto.
— Aterrissa, Menina. Estamos no ano de mil e novecentos e tempos atrás. Nossos filhos ainda são pequenos. Olha o dinamismo do Dilsinho. Aquele menino vai longe, logo o nome da família constará da história e memória de Montes Claros.
— Desde pequeno ele  foi assim...decidido.  Não há distância que seu braço não alcance....E quando toma uma decisão... Até ameaçou processar Generoso, se este declinasse o verdadeiro nome de seus personagens no livro que o poeta e fazendeiro escrevia com a caneta na mão da neta.
— Edna, psicografia é uma farsa. No céu tudo é verdade. A mentira não prevalece.
— Não é psicografia, Dílson.
— Ora, se Generoso depois de passar para o outro lado da vida, escreveu com a pena na mão da neta, não é psicografia?
— Ô, meu  Cheiro! Tudo estava escrito. A menina  apenas organizou a obra. Acrescentou alguma coisa que só era conhecida na oralidade. Generoso é a própria história de Juramento.
Robert pega   o pequeno livro da mão do anjo que está sobre o mar e escreve ali o nome de Ravenala Palmeira, devota de Nossa Senhora do Rosário.
— Quem é esta? Não conheço a história dela! Não acrescentes nada, sem prévia averiguação —  disse São Miguel Arcanjo.
— Já estava escrito: ‘Esta menina será frondosa como uma palmeira, e quando soprar o vento Norte, navegará os sete mares e será muito aplaudida. O som de seu trompete é um acalanto para a alma de quem dela se aproxima, e toda a Terra conhecerá seus feitos.’
— Que fez ela  para merecer o céu?
— Acalmou almas aflitas com o som de seu trompete.
—Minutos atrás tinha dois maridos —  Protestou o Anjo da Morte.
— Preciso consultar São Pedro — disse o outro  anjo deixando sua balança no balcão de atendimento.
— Mestre eis mais  um pedido de averbação à margem do Batismo.
— Ela não está limpa, vociferou o Anjo Negro.
— Esta é aquela que estava sendo levada, à zona de prostituição?
—  A  contragosto — disse suavemente o Bom Pastor.
Novamente, o acusador ergueu a voz:
— É culpada por pecado grave.
Levanta-se a Defensora dos Aflitos.
— Meu filho, esta alma,  recorreu a meu auxílio. E muitas rosas me enviou  sob a forma de oração.
O Bom Pastor pôs o polegar direito sobre uma gota de sangue que escorria de sua testa, selou a averbação com o símbolo real, confirmando o que a dissera a Ravenala quando a resgatou da sombra morte, na Vila Mimosa: ‘Filha, vou te levar à  casa do Pai.’
Robert afastou-se levando consigo o livro para colocar na mão do anjo que fica sobre o mar. A anotação fora averbada à margem do Batismo com os dizeres: “Devota da Rainha do Santo Rosário.”
Cenas de memórias passadas retomam a mente. Robert vê pássaros nicando frutos na velha mangueira da  casa de Corina. Eram suas lembranças da infância  na Tijuca, vindo à tona.   A velha mangueira sobreviveu ao tempo e à solidão. Nova geração de maracanãs faz algazarra. E  duas meninas recolhem mangas maduras num cesto.  
— Sonho ou fantasia?  Afinal, o que é realidade? O que é fantasia? É possível entrar sonhos de outra pessoa? “ Talvez, futuramente, sim. Mas, enquanto a teoria não estabelecer seu domínio na praticidade, o controle voluntário sobre os neurônios temporal humano não passará de conjectura.”
 Ravenala nunca fora a Campo Grande. Sua mãe mudara-se de Minas ainda nos cueiros, mas... memórias passadas, trazem-lhe à  lembrança grandes enchentes do rio  Saracura. Essas imagens, mais tarde  transferidas por Corina para o córrego Maracanã, invadiram o inconsciente da neta, e por iniciativa involuntária, navegavam em seus sonhos.
— Vi este lugar antes, disse ela ao pai, na primeira  vez  que estivera na Quinta da Boa Vista.
— Minha filha! Nunca vieste aqui!  Também ainda não foste a Campo Grande, mas, um dia irás conhecer a primeira morada de teus ancestrais e verás que muita coisa vai parecer-te familiar.  Quando o pai lhe dissera isso, ela ainda era pequena e não compreendeu. Mas criança não questiona o inquestionável. Simplesmente,  deu uma mordida no algodão-doce e pediu água de beber. É certo que a palavra é capaz de transformar sonho em realidade, e  ficção em verdade absoluta. Se viajarmos  no fantástico mundo da imaginação, torna-se possível penetrar o insondável. Tudo depende da tinta com que se pinta a aquarela da vida.  O bom orador transforma palavras  em imagens; e o sonhador, fantasias em realidade.
— Em teu passado, nada  podes mudar, mas podes reescrever os próximos capítulos da história, submetendo-a à experiência dos erros cometidos.
Fechou o arquivo de suas lembranças e questionou: “ Como o tempo voa!... Se o pai fosse  vivo estaria com cem anos. E ‘vô’ Generoso, centro e trinta e seis. Generoso não conheceu telefone sem fio, nem celular, nem máquinas que gravam imagem e voz. O povo   daquele tempo conheceu outra tecnologia, guardadas as proporções de tempo e cultura, conviveu  com inventos rudimentares e com  a tecnologia, até então considerada sofisticada.  Para  eles, no entanto,  conversar com os mortos era apenas expectativa e falácia dos espíritas, rejeitada pelo cristão.
— Ravinha! Não se pode evocar os mortos.   
— Claro! A Igreja sabe que o rei Saul evocou o espírito de Samuel, e isso não agradou a Deus. Há muitos espíritos vagando pelos ares! um deles pode vir transvestido de lobo em pele de cordeiro, e enganar a muitos, fazendo-se passar por aquele que foi evocado. Nisso, a Igreja é prudente. Não convém chamaar os mortos à presença dos vivos,  porque não temos certeza se aquele quem goza, ou não, da intimidade com Deus
— Queres dizer que...
— Quero dizer que não devo dizer. Se estiverem em bom lugar, trarão paz, tranquilidade etc... Senão...bem o senão prefiro não dizer. É desagradável, terrivelmente desagradáve...
 Ravenala nunca intentou contato com os mortos usando o   psicoteledecodificador.  Ela desejava muito falar com o  ex-professor de Português, porém, o contato entre vivos e mortos só é possível se houver aquiescência de ambas as partes e o padre Davi jamais daria a mão à palmatória. Jamais concordaria que isso fosse  possível, ainda  no 2057.
— Esqueceste de anunciar o principal.
 —O quê?
 — Mesmo que as partes estejam acordes em se comunicarem, é preciso que haja permissão de Deus.
—  Não é necessário dizer isso... Nada acontece sem a permissão de Deus.
A aproximação de uma gaivota interrompeu o discurso sobre o contato com os mortos.
— Veja Ravinha, uma linda gaivota pousou no capelo do navio!
— Nunca tinha visto uma gaivota tão bonita. É diferente de todas as demais, tem penas reluzentes...O branco e preto das vestes lembra o traje de uma freira.
— Pousou  outra no mesmo capelo. Mas tem as cores azul e branco, diferente da outra...
— Parece que está com as vestes da Virgem Maria.
— Foi essa a imagem que me veio: o azul do céu. E o branco da  paz.
— Azul da cor do mar. E tu me dizes que aqui não é o céu?
— São os mimos de Deus. A vida contemplativa nos oferece momentos de céu aqui mesmo na terra.
— Sim, criamos nosso mundo com aquilo que se move dentro de nós mesmos. Céu ou inferno, cada um constrói o mundo  no qual orbita sua alma..Faz parte da liberdade de escolha.
***

Adalberto Lima, trecho de "Estrela que o vento soprou."