O Criador

Ao dobrar uma esquina e entrar numa ruela do centro da Cidade Velha, reconheci o sujeito barbudo, óculos sem aro, de calças jeans surradas e camisa de flanela xadrez vermelha, sentado numa mesinha de café ao ar livre, tablet na mão, uma xícara de capuccino e um prato de cookies com gotas de chocolate ao lado. Aproximei-me cautelosamente, e só quando estava a dois passos dele, exclamei:

- Elmer Carruthers!

Pego de surpresa, ele soltou o tablet sobre a mesa e olhou-me por cima dos óculos de leitura.

- Com mil diabos, se não é o Fred Jenkins! - Disse ele, abrindo um sorriso de dentes enormes.

Ergueu-se e trocamos um abraço. Depois, nos sentamos frente a frente.

- O que vai querer, Jenkins? Um café? Croissants?

- Bem, eu já tomei café antes de sair do hotel... mas acho que lhe acompanho neste capuccino.

Ele chamou o garçom e fez o pedido. Depois, voltou-se para mim:

- Mas o que faz por aqui, Jenkins? Está a serviço da universidade?

- Não exatamente... - respondi. - Esse é o meu ano sabático. E depois que terminei seu último livro, creio que meu subconsciente acabou me trazendo até aqui.

Carruthers aquiesceu, um meio sorriso desenhando rugas de expressão em seu rosto barbado.

- Rodamos, rodamos, e quando percebemos, estamos andando pelas vielas da Cidade Velha, não é?

- Parece mesmo isso - assenti, olhando para o fim da rua onde erguia-se na sombra a vetusta muralha de pedras calcárias, que marcava os limites da Cidade Velha no alto da colina. E apontando para o tablet sobre a mesa, cuja tela havia se apagado:

- O que anda escrevendo?

O meio sorriso no rosto de Carruthers intensificou-se, rugas surgindo nos cantos dos olhos.

- Você lembra de H'ravaine?

- Como poderia esquecer? H'ravaine, o mago das Pequenas Artes! Sempre envolvido em negócios escusos e trambiques de toda sorte...

Carruthers cofiou a barba vermelha.

- Boa descrição, Jenkins, boa descrição. Pois estou escrevendo um romance onde H'ravaine será protagonista... parte da ambientação é justamente aqui, na Cidade Velha.

Fez um gesto amplo para o nosso entorno, de casas centenárias construídas com blocos de arenito, portas e janelas de pintura descascada, vasos com flores de cores berrantes, varais que atravessavam a rua, de uma janela a outra, com roupas que adejavam ao vento da manhã. E sons de gente rindo, louça na pia, pássaros ocultos em gaiolas. E Rita Pavone, em algum lugar, cantando "Datemi Un Martello".

- Mas sem Wi-Fi, eu espero - comentei.

- Sinal de Wi-Fi é algo extremamente dispersivo - concordou Carruthers. - Acabamos perdendo o foco daquilo que realmente deve ser visto...

Meus olhos foram atingidos pela luz do sol, que acabara de se elevar sobre o topo da muralha. A rua inteira, suas pedras gastas e polidas, reverberou como ouro, e antes que eu tivesse que desviar os olhos por conta do brilho, vi passar na luz as sombras de um grupo de peregrinos, dançarinas exóticas, e soldados empoeirados vindos de alguma refrega extra-muros.

- É belo, não é? - Disse Carruthers me encarando, sorriso aberto.

[15-02-2017]