Cordas #Final

Parte 8 - Minhas cordas.

O espelho refletia agora não só minha imagem, diante daquela desistência, a bailarina me mostrou que eu tinha cordas.

Minhas cordas não eram de ferro, nem de vidro, nem linhas, tampouco eram feitas de cristais. Minhas cordas eram aquelas cordas pretas que eu já havia visto.

Encostei nelas, eram elásticas e saiam de todas as partes, das minhas costas, braços, da minha cabeça...

Continuei me encarando no espelho e percebi marcas na minha pele que não estavam ali antes, cicatrizes de algo que uma vez fora uma ferida profunda... Seriam lugares onde antes residiam cordas?

Percebi que essas feridas continham memórias, de coisas que deixei pra trás um dia, cordas que se desprenderam, cordas que eu arranquei de mim.

Mas ainda restavam dezenas delas, que iam de mim até o céu, aquele céu escuro.

Segurei firme em uma das cordas, e puxei com violência, isso causou uma dor imensa no meu corpo, e a corda era firme... Parei de puxar, coloquei minha roupa e fui encontrar a Bailarina Arco-iris.

Parte 9 - Nem preto, nem colorido.

Ela estava radiante, como se eu nunca tivesse feito mal a ela:

- Tenho algo a dizer. - Falei a Bailarina.

- Pode dizer. - Respondeu ela, percebi que minhas cordas negras e elásticas se entrelaçavam com as dela de cristal.

- Nem preto, nem colorido. Podemos viver no meio termo, felizes, não quero desistir da escalada, mas não me faz subir tudo de uma vez...

Ela riu e ficou corada, ela tinha dessas de misturar várias emoções em um momento.

E assim minha história com a bailarina se firmou, de tempos eu subia, de tempos ela ria e nós continuávamos felizes.

Parte 10 - A garota sem cordas.

Muito tempo depois, depois do acerto de cores, depois de me acostumar com todas as cordas, inclusive as minhas eu vi algo curioso.

De longe percebi, lá da entrada da universidade, uma moça sem corda nenhuma.

Ela parecia comum, simples, se não fosse pelo fato de não ter cordas nas costas. Nem mesmo a estrela ampulheta foi capaz disso, ela escondia suas cordas porém lá estavam elas.

Como seria possível, alguém ser cordas nenhuma? Como poderia algo assim ter acontecido?

Foram perguntas que ficaram muito tempo sem respostas, e mesmo depois de conhecer, conversar por horas com a moça, eu nada via.

Não eram apenas as cordas que eram inexistentes, ela não parecia ter forma. Enquanto eu via estrelas, ampulhetas, gotas e até uma bailarina de arco-iris, a moça sem cordas não tinha forma de nada, não tinha cordas, e não queria me mostrar nada.

Nos víamos com frequência, a moça estudava na mesma universidade que eu, cheguei a comentar com a Bailarina sobre ela.

Depois de algum tempo, contei a ela sobre aquela estrela, e disse que me contara sobre as cordas, e foi assim que consegui passar pela primeira camada de névoa dentro dela.

Ao me abrir sobre aquela estrela que me contara da existência das cordas ela admitiu vê-las também, as cordas:

- A sua é engraçada, parece ser resistente mas ao mesmo tempo não é indestrutível. - Disse a moça sem cordas.

- E você? Qual a história por trás das suas cordas?

- Eu nasci sem elas. - Foi seca e breve, não insisti no assunto.

- Você não é a primeira pessoa que conheço que enxerga as cordas, mas é muito raro isso acontecer. - Ela disse. - Isso é bom.

- Você também não é a primeira. - Rimos.

Essa amizade cresceu, e com o tempo consegui ver algumas marcas nela, como as que eu tinha, eu sabia no fundo que ela não havia nascido sem as cordas, elas haviam sido arrancadas!

Com o tempo as feridas foram aparecendo, e finalmente falamos sobre isso:

- É duro o processo, algumas não foram propositais, mas com o tempo todas saíram. - Disse. - E meu céu ficou todo escuro.

O céu dela, também é escuro:

- Sei o que é isso, tenho esse céu escuro, mas as cordas em mim, como pode ver, existem ainda.

- Minhas primeiras cordas foram arrancadas a força por outra pessoa que não sabia o que estava fazendo, depois disso a maioria delas se soltou por conta própria, e as que restaram eu acabei dando um fim, sou livre.

Parte final - Liberdade.

Seria isso então? O conceito de liberdade? Se livrar de todas essas cordas?

Chegando em casa me despi novamente, agarrei com força uma das cordas e puxei.

Puxei com violência.

Puxei até que meu corpo não aguentasse mais, minha cabeça parecia que ia explodir.

Continuei puxando, o suor caia da testa, consegui sentir o sangue pulsando.

Puxei um pouco mais, pude ver as pessoas que me criaram, os conceitos impostos, pude ver tudo aquilo que havia formado aquela corda em mim, o quão dificil era perceber que as pessoas enfiaram essa corda em mim, as pessoas que diziam me amar.

Puxei, puxei e puxei mais, puxei até sentir que meu coração iria explodir.

Mas nada aconteceu, a corda não arrebentou.

Essa ideia tomou conta de mim, liberdade.

Eu definitivamente não queria que aquelas cordas fizessem parte de mim nunca mais. Eu senti o que elas representavam, fui correndo contar para a Bailarina tudo sobre as cordas.

Não entendi como ela lidou com isso.

Percebi que com o tempo ela começou a ser capaz de ver as cordas dela, e até as minhas.

Mas percebi que isso machucava-a, ela ficava entre destruir ou cuidar de suas cordas, afinal elas eram de cristal, e cristal é brilhante e lindo, é confortável.

Juntos falamos muito sobre as cordas, quebra-las ou mantê-las.

No começo foi um assunto dificil, conflitante. Depois de um tempo foi um assunto que ela passou a se interessar mais, e juntos chegamos numa conclusão.

Precisamos juntos da ajuda de quem sabe como arrancar essas cordas, mas como propor algo tão intimo?

Por incrível que pareça, não precisamos propor.

Foi algo natural, quando juntamos pessoas que querem a mesma coisa, um objetivo em comum, as coisas fluem.

E uma certa noite, juntos, nos ajudamos.

Cristal, escuridão, arco-íris, elásticos, cicatrizes.

Tudo, de uma forma orbital se juntou num único céu.

E nessa dança de conceitos, eu senti uma corda de cristal se desfazendo, sem deixar rastros, sem machucar.

Foi quando tudo fez sentido.

Não precisamos nos destruir para arrancarmos as cordas que foram colocadas, de uma forma ou de outra podemos nos desprender delas, sem forçar a destruição.

Confesso que esse dia foi importante, pra mim e pra elas.

Hoje consigo ver todas as cicatrizes importantes da moça sem cordas.

Hoje os cristais que são firmes e lindos estão pouco apouco se tornando outra coisa.

Hoje eu, após algum tempo, consegui me desprender com dor de algumas cordas a mais, e com o tempo prevejo que isso irá acontecer.

Talvez eu faça as pessoas enxergarem as cordas... Talvez algumas delas queiram arranca-las por conta.

As cordas estão ai, de alguma forma. Cabe você decidir o que fazer com elas.

Pedro Kakaz
Enviado por Pedro Kakaz em 23/12/2015
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