Cordas

Foi só ao completar vinte e dois anos que eu enxerguei.

Parte 1 - Estrela

Quando criança gostava de olhar as estrelas, e mesmo sem entender o que eram aqueles pontos brilhantes no céu, eu admirava. Não por serem brilhantes, mas por conseguirem brilhar mesmo naquela escuridão.

Certo dia ainda criança expus minha admiração àquela pessoa:

- Sabe uma coisa que eu enxergo e os outros não? - Falei presunçoso como sempre fui.

Era fim de tarde, o sol descia por trás do horizonte, deixando tudo laranja, a grama e as pessoas.

Olhou pra mim, os olhos claros me fitando:

- As estrelas. - Falei. - Sei que todos as vêm, mas ninguém as enxerga.

Rimos:

- Sabe uma coisa que eu enxergo, que ninguém enxerga e nem ao menos vê? - Disse, me espantando.

Será que existia algo que eu ao menos seria capaz de ver?

- As cordas.

As cordas... Eu não tinha entendido nada. Eu conseguia ver todo tipo de corda, corda de amarrar nos barcos naqueles filmes de piratas, cordas do tênis, que chamamos cadarço, conseguia ver todo tipo de corda. Presunçoso.

O tempo passou, eu cresci reparando nas cordas, em todo tipo de corda, mesmo quando aquela pessoa sumiu, e como sumiu.

Nunca mais vi as estrelas da mesma forma.

Quando uma pessoa importante some, é como se todas as estrelas se apagassem, como quando as nuvens densas tomam conta do céu... Sabemos que as estrelas estão ali, mas por algum motivo elas não querem ser vistas, era como aquilo me pareceu.

Por muito tempo o céu se apagou, e eu pensando naquele nosso diálogo que eu não tinha entendido, as cordas. Foi a recordação que deixara pra mim, uma conversa confusa.

Eu só queria mostrar como eram importantes aqueles pequenos brilhos na minha escuridão... Eles se foram.

Anos se passaram onde o céu ficou fechado.

Aquela estrela voltou, da forma que havia ido, de repente.

O céu não estava mais nublado, depois de tantos anos as nuvens haviam sumido, porém só um pequeno brilho se mostrava naquela imensa escuridão.

Um brilho ousado, confiante, que dançava naquele palco imenso que era o céu.

Quando voltou, conversamos muito, horas, dias, semanas... Conversamos durante muito tempo, até que finalmente voltou a falar:

- Sumi por conta das cordas. - Olhou como se me examinasse. - Não costumo falar delas, mas eu acredito que um dia você vai ver as cordas também.

- O que são essas cordas? - Perguntei aflito, foram anos tentando entender algo que agora me falava, eu tinha uma esperança de saciar essa curiosidade.

Riu.

Passávamos muito tempo juntos, tempo suficiente pra quela pequena estrela brilhar intensamente na imensidão escura. Tempo suficiente.

Ouvi dizer que era feliz quem queria. Não foi o caso.

Minha estrela perdeu tudo que tinha, seu motivo de viver, seu motivo de brilhar... Nunca vi alguém chorando tanto, foi triste, doeu. Era como se minha estrela também tivesse um céu, e que esse céu fechou, escureceu e o brilho se foi.

Aquela estrela só falava uma coisa com tamanha perda:

- É culpa das cordas, eu não consigo viver mais com isso.

E sumiu, novamente sem aviso prévio.

Novamente tudo estava escuro. Nada de estrelas.

...

Parte 2 - Visão e ampulheta.

Dois anos se passaram desde que meu céu escureceu. Eu foquei meus dias em enxergar as coisas que antes não conseguia, em ver o que eu não via, quem sabe com o tempo eu não entenda o que são as cordas.

Passava as tardes e noites lendo pensamentos, pensamentos atormentados de homens que não viviam mais entre nós, ancestrais que deixaram seus pensamento aflitos a nós, não como se eu pudesse solucionar, mas para enxergar.

E enxerguei muitas coisas que antes não via, grandiosos pensamentos tomaram conta de mim, e antes que eu pudesse perceber, um novo brilho tomava conta de mim.

Claro, era isso o tempo todo.

Aos 18 anos, eu pensei ter enxergado tudo. Presunçoso.

Aos 18 anos eu me tornei minha estrela, meu céu não precisava de brilhos externos nenhum, os grandes pensadores do passado me presentearam com a minha estrela.

Presunçoso eu inerte trilhava um caminho próprio, onde muitas estrelas passavam batidas e ofuscadas pelo brilho da presunção.

Era um brilho tolo, um brilho só meu, um brilho que não duraria muito. Intenso e limitado.

Mesmo me tendo como meu próprio herói, eu sabia que das cordas eu nada sabia, e esse brilho me fez chegar a uma conclusão.

As cordas não existiam.

Feliz com minha própria conclusão, fiz meu brilho atingir outras pessoas. Eu seria o brilho das escuridões alheias, era ótimo pra mim, eu estaria sendo uma estrela, aquilo que um dia foram pra mim.

Era confortável.

Mas passou.

Passou quando percebi que meu brilho, minha presunção, minha genialidade, não iriam me tirar de uma situação.

Aquela estrela voltou, aquela primeira, ela não era mais uma estrela.

Uma ampulheta.

A ampulheta que esperava a areia cair, lentamente.

Uma ampulheta irreversível, uma ampulheta que ia se mostrar uma única vez, a areia ia cair, e tudo ia acabar.

Nem todo meu brilho, nem todos os pensadores do passado me fizeram virar a ampulheta.

A areia caia e caia, caia lentamente, em forma de fios...

Fios... Cordas?

Não eram as cordas, as cordas não existiam.

E, momentos antes daquela ampulheta terminar tudo, momentos antes da ampulheta destruir meu brilho próprio e me afundar na escuridão, eu perguntei:

- As cordas são reais? O que são as cordas?

Não riu, chorou.

- As cordas me dominaram, não consegui.

A ampulheta terminou seu show.

Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

E a ampulheta que já fora estrela, se transformou:

- Eu vou sumir, mas agora com aviso prévio.

E foi.

...

Parte 3 - Dor.

A dor da transformação me transformou.

Presunção não fazia mais parte de mim, não inteiramente.

Eu corri, corri.

Corri na chuva. Corri de noite.

O céu estava escuro e eu não queria mais brilhos.

As gotas me machucavam, as gotas que molham o céu desde meu nascimento.

As gotas do meu pai, as gotas das perdas, as gotas da tristeza.

As gotas me cortavam, eu corri.

Corri até não aguentar mais, corri até meu pulmão fritar, corri até cair.

O asfalto úmido me abraçou, e eu tive um vislumbre.

Longe, bem longe dali, onde um dia o sol tocou o horizonte, eu vi.

Cordas espalhadas por todo o céu, vindo de todos os lugares.

Deitado na rua vazia eu finalmente as vi...

...

Pedro Kakaz
Enviado por Pedro Kakaz em 24/11/2015
Código do texto: T5458998
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