URIAH E O CRASH DE 2010

Era uma tarde de sexta-feira. Os principais canais de TV, em rede nacional, anunciavam, com estardalhaço, as últimas notícias vindas lá das terras de Platão. A notícia da hora era o “crash” na Grécia e a convulsão social que já se iniciara como resposta da população às últimas medidas do governo.

Por imposição do FMI, para a obtenção de um suposto mega empréstimo com o qual tentaria aplacar a crise econômica que se instalara no país, o governo grego acabara de tomar medidas drásticas para contenção dos seus próprios gastos e, assim, dar uma freada no endividamento que já ultrapassara a medida do tolerável.

Dentre elas, famigerado decreto que iria reduzir, pela metade, os salários de todos os trabalhadores, funcionários públicos e profissões não liberais.

Como numa espécie de pandemia, pior que a falsa da Gripe Suína, os gregos, desde Atenas até aos rincões das ilhas do Mar Egeu, protestavam, enquanto a polícia do governo cuidava de lhes acalmar os ânimos, baixando o sarrafo, sem dó nem piedade.

Numa sucessão infindável de entrevistas, repórteres especializados inquiriam economistas que, assumidos em sábios adivinhos, propagavam suas previsões sobre o futuro desanimador dos acontecimentos na Europa, que deixariam conseqüências trágicas pelo mundo afora.

Sisudo e com aquela costumeira cara de tacho global, Joelmir Betting procurava arranjar perguntas complicadas sobre a economia que se esfrangalhava na Grécia e que soluções deviam ser tomadas para que os cidadãos não vissem sua poupança engolida pela inflação galopante, pelo desemprego conseqüente e pelas medidas fiscais que estavam por cair sobre suas cabeças.

Uriah, que não ia muito na conversa mole de Joelmir, passou a mão no controle e, de um só golpe deu uma zapeada para outro canal de TV. Ficou puto da vida ao ver um sujeito da Igreja Continental da Vida Santa pregando e explicando a Parábola das Três Moedas e pedindo aos fiéis, dinheiro vivo para ajudar a manter o programa no ar, naquele e em outros canais, agora, da TV a cabo e em HD.

Mais puto, ainda, mudou para outro canal e, lá estava o Celso Minc explicando o que poderia acontecer com a BOVESPA, se a crise grega se espalhasse como já estava acontecendo, pela Espanha, Portugal e, por azar, apagasse, também, os holofotes da Cidade Luz.

Afundando no sofá acendeu um cigarro sem perceber que o anterior ainda estava soltando aquela fumacinha fétida, com aquele cheiro desgraçado de nicotina misturada com saliva.

Uriah nascera e fora criado no seio de uma família procedente de Tel-Aviv na qual, a cultura do lucro era parte do DNA. Para eles, todo e qualquer processo ou atitude que pudessem resultar em algum tipo de lucro, principalmente o financeiro, não deveria, nunca, ser postergado.

Para a obtenção do lucro, de preferência sem limites, qualquer meio seria justificado, mesmo que isso fosse contrário às normas legais, éticas, ou seja, lá de que ordens fossem.

Alguns dos seus familiares eram altos investidores, especuladores, comerciantes de jóias, proprietários de grandes lojas de departamento, etc....

Ao que ouvira, mesmo sem saber que quem eram, alguns dos seus ancestrais teriam pertencido ao seleto mundo dos banqueiros e parece que tinham algo a ver com um banco que, por trás de um nome espanhol, era controlado por uma instituição holandesa que, na verdade, não passava de testa de ferro da Coroa Britânica.

Uriah estava a ponto de estourar. Nervoso e descontrolado, já imaginava o “crash” acontecendo nas bandas de cá, na antevéspera das eleições. Em sua cabeça deformada, já imaginava o governo baixando uma MP que, à guisa do governo Collor, houvera garfado a poupança do infeliz povo que o elegera.

Para ele, o país, apesar da maciça propaganda governamental, comandada pela reencarnação de Paul Joseph Goebbels, ia de mal a pior. As notícias propagadas iam na contramão dos acontecimentos e o povo cada vez mais atacado pelos gravames fiscais, estava sendo escamoteado até mesmo nos seus miseráveis direitos.

Naquele exato momento, na Câmara dos Deputados, acabara de entrar em votação um decreto que iria alterar substancialmente a tal Lei de Responsabilidade Fiscal. Um deputado sem mãe criou um artigo que iria impedir, durante dez anos, qualquer aumento salarial para os servidores públicos.

Em razão disso, as associações das diversas classes de servidores estavam se mobilizando para os protestos, numa espécie de solidarismo distante com os cidadãos gregos.

No entanto, à medida que os servidores preparavam suas faixas e gritos de ordem, o aparelhamento do estado já estava planificando as medidas neutralizantes. Os agentes da ordem pública tratavam de inspecionar seus cassetetes, ampolas de gás, escudos, bombas de efeito moral e outros petrechos.

Uriah entendia que a usual ação repressiva contrariava tudo o que se dizia a respeito da democracia. Como entender um estado que fora instituído para proteger o cidadão, elegendo um sistema de deveres e direitos mútuos, que em vez de proteger esse cidadão, acabou se transformando em um estado fisco-escravagista, se protegendo contra o cidadão? Isso daria uma ótima discussão nos bancos de uma faculdade de Ciências Sociais, no estudo da “Teoria Geral do Estado”.

Divagações à parte, Uriah estava preocupadíssimo. Numa jogada considerada certeira, havia aplicado uns três dias antes, uma boa parte das suas economias na aquisição de um grupo de ações que, segundo suas projeções e as informações da Corretora, em breve produziriam lucros quadruplicados. Com essa grana, poderia investir um pouco mais nos seus negócios e, em conseqüência, auferir mais lucros ainda.

Nosso herói não era nada afeito à correção com os impostos que considerava terríveis gravames à atividade comercial. Assim, desenvolvera um esquema próprio para comprar e vender, sem essa encheção de saco de IPI, ICM, ICMS, IR e os cambaus.

O computador era sua ferramenta de trabalho e a Internet o caminho para as transações com as quais se deleitava tanto pelo prazer do lucro, quanto pela satisfação de ludibriar o fisco que, em nosso país é o que há de mais perfeito com o maior e melhor aparato da tecnologia moderna. Nada se compara à perfeição fiscal brasileira.

Às vezes, Uriah se indignava ao perguntar a si próprio: “Se o país tem essa perfeição fantástica no seu mecanismo fiscal, porque cargas d’água não têm a mesma eficiência no que diz respeito à educação, saúde, previdência, segurança, transporte, etc... etc... Quando isso tudo fosse solucionado, talvez fosse decente pagar essa exorbitância de impostos que nos cobram”.

No entender de Uriah, a voracidade fiscal e a velocidade com que o governo cria e aumenta impostos, taxas e que tais, era uma forma de manter, sob disfarce, um novo tipo de escravidão. Sim! Era isso mesmo! Aqui, fingimos que vivemos em uma democracia mas, na verdade, o regime é o de uma nova forma de escravidão; a escravidão fiscal. Nela, o povo trabalha para sustentar o governo, seus interesses partidários e a manutenção de uma ideologia da corrupção...

A grande dúvida do nosso herói era o que fazer com o que lhe restara aplicado. Tinha algumas economias em Fundos do Tesouro Direto. Esse tipo de aplicação tinha sido feito por ser um ouvinte assíduo do comentário de um jornalista econômico da CBN.

Todos os dias, no horário matutino, aparece um sábio economista que, com voz de demônio manso, incita, persuade, convence e direciona seus ouvintes para o investimento no tal de Tesouro Direto. Uriah de tanto se expor a essa tentação, acabou por aplicar uma bela grana nesse tipo de manobra financeira. Mesmo alguém tendo lhe alertado que o tal jornalista poderia ser um laranja a serviço dos bancos...

Passavam-se as horas e os programas da TV iam sendo sucessivamente interrompidos para dar noticias sobre o andamento da crise na Grécia. Foi numa dessas que os jornalistas chamam de “edição extra”, ou “edição especial” que o mundo de Uriah veio abaixo.

Lá de Lisboa, o “enviado especial” dava conta de que a situação havia se agravado e que, agora, Portugal e Espanha estavam mergulhados na crise; despencaram as bolsas e as ações vieram abaixo. Bancos até então de solidez comprovada se esfarelaram como se fossem montinhos de areia.

Em Paris a corrida aos bancos era algo inimaginável e o Euro estava escorrendo pelos dedos. Enfim, toda a Europa estava assistindo ao que parecia ser o início do desmonte do sistema de usura que durante tanto tampo maltratara o mundo.

Em outro flash de reportagem, agora vindo de Nova York, um noticiarista descabelado e sem saber direito o que dizer, anunciava que estava ocorrendo uma onda de suicídios em Wall Street... Grandes bancos estavam sem condições de atender à corrida que já tumultuava o trânsito e a segurança nas grandes cidades americanas e que o FED estava sem lastro para atender aos componentes do sistema.

No Vaticano, o papa reuniu o Colégio Cardinalício para discutir o caminho a tomar com as estruturas do Banco Ambrosiano já sentindo os primeiros abalos do terremoto que avançava. A quantidade de mitras era tão grande que o imenso cabide já não dava conta. O quorum era excepcional!

O Cardeal Camerlengo, de olho no Trono Papal, sugeriu que fosse oficiado um grande pontifical, onde deveriam estar os príncipes da igreja invocando todos os santos. Afinal, os santos deviam a condição em que se encontravam, aos esforços dos cardeais no estudo e processamento de longos e penosos processos, sob a égide do Direito Romano. Agora, era a hora deles mostrarem algum serviço à causa...

Obama, o Barack, branco de paúra, parecia perdido, com o dedo nos botões do seu telefone celular, sem saber ao certo a quem se socorrer. Deixou falando sozinhos os figurões da BP, depois de ameaçá-los com a cobrança de uma senhora multa que deixaria vesgos os da turma do petróleo. “Danem-se! Que subam o preço do barril para US$250,00!”

No Pentágono, o alto escalão militar discutia medidas de ação emergencial para a contenção da desordem que já se expandia por todas as cidades da América do Norte.

Em Londres, O Primeiro Ministro mandara avisar à Rainha e aos membros da Família Real, que caçavam raposas, que Lordes e nobres estavam em Buckingham aguardando instruções para que a “Commonwealth” pudesse agir diante dessa hecatombe mundial.

De repente, surge, em edição nacional, a cara insossa do Ministro da Fazenda. Mal cumprimentara os telespectadores, foi logo avisando:

“Face à crise que o mundo atravessa, iniciada na Grécia, nosso país, por mais estabilizado que esteja, economicamente, não poderá passar incólume por mais essa situação difícil. O governo terá que tomar medidas de exceção e, a partir de agora, ficam congeladas, em todo o sistema bancário, os depósitos em conta poupança ou conta corrente que importem em mais de R$ 50.000,00 e todas a aplicações na Bolsa, sob qualquer título. Os bancos e os pregões entrarão em regime de “feriado bancário” até deliberação ulterior. Ficam impedidas, também, as transações que impliquem em saída de divisas do país.

Finalizando, sinalizou com redução drástica de salários, contingenciamento de verbas orçamentárias, suspensão das verbas para transporte de estudantes e, principalmente, redução da participação governamental nos preparativos para a Copa do Mundo.

Dito isso, o ministro, com cara mais inexpressiva, ainda, despediu-se levando, com ele, as esperanças de todo um país e, principalmente, a de Uriah.

O rapaz, como se fosse um autômato, sem ter qualquer tipo de tino, levantou-se, lentamente e, tal qual um zumbi, foi até à varanda do apartamento. Olhou para um lado, olhou para o outro, subiu no parapeito e se atirou do sétimo andar. Com um baque surdo, seu corpo estatelou-se no asfalto que se derretia ao Sol do Rio de Janeiro.

Infelizmente, do apartamento de Uriah não dava para ver a praia. As areias estavam cheias de lindas mulheres quase nuas, cheias de camelôs vendendo seus petiscos, mar de almirante, garotos surfando e gente na maior pegação...

Eram, todos, daqueles que não assistem televisão e nem tem dinheiro nos bancos.... Estavam vivinhos da silva, sob o Sol, o sal e a sacanagem geral da Zona Sul carioca...

Enquanto isso, lá pras bandas da Pérsia, “O Cara” tirava baforadas de um narguilé, saboreando quibes quentinhos, tomando umas com um amigo sob, os olhares divinos de um Aiatolá...

Era proibido tirar fotos. mas um xiita, nem tão xiita assim, revelou a um jornalista ocidental que os dois presidentes estavam vestindo a camisa do Corinthians, contando anedotas de português!!!

Saiu publicado em “O Dia”! Pode?

Amelius
Enviado por Amelius em 30/11/2014
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