Mudança e Permanência (reeditado) (EC)

Mudança:

Venha.

Apenas venha. Não há nada aqui que nos interessa, nada que nos prenda ou nos liberte.

Aquilo que vivemos está pegando poeira, cheirando a mofo, está nos escombros desse lugar, nos alicerces, nas janelas, nas paredes, nos móveis, mas não pode se mover, não para onde queremos que vá.

Não me vejo mais aqui, nem em você. Não somos mais daqui. Onde estamos, afinal? Não consigo mais lembrar, tudo do que éramos está aqui, preso. E do que somos? Onde está?

Temos que ir.

Tomaremos nossos caminhos, mas eles não serão os mesmos, pois o amor comum não está mais em nós. Roubamo-lo de outro casal. Agora deixemos para o mundo. O amor por si só é volúvel.

Sabe aquela rachadura? Quando nos mudamos ela não existia. Agora está imensa. Será alguma infiltração? O que entrou aqui que não percebemos? O que invadiu esse lugar e que agora está nos expulsando daqui? Isso aqui algum dia foi nosso?

Os lençóis brancos sobre os móveis: tela em branco para os que virão. Que nos não sejamos descobertos, que eles não vejam os sinais de nossa luxúria marcados nos sofá. Disso eu me lembro e não quero me esquecer, nem deixar para outra pessoa. Será que foi só isso que nos sobrou? Tem que existir algo mais?

Desde quando isso começou a acontecer? Desde quando começamos a desaparecer e a virar fantasmas da nossa própria existência? Nós não estamos mais aqui. Será que alguém nos ouve? Essas vozes são de alguém? Nossas memórias são reais?

Vamos logo!

Não quero me perder aqui, deixe tudo, não sabemos mais a utilidade dessas coisas!

Por que insiste em ficar? Somos diferentes agora, não percebe? Você é outra, como poderia te amar se não te reconheço? Vivemos o bastante, sabemos onde tudo isso leva, não quero te conhecer novamente e parar nesse lugar, outra vez. Estou cansado.

Não olhe muito, não respire a essência disso aqui, não seja dependente, não entre nessa loucura. Éramos insanos pois achávamos que conhecíamos esse lugar, você achava que me conhecia. Não negue isso - é da loucura que nasce o momento de sobriedade.

Tudo aqui parece tão vivo, mas não em nós. Afinal, o que mudou? Nós ou o mundo?

***

Permanência:

Essa rachadura. Ela sempre esteve aqui, conosco. Nunca viu? É o que acontece quando envelhecemos: as paredes racham, os olhos perdem a cor, os móveis empoeiram, a pele mancha, ruínas. É assim que acontece e eu aceito isso.

É por isso que não quero ir. Faço parte dessa pintura, não posso sair dessa parede, desse alicerce, dessa janela, desses móveis, de nós. Isso é tudo que sou.

E uma pintura não morre, apenas envelhece. O tempo passa e ela continua ali, para a eternidade. Não roubamos isso de ninguém, apenas vivemos, isso é nosso passado, olhe ao redor, isso é tudo.

E basta.

Feche essa porta, tá vindo um vento gelado de fora.

Foi você que mudou. O mundo é o mesmo e eu faço parte dele. Quem pode dizer quem é o sóbrio ou o insano nessa história toda? O que me garante que lá fora encontrarei a mesma segurança que tenho aqui dentro? Não quero mergulhar no desconhecido. Deixo isso para os jovens com quadros em branco, com paredes sem rachaduras. A minha história está criada e não quero nada além disso.

Por que insiste em ir? É porque sou a mesma e você não? O que mudou em você e permanece em mim? O que falta em mim que não te preenche mais?

Não tenha medo, eu te vejo, te sinto, te ouço, por enquanto.

Se você permanecer aqui e fizer parte da mesma matéria que eu, ainda posso te reconhecer, mas se você partir, será parte de outra coisa que eu não sei o que é. Quer correr esse risco?

Eu não quero.

Está tão claro aí, mal consigo te ver. Você parece uma sombra da sua imagem. Então é assim que acontece?

Minhas lágrimas estão te afogando. Eu sei o que isso significa.

Me entenda, vou ficar. Não quero que roubem nada desse lugar.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Nós de Nós

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Márcia Jordana
Enviado por Márcia Jordana em 10/03/2014
Código do texto: T4722984
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