AQUELE MENINO ERA DIFERENTE
10 anos
aquele menino era diferente
não tinha o mesmo brilho no olhar
que os sua idade tinham
aquele menino era diferente,
ele parecia burro que não aprendia
e diziam que ele era mesmo o burro
da escola porque ele
não aprendia
aquele menino era diferente
quase não falava
quase não sorria
Quase não brincava
um dia aquele menino diferente
sentou-se no banco da praça
com o olhar sem brilho a contemplar
o vazio
passaram-se horas e a noite veio
e avançou o engolindo
e o menino imóvel
ainda a olhar o vazio
não se via dor nem angústia
nem nada na feição
daquele menino burro
daquele menino triste
daquele menino vazio
chamaram o padre da capela do bairro
chamaram a professora da escola dele
chamaram aquela amiguinha única
com quem de vez em quando
ele falava
e
quando vieram
ele continuou a amar aquele
estranha vazio
chamaram o pai e a mãe dele
que não vieram
porque disseram
que o menino era diferente
que era desobediente
que era mesmo aquele vazio
chamaram a assistente social da cidade
e ela sentou-se ao lado do menino
e ficou com ele por um tempo
a contemplar o vazio
e não se sabe o que ela viu
quando pela primeira vez
o menino se mexeu para lhe enxugar
uma lágrima que caía no rosto
ficaram ali mais uma noite toda
em silêncio
o menino
a assistente social
e o vazio
no dia seguinte ela conseguiu
levá-lo a um orfanato onde havia
outros meninos burros,
outros meninos sem brilhos no olhar
outros meninos vazios
e logo um deles
maior e mais velho
quando os assistentes se ausentaram
quis lhe tirar para dançar
na quadra
aquele menino recém-chegado
no deita e rola
entre tapas e murros
um outro menino grita
depois outro
e outro
“como se parecem puta que pariu”
e como não conseguia resistir
o menino que era diferente
ficou de novo imóvel
e
enquanto apanhava
voltou a contemplar o vazio
com aquele olhar sem nenhum brilho
e o mais velho ouvido aquela
estranha melodia
montado sobre aquele menino diferente
a lhe distribuir presentes em tapas
e a lhe apresentar a verborragia
do submundo
começou a prestar atenção
naquele semblante
e naquele menino sem vida
e se lembrou de quando tinha seus dois anos
e vieram três homens
que tinham armas em mãos
que mataram seus pais
que levaram uma criança recém-nascida
abandonando-o com os cadáveres
e
aos gritos da molecada ao redor
também parou
e chorou amargamente
sobre aquele menino que era diferente
sobre aquele menino que era seu irmão
perdido
levaram o caso ao tribunal da cidade
e todos queriam saber da história
que já tinha alcançado
grandes proporções
e alimentava as mesas
e os sofás dos senhores e das senhoras
enquanto assistiam a jornais
futebóis e novelas
chamaram aos pais do menino
o meritíssimo e os homens de farda
que agora vieram
não para ver ou buscar o menino
que era diferente
mas por medo do poder dos homens
que mandaram lhes chamar
lá
sentados de frente ao seu filho
contaram que queriam um cachorro
mas que numa noite fria
na porta de sua casa
depositaram aquele menino
P.S. Parte de um sonho de hoje. Que os abnormais, um dia, possam ver além de seus verbos alvos lançados por aí, e perceberem que é preciso saberem que lhes há o mal intrínseco para, contra ele, poderem lutar melhor.
Péricles Alves de Oliveira