Minhas tardes com Gabo
Coralina lecionou literatura em escolas públicas e depois na Universidade Federal da Bahia por mais de 30 anos. Especialista em literatura hispânica, era aficionada por Gabriel García Márquez. Leu toda a obra do autor e em suas aulas sempre o colocava em posição de destaque, ressaltando o realismo mágico de "Gabo" — como o autor é carinhosamente chamado pelos amigos. Foi feliz e realizada durante todos esses anos, na verdade, quase realizada, porque guardava uma enorme frustração, nunca ter conseguido escrever um romance.
Quando fez 60 anos, decidiu que se aposentadoria para dedicar-se ao seu grande sonho, escrever um livro. Já estava cansada de viver à sombra de seus autores, queria colocar "a mão na massa" e para isso precisaria de tempo. Quando deixou a Universidade, recebeu uma bela homenagem de seus alunos, colegas e um lindo discurso do reitor, por tantos anos de dedicação. Saiu emocionada e com uma forte sensação de dever cumprido.
Sempre ativa, Coralina estranhou bastante o seu primeiro dia sem precisar levantar cedo para ir à Universidade. Acordou calmamente, tomou um café demorado e sentou-se em frente ao computador. Pensou... pensou... O tempo passou e ela não conseguiu decidir nem mesmo qual seria o gênero da história.
Almoçou calmamente, tirou uma soneca e voltou correndo para o computador, agora já com a primeira ideia: seria um romance. Começou pelo título "Anjos da Noite". Seria uma história de um casal que se encontrava em sonho, ela sofrera um acidente e ficara em coma e durante esse período eles se encontravam no sonho dele.
Depois de escrever a sinopse do livro se deu conta de que já havia anoitecido e foi dormir. Foi dormir com uma sensação de fracasso, afinal, durante um dia inteiro, a única coisa que conseguiu escrever foram parcas cinco linhas sobre o assunto e o título. Mas enfim, estando aposentada, dormiu em paz, certa de que teria todo o resto da sua vida para escrever o livro.
Nos dias que se seguiram, a rotina adotada foi a mesma, acordava, comia, ia para o computador, comia de novo, voltava para o computador e, por volta das onze da noite, dormia. Ela passou cinco meses enclausurada, ouvindo as reclamações dos amigos e familiares e ao final desse tempo tinha apenas cerca de cinquenta páginas escritas, pouco convincentes.
Coralina entrou em crise, ficou depressiva, convenceu-se de que não sabia escrever e de que sua sina era mesmo viver à sombra de seus escritores favoritos. Não comia direito, não dormia, até que sua irmã resolveu intervir e a levou ao psiquiatra. Lá ela foi medicada com um antidepressivo e calmantes para dormir. Sua irmã se ofereceu para ficar com ela, já que Coralina não tinha filhos e morava sozinha, mas a aspirante a escritora recusou a ajuda e foi se deitar sozinha, bem longe do computador e das cinquenta páginas, a essa altura, picadas e jogadas no lixo.
Dormiu sob o efeito dos calmantes e no decorrer do sono teve um sonho. Sonhou que estava na casa de Gabriel García Márquez em Cartagena das Índias, na Colômbia. No sonho, ela via nitidamente o escritor sentado em uma poltrona confortável e ela sentada ao seu lado em uma cadeira. Ambos tomavam uma xícara de chá e conversavam. Tudo era tão real que a sensação era de que aquele encontro estava acontecendo.
Durante a conversa, "Gabo" explicou-lhe que não desanimasse e não se aborrecesse porque, quando alguém se aborrece escrevendo, o leitor se aborrece lendo. Disse que iria ajudá-la, que tinha uma obra em sua mente, mas que, pelo avançar da idade, não conseguia colocá-la no papel. "Tigra" seria o título e tratava-se da história de uma fêmea de tigre, adotada por um caçador, um magnata de Nova York que matou sua mulher.
Quando Gabo terminou a frase, Coralina acordou. "Nossa, que sonho maluco", pensou. E como acordou bem disposta, resolveu seguir os conselhos de Gabo e foi mais animada para o computador.
Pensou na sugestão da história e resolveu desenvolvê-la. Ao contrário dos outros cinco meses, o dia rendeu e quando foi se deitar tinha vinte páginas bem escritas. Quando dormiu, teve o mesmo sonho, os dois tomando novamente o mesmo chá, um belo entardecer ao fundo e longas conversas. Nesse dia, ele sugeriu ser necessário começar a obra com a intenção de que se escreverá a melhor coisa jamais escrita, porque logo essa vontade diminui. Ele também pediu que ela não desanimasse. Trocaram ideia sobre os personagens, sugeriu algumas mudanças e quando Coralina acordou, tinha tanta ideia na cabeça que nem sequer tomou seu café matinal, correu para o computador. Dessa vez, escreveu cinquenta páginas e antes de dormir fez todas as alterações que lhe foram sugeridas em sonho.
Durante o mês que se seguiu, sonhou com as tardes com Gabo durante todas as noites. Ele sugeria os próximos passos do livro, discutia as nuances dos personagens, todos os enlaces e desenlaces, fazia correções e Coralina, quando acordava, transformava tudo em história.
Até que o livro "Tigra" ficou pronto. Um belíssimo romance. Coralina estava convencida de que os sonhos eram a tal inspiração a que todos os escritores se referem. Depois de corrigidas, enviou as 300 páginas para uma editora e ficou aguardando a resposta ansiosamente. E a resposta não demorou muito em chegar: iriam editar a obra. Coralina ficou emocionada e muito feliz com a realização de seu sonho. O lançamento e a divulgação foram um sucesso, tanto que, logo, Coralina precisou fazer uma segunda edição. Consagrada como escritora, ela foi entrevistada por jornais e revistas e até pelo Jô Soares.
A editora resolveu lançar o livro em outros países da América do Sul e traduziram "Tigra" para o espanhol. A obra foi lançada em vários países de língua hispânica, inclusive na Colômbia, e foi então que a bomba estourou. Uma certa manhã, Coralina acordou com o telefonema de uma amiga dizendo que ela estava sendo acusada de plágio por vários jornais locais da Bahia e internacionais. Mas como isso é possível? Ela pensou. Levantou-se apressadamente e ligou o computador em busca de mais informações. Os jornais estampavam a notícia de que o irmão de Gabriel García Márquez afirmava que "Tigra" é um dos últimos romances quase prontos do autor, que só não o finalizou por causa do avanço de sua doença. Ele mostrou o rascunho da obra e era praticamente igual ao livro lançado por Coralina.
Coralina não conseguiu encontrar explicação para aquilo. Jamais tivera acesso àqueles manuscritos. A única explicação plausível, os encontros noturnos por sonho, Coralina não poderia revelar, porque seria acusada, além do plágio, de loucura. A aspirante a escritora foi processada e condenada e novamente entrou em depressão profunda.
Desde que terminara "Tigra", nunca mais havia encontrado Gabo em sonho. Mas no auge de seu desespero isso voltou a acontecer. Chegou ao mesmo local, sentou-se ao lado de Gabo e tomando o mesmo chá implorou ao seu escritor favorito que intercedesse por ela, que pedisse ao irmão que explicasse em juízo que na verdade tratava-se de uma co-autoria.
Calmamente, entre um gole e outro de chá, disse que nada poderia fazer, mas que estava orgulhoso de sua pupila, que ela havia escrito "Tigra" exatamente como ele havia idealizado, inclusive com um final brilhante, melhor do que ele poderia imaginar. As últimas palavras do mestre antes de ela acordar foram: "Você não ansiava por uma realidade mágica? Essa foi a grande oportunidade que te ofereci..."
Coralina despertou. Fazia um lindo dia. Quando olhou em sua cabeceira estavam lá, intactas, as cinquenta páginas mal escritas de seu romance "Anjos da Noite". Ao seu lado, um jornal do dia anterior, onde o irmão de Gabriel García Márquez anunciava que Gabo não tinha mais condições de escrever e possuía dois romances inacabados, "Tigra" e "Agosto nos vemos". Coralina suspirou aliviada e um tanto feliz por não ser uma autora consagrada...