" O COBERTOR"

“O COBERTOR...”

Acordara tiritando de frio... As faces azuladas pela cianose eram indiciárias do afogamento, o qual havia lhe ceifado a vida...

Ao seu redor, uma moça de semblante singularmente belo e gentil lhe sorria oferecendo alento. Caminhava suavemente, quase planando pelo amplo corredor onde estavam dispostos vários leitos.

Ao ouvir seu gemido rouco, prontamente Laura postou-se defronte a José e com brandura lhe afagou o rosto desfigurado pela força colossal das águas as quais haviam lhe tragado a existência há quase dez anos passados.

_ Meu irmão, o que deseja?

_ Tenho frio, muito frio... Devo estar com hipotermia, nada é capaz de me esquentar...

Lágrimas começam a correr pelo rosto convulso de José... Passa a recordar de sua miserável infância, do ódio que sentira pelos mais favorecidos, da promessa que fizera buscando o enriquecimento a qualquer custo. Lembra-se corroído pelo remorso que jurara aumentar seu patrimônio nem que para tal desiderato tivesse que se deixar corromper, furtar, traficar e até mesmo matar...

Empregara-se precocemente em uma casa de comércio. Todos os dias observava atentamente a conduta laboral de seus colegas, e estudava com afinco a entrada e saída dos haveres...

Em certo dia não hesitara em furtar vultosa quantia da caixa registradora e posteriormente depositá-la na pasta de um promissor vendedor da loja. O rapaz pilhado em flagrante fora processado, julgado e condenado e não aguentando as sevícias ocorridas na penitenciária a que fora recolhido acabara por se suicidar, enforcando-se com um lençol.

De outra sorte, engravidara uma moça muito pobre, mas honrada a quem conhecia anos a fio. Sequer pensou em promover o regular pensionamento alimentício de seu filho, o qual sofreu em sua infância e juventude todos os malefícios oriundos do abandono material perpetrado por seu genitor.

Trapaceando, enganando, falseando a verdade foi paulatinamente conquistando sua tão almejada independência econômica. A vida parecia lhe brindar com um sorriso mavioso bordado com os fios dourados da impunidade...

Candidatara-se, então a um cargo eletivo de prestígio... Mais uma vez, lançando mão de pérfidos e repugnantes ardis consegue colher êxito em sua empreitada...

O erário público destinado à consecução de obras e melhorias sociais é continuamente desviado de suas fundamentais alocações... A cidadela outrora pacata tem seu cotidiano defenestrado pelas falanges de meninos traficantes, os quais vislumbram na prática de atos infracionais a única perspectiva para seus subsequentes anos de vida...

No pequeno hospital, transformado em um paupérrimo hotel para doentes, pacientes desfilam sua agonia, ao navegar pelas insidiosas águas da morte conduzidas pelo barqueiro Caronte...

Nas salas de aula avoluma-se o alunato sequioso por aprender, contudo o fundamental direito à educação é extirpado em seu nascedouro... Faltam materiais, instalações sanitárias, a merenda quando servida não possui valor nutricional idôneo a satisfazer as necessidades dos corpos e mentes em desenvolvimento...

José desesperado corre suas mãos à face... Agraciado pelas vozes benévolas do arrependimento chora copiosamente... Seu combalido corpo começa pouco a pouco a se aquecer... O cobertor cuidadosamente arrumado na cama começa então a surtir o efeito desejado...

Sorri para Laura, e passa a caminhar rumo à uma nova estrada conduzida pelo esplendor de novos dias, coroados agora pela fraternidade...

Laura diz a José:

_ A palavra “nunca” não existe... Todos nós invariavelmente erramos, e a partir do momento em que nos mostramos sinceramente arrependidos tudo se transforma... Várias vidas se abrirão tais quais novos portais... Saiba aproveitá-las... Muitos precisarão de seu auxílio e de sua luz... Adeus, irmão! Boa viagem de volta, à Terra!

Ivone Maria Rocha Garcia
Enviado por Ivone Maria Rocha Garcia em 06/08/2011
Reeditado em 02/01/2017
Código do texto: T3144045
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