O LENÇO VERMELHO

A noite escura e a pista molhada faziam do ato de dirigir uma aventura perigosa. O velho Opala mantinha-se sobre a pista hora deslizando sobre poças d água, hora saindo de traseira obrigando Júlio a desdobrar-se para mantê-lo sobre a pista. Júlio era uma dessas pessoas que se importam com os outros e sentia-se feliz sempre que podia ajudar de alguma forma. Sua esposa cuidava do pequeno sítio enquanto ele desdobrava-se para manter os compromissos que mantinha com a pequena comunidade. Desta feita levava um remédio vital para um velho amigo que fora acometido de um mal cardíaco e poderia morrer se não obtivesse o medicamento a tempo. Júlio sabia disso e dirigia tentando correr o máximo que podia. Olhava a pequena imagem de sua filha Cláudia em um pequeno porta retratos preso sobre o painel. Era o dia 21 de Junho e ela faria 22 anos no dia seguinte.

Já se haviam passado 10 anos de sua morte. Vinha-lhe a lembrança o corpo encontrado em um matagal, seminua, caída de bruços. Fora cruelmente seviciada e enforcada com um lenço de seda vermelho que o assassino deixara envolto em seu pescoço. Sempre que lembrava aquela noite, não podia evitar as lágrimas que rolavam em sua face. O crime nunca fora esclarecido e o assassino continuava em liberdade. Não havia pistas e nada que pudesse apontar pelo menos um suspeito. Ele próprio tentara descobrir o criminoso sem sucesso. Mantinha apenas a fé de que um dia talvez a justiça divina fizesse seu trabalho. Sua filha não fora a única. Outros crimes iguais já haviam ocorrido e dois anos depois uma garota de 16 anos tivera o mesmo fim. Sempre da mesma maneira e como de hábito, nem uma pista do assassino. Seguidamente sonhava com a filha e sempre um lenço vermelho voava em sua direção. Acordava suado e com o coração aos pulos. Envolto em seus pensamentos nem percebera que o carro estava derrapando perigosamente. Tentou tarde de mais uma manobra e sentiu que saia da pista e projetava-se para fora da curva. O carro começou a rolar por uma ribanceira e ele desmaiou. Quando finalmente acordou, estava com o corpo para fora e o braço esquerdo preso sob as ferragens do carro que estava com as rodas para cima. A dor era quase insuportável e ele tentava desesperadamente livrar o braço. Gritou por socorro inutilmente. Ouvia o barulho dos carros passando ao longe e pensava numa solução. Não seria ouvido. A pista ficava longe e não sabia quantas voltas havia dado até parar onde estava. Pensou na faca que costumava carregar no porta luvas. Pensava em cavar em volta do braço, mas logo abandonou a idéia, não adiantaria nada, pois o carro caíra sobre uma pedra. A chuva descia sobre seu rosto e o frio obrigava-o a encolher-se. Não sabia por quanto tempo estivera desmaiado. Nem podia ver a hora pois seu relógio de pulso estava sob o carro. Sabia que a situação era grave e talvez não fosse encontrado. Então uma idéia desesperadora veio-lhe a mente. A única maneira de liberar o braço seria amputá-lo se conseguisse alcançar a faca no porta luvas. Não devia ser muito tarde. Era um homem forte e o desmaio não deveria ter sido muito longo. Começou então uma luta desesperada para alcançar o porta luvas com a mão direita. Felizmente fora arremessado pelo lado do carona e isso lhe daria uma chance. Não era uma tarefa fácil e depois de inúmeras tentativas, conseguiu abrir o porta luvas com o pé. Além do braço que doía muito, sentia dores pelo corpo todo. Sua perna esquerda estava também fraturada e doía muito. Tinha muitas escoriações nos ombros e nas costas, mas tinha fé que conseguiria sair dali. Localizou a seu lado uma peque vara com uma bifurcação na ponta. Conseguiu com muita dificuldade alcançá-la e a usou como extensão de sua própria mão. Depois de incontáveis tentativas, finalmente conseguiu que a faca caísse juntamente com outros objetos.

Primeiro rasgou um pedaço da camisa usando a faca e fez um torniquete em volta da base do ante braço. A dor ficava cada vez mais insuportável e ele pensava em sua filha. Tentava reunir coragem para fazer o que estava determinado a tentar. Um vergão vermelho subia-lhe pelo braço e teria que andar rápido ou seria vítima de uma gangrena. Colocou a vara entre os dentes pois sabia que iria doer muito. Pensava no amigo que precisava do remédio e finalmente começou a fazer uma incisão. Deixaria por último os vasos mais salientes para não ter uma hemorragia antecipada. Mas a dor intensa o fez desmaiar.

Quando acordou custou a acreditar no que estava acontecendo. Estava livre do carro e seu braço estava todo enfaixado.

– Você está bem? Nem tinha percebido a mulher de pé a seu lado. Era muito bonita e trajava um longo vestido branco esvoaçante pela ação do vento. Tinha um lenço vermelho no pescoço. Havia parado de chover e o dia deveria estar quase amanhecendo.

– Estou melhor! Quem é você? Como me encontrou?

– Isso não importa! Meu nome é Ana Maria. Você agora pode andar. Vá até uma casa a beira da estrada que passa logo ali. É a única por aqui. Minha mãe mora lá e você poderá obter ajuda.

– Você não sente frio? Está com uma roupa leve.

– Nem um pouco.

– Meu deus! O remédio! O Alfredo precisa do remédio.

– Não se preocupe! Ele não precisa mais. Acaba de morrer.

– Como você sabe?

– Não importa! Olhe! Tudo o que existe é energia pura. Tudo está interligado. O Alfredo tinha contas a ajustar e por isso sofreu e por isso morreu. Existem muitas formas de energia. Umas são para o bem, outras para o mal. Você é um homem bom, tem amor no coração. Tem fé. Então as formas benignas de energia o protegem e por isso eu estou aqui. No sitio dele há um galpão abandonado. Lá você descobrirá quem matou sua filha. Agora eu preciso ir. Fique em paz.

Júlio observava a estranha figura afastando-se e desaparecendo na mata. Então lentamente começou a surgir em sua mente o sonho que tivera enquanto desmaiado. Vira aquela mulher aproximando-se com um sorriso nos lábios, o vestido esvoaçante e longos cabelos louros que lhe caiam quase até a cintura. Ela parou diante dele e com um gesto de braços abertos como em oração, moveu o carro sem nenhum esforço. Depois tomou seu braço e o envolveu com ataduras. Então o sonho ou visão que tivera, fundiu-se com a figura dela diante dele quando acordou. Estranhamente não sentia mais dor. As ataduras não estavam apertadas e podia mover os dedos normalmente. Colocou-se de pé, a perna esquerda ainda incomodava, mas lhe permitiria caminhar. Tomou a direção da estrada apontada por Ana e durante a caminhada pensava nos acontecimentos das últimas horas. Como ela havia chegado até ele? Como sabia da morte de Alfredo? Nada fazia sentido. As palavras dela ainda soavam doces em seus ouvidos e ele pensava sobre o que ela havia dito e aquilo o confortava. Não era um homem religioso, mas havia algo de divino naquela mulher.

A casa era de madeira, modesta a esquerda do terreno onde galinhas catavam alimentos pelo chão. O dia já estava claro e a fumaça subindo indicava a presença de um fogão a lenha. Bateu a porta e uma senhora de uns 50 anos abriu.

– Bom Dia! A Senhora é a mãe da Ana?

– Como disse?

– Estive com sua filha e ela me indicou sua casa. A senhora tem um telefone?

– Sim! Mas espere! Minha filha morreu há 8 anos. Foi assassinada covardemente, o senhor lembra? Ela tinha 16 anos.

– Sim! Lembro. Minha filha também morreu da mesma maneira dois anos antes. Júlio sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo. Então Ana estava morta a 8 anos. Sentia-se confuso com tudo o que estava acontecendo. A mulher mostrou-lhe o telefone. Ele ligou para a polícia narrando o que acontecera. Depois de prestar o depoimento de praxe, Julio contou tudo ao delegado que ouviu atentamente e decidiu que iriam até o tal galpão. O corpo de Alfredo estava sendo velado na capela mortuária municipal e não havia ninguém em casa. O galpão onde antes deveria ter havido uma estrebaria tinha um compartimento ao fundo que estava com a porta entreaberta. O local era uma bagunça com livros cobertos de poeira espalhados pelo chão. O delegado abriu uma pequena janela lateral que revelou um velho baú. O delegado quebrou facilmente o pequeno cadeado já comido pela ferrugem. Dentro, para espanto dos dois, havia uma série de 7 bonecos de pano. Todos com um lenço vermelho ao redor do pescoço e um nome feminino grafado em cada um deles.

– Parece magia negra ou ritual de alguma seita satânica. Comentou o delegado. O 7 é um número cabalístico presente em muitas seitas e rituais.

– Veja! Os dois últimos. Cláudia e Ana, minha filha e a mulher que me socorreu. Como posso ter sido socorrido por uma mulher que morreu há 8 anos? E pensar que quase morri tentando salvar a vida do assassino de minha filha? Como estes crimes permaneceram impunes por tanto tempo?

– Meu amigo! Estamos diante de mais um dos incontáveis mistérios que desafiam nossa imaginação. Vez por outra nos deparamos com os tais fenômenos inexplicáveis. Por falar nisso, como está seu braço?

– É verdade estávamos tão envolvidos que esqueci o braço. Júlio então começou a desenrolar as ataduras e os dois ficaram espantados ao ver o braço intacto. Nem uma marca, nada. Era como se nunca houvesse sido ferido. Júlio olhou para a janela onde dois vidros ainda inteiros revelavam o reflexo de duas figuras femininas que sorriam docemente. Os lenços vermelhos haviam desaparecido. Júlio percebeu que o delegado não havia visto nada e decidiu não comentar.

Dias depois foi até a guarita da polícia rodoviária onde o que sobrou de seu carro estava exposto no pátio. Os pertences encontrados haviam sido recolhidos. Pendendo do volante, um lenço de seda vermelho ondulava ao sabor do vento.

FIM

Lauro Winck
Enviado por Lauro Winck em 02/07/2010
Código do texto: T2354288
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