Jonas
1. PAIXÃO PROIBIDA
22 de agosto de 2000
Ela estava linda naquele dia, alias, como sempre. Vestia um conjunto rosa choque para ginástica combinando com o tênis branco com detalhes em lilás; trazia um lenço amarrado à cabeça que prendia o longo cabelo castanho, que parecia loiro quando o sol a iluminava. Ela mancava um pouco, sendo necessário reparar muito bem nela para perceber, mancava em virtude de um acidente ocorrido há dois anos atrás, onde sua filha a empurrara para que não fosse atropelada por um carro, mas que ocasionou uma fratura na bacia. Vinha agora em minha direção, empurrando sua "bike" de alumínio, trazendo aquele sorriso exposto, aquele sorriso que me derrubava (a mim e ao resto dos fãs, é claro). Não parecia andar, para ser sincero flutuar era o que fazia. Isso! Flutuava em minha direção com aquele corpo malhado, forte, mas sem perder a delicadeza feminina. Ah, tudo nela era lindo ou, como diz a frase “aos olhos de um apaixonado não existem defeitos, não existem obstáculos, somente o presente e a paixão”. Não era o que acontecia comigo, não que eu não estivesse completamente perdido, apaixonado, nada disso, é que existia um pequeno obstáculo entre nós, pequeno, porém para mim intransponível. Ela era casada...
– Vamos. Ela disse, tocando-me no braço.
Fomos. Mais uma tarde de passeio ciclístico no grande bosque da cidade. Já era rotina esses nossos passeios desde que nos conhecemos numa academia de ginástica, cerca de um ano atrás. Patrícia era seu nome, mas eu a chamava de Pati e cultivávamos uma bela amizade unida por pensamentos muito parecidos. Ela sabia da minha paixão, eu fiz questão de me abrir, precisava continuar sendo sincero se a queria conquistar, a qualquer preço talvez; achava ser esse mesmo o caminho, mas estava quase desistindo. Bom, para não mentir, todos os dias eu pensava em desistir daquela nossa relação de amigos íntimos, sem segredos, mas não resistia à tentação de admirá-la, de falar e sorrir com ela, qualquer coisa enfim era maravilhoso, pelo menos até o fim daquelas longas tardes no bosque ou na academia; pelo menos até na hora em que me via sozinho novamente, e aí me segurava até chegar ao meu apartamento onde podia chorar a vontade, pois vivia só.
Pati concordava e achava também que eu deveria me afastar dela, procurar um caminho menos acidentado, arranjar uma namorada entre as meninas que me paqueravam. Eu era bem bonito, eu sei, dava aula na academia já tinha sete anos, estava com trinta e dois e Pati com trinta. Trinta e dois anos, mas me sentia como um adolescente que está “ligado” na primeira menina namorada. Já havia namorado algumas vezes, saído várias vezes sem compromisso, mas nada comparado ao que sentia por Pati, nada. Ela era o tipo de pessoa que eu estava esperando para que fosse a mãe de meus filhos, a mulher com quem eu dividiria minha vida e ao mesmo tempo me completaria. Senão fosse por aquele pequeno obstáculo...
Acho mesmo que a minha paixão se iniciou naqueles longos papos na lanchonete da academia onde ela começou a desabafar, contar sua vida com seus problemas comuns enquanto eu falava de meu trabalho e das minhas aventuras. Foi nesse tempo que comecei a perceber como ela era diferente das mulheres que me rodeavam, como ela era especial. Tinha dois filhos e demonstrava tanta ternura quando falava deles que chegava a me comover. Do marido ela contava sobre as diversas brigas sem sentido, às vezes contava também sobre as noites de amor. Segundo Pati, ele não lhe dava mais aquele carinho que ela tanto necessitava e somente procurava se redimir na hora do sexo. Foi quando ela comentou que passara por sua cabeça uma possível separação no futuro, e então nessa época, eu me agarrei com força a uma possível chance, aguardando todos os dias que ela me ligasse e me desse a tão sonhada notícia, que certamente, mudaria de vez nosso relacionamento, já que eu tinha certeza que ela possuía um carinho muito especial por mim, que sempre, em todo e qualquer momento, jamais a desrespeitei nem decepcionei. Mas os dias passavam, as semanas surgiam e a novidade não acontecia. Foi então nessa época que, querendo dar um empurrãozinho no destino, me abri. Me abri como nunca, como jamais sonhei em me abrir com alguém, despido de qualquer receio de sofrimento, exposto, um alvo fácil... E foi assim agindo que fui atingido em cheio, bem lá no fundo do meu coração. Fui atingido por palavras metralhadas por ela, palavras que feriam dizendo poder haver um futuro para o seu casamento, para os longos anos de casamento de, infelizmente para mim, um alicerce bem fundado. Eu fiquei afundado num mar de tristezas, incertezas, desespero; e pra não me afogar me agarrei no único salva-vidas existente no convés de minha alma. Neste salva-vidas vinha uma inscrição em letras verdes com os dizeres: ESPERANÇA, a última que morre; diz um ditado meu que “somente se agarre à esperança quando todas as outras portas se fecharem e o fim parecer inevitável”. E era esse o meu caso.
Usei este salva-vidas por um longo tempo até que, convencido por mim mesmo e por Pati (definitivamente os únicos que teriam acesso a esse meu segredo), resolvi mudar de tática. Me impus uma regra: a cada vez que pensasse nela, imediatamente eu me lembraria que o seu coração já estava ocupado por outro homem, que ela nunca iria se separar e que eu jamais poderia destruir a felicidade de uma família inteira para me ver feliz; e principalmente, que eu não deveria estragar a mais linda amizade que eu já fizera, uma amizade de lágrimas e sorrisos, era bem verdade, mas era a coisa mais importante que eu tinha, a proximidade mais importante que eu possuía de alguém tão doce, uma proximidade que reabastecia de vida meu corpo, eliminando as tristezas da última noite. Quando estava com ela em nenhum momento me lembrava de qualquer sofrimento, era tudo passado, e passado não conta. Bem, consegui bons resultados com minha tática, não a esqueci, acho que nunca a esquecerei, mas comecei a sofrer menos quando estava na solidão do meu quarto. As coisas funcionam assim, não é mesmo, Deus sabe o que faz no interior das pessoas e acredito mesmo que cada um de nós tenha de passar por certas exclusividades da vida, talvez para darmos um real valor aos nossos sentimentos mas eu juro, por este mesmo Deus, que se pudesse começaria minha vida toda de novo, lá do princípio, e quem sabe, bem possivelmente com a ajuda Dele, encontraria esta minha paixão proibida na hora e no lugar certo e, certamente, neste momento em que escrevo, eu não estaria chorando.
2. ROLETA RUSSA
27 de agosto de 2000
"Ele era muito bom no que fazia, estava acima dos outros mortais no plano espiritual, mas no momento bebia vodka e fumava charuto como qualquer outro, escorado na mesa de bacará para não trocar idéias com os micróbios do carpete azul, que revestia o piso do cassino. Depois de passar por todas as bancas, restava somente a roleta russa para testar e comprovar que aquele era o dia mais azarado de sua longa vida. Restava também somente uma maltratada ficha vermelha na mão, que equivalia a 500 reais. Por certo a última aposta da noite, pensou – uma noite que já entrara madrugada adentro há muito tempo. Encarou por instante o funcionário trajado a rigor, dentro de seu smoking branco, pousou a ficha no balcão e antes de escolher seu número da sorte, resmungou:
--Aqui se vai uma noite onde perdi em todos os locais deste prédio. Pois então eu lhe digo amigo, se na sua roleta minha sorte for diferente também a sorte de outra pessoa assim será.
E atirou a ficha no quadro de números como uma criança que joga bolinha de gude. A ficha rolou pelo quadro como se procurasse o local certo para cair, passou pela casa 19, retornou para a 3, atravessou a 20 indo parar preguiçosamente no número 27, de cor negra.
O funcionário, como que para respeitar uma regra da casa, pois somente havia o bêbado ali, proclamou:
-- Senhoras e senhores, façam suas apostas, façam suas apostas, apostas pagas, apostas efetuadas, apostas encerradas.
E girou a roleta.
A bolinha branca saltava alucinante de uma casinha para outra enquanto a roleta perdia sua força começando a parar, começando lentamente a parar, até que ficou imóvel enquanto a bolinha branca, num último esforço, visitava mais algumas casinhas e se acomodou enfim, ainda girando no seu próprio eixo.
-- Senhoras e senhores! Vinte e sete preto, eu disse dois sete preto, o apostador ganha, a banca paga, a banca encerra, boa noite.
O bêbado agarrou as fichas que ganhou, enfiando-as no bolso do casaco. Deu uma meia volta e heroicamente, conseguiu sair do cassino, chegando ao saguão do hotel onde subiu de elevador até a cobertura, também onde esperava que sua suíte estivesse.
Após uma briga com a fechadura, conseguiu chegar à cama onde despencou de roupa e tudo. Somente pensou, antes de “apagar”, que o dia seguinte seria muito longo."
3. UMA ESCOLHA
27 de agosto de 2000
"Quando o agora ex-bêbado acordou, passavam das 10 horas da manhã e fazia um calor insuportável. O homem se levantou sem a peculiar dor de cabeça pós bebedeira, sem mau hálito, com os cabelos penteados para trás, com o casaco sem sequer um único amassado, impecável afinal tal como entrara na noite anterior no cassino. Parecia que durante seu sono tudo fora renovado para que despertasse pronto e em condições de realizar um novo trabalho, o que não estava tão longe da realidade.
Caminhou até o banheiro, cantarolando “Pra mim, todos os dias são iguais” e fixou os olhos na bela imagem refletida. Ele era muito alto, dois metros e cinco, a pele do corpo de um bronzeado formidável, os cabelos negros combinavam com os olhos mais negros ainda, não era gordo, mas pesava mais de cem quilos, dava a aparência de ter uns quarenta anos, mas não possuía o menor indício de que uma ruga fosse brotar em sua face; não é necessário dizer que muitas mulheres já haviam se perdido em seus longos braços, recebendo o esperado carinho daquelas mãos fortes. E muitas ainda estariam por vir, ele sabia.
Retornou para a sala cuja decoração lembrava o interior de um museu antigo, havia pilhas e pilhas de livros velhos numa estante, ao lado de estatuetas em formato de anjos e monstros, quadros e mais quadros, no centro ao invés da tradicional mesinha havia um enorme baú verde escuro, o qual ele abria agora. Estava repleto de roupas estranhas, muito velhas, pedras, cintos, bonés e chapéus. Ele observava tudo, trazendo no rosto um ar de saudade. Uma lágrima rolou, mas passou despercebida pelo gigante, que agora remexia nos livros da estante. Fechou todas as cortinas negras de cetim, trancou as portas, e quando a cor do ambiente começou a se fundir à cor escura de sua vestimenta, acendeu uma grossa vela branca, fixando-a sobre o baú com algumas gotas de parafina derretida. Deteve-se a um metro do baú e começou a olhar para todos os lados, parecendo procurar um local certo, específico, mexendo a cabeça cada vez mais rápido, mais rápido, as mãos agora faziam movimentos circulares a sua frente, na velocidade de sua cabeça, cada vez mais rápido, mais rápido, mais rápido... Parou num grito agudo, os olhos revirados, o suor escorrendo pelo rosto e tremia. E o tremor do gigante lembrava um terremoto, um terremoto realmente particular. Mais um grito e o tremor desapareceu. Ele praticamente voou para a estante, jogando os volumes sobre os carpetes, abrindo alguns, folheando rapidamente, achou um mapa velho dentro de um deles e, realmente desesperado, abriu e saltou sobre ele, marcando um local com o dedo indicador. Foi chegando com a cabeça próximo ao local indicado, arregalando os olhos acostumados com o escuro e sorriu. Arrancou uma folha branca de um dos bolsos da calça e escreveu em letras tortas a palavra Jonas."
4. O ESPECIALISTA
08 de setembro de 2000
O dia a dia de uma grande academia de ginástica é uma verdadeira correria. São alunos que entram, que saem, pais que buscam seus filhos, pais que malham também, mais os funcionários e professores. Eu estava nesse último grupo.
Ficava doze horas dentro da academia de segunda a sexta e nos finais de semana fazia percursos de bicicleta para relaxar. Tinha alunos de todos os tipos e sexos; atuava principalmente na área de musculação e ginástica localizada.
Já havia visto de tudo quanto fora “formato” de gente por ali, mas não consegui deixar de observar o grandalhão que conversava com a recepcionista. Num calor daqueles, um cidadão vestido inteiramente de preto e de, com certeza – pensei – mais de dois metros de altura, bom, se isso não chamasse a atenção então nada mais chamaria. Havia notado também que a recepcionista apontava em minha direção, fazendo um sinal de positivo com a cabeça. Após o sinal, o grandalhão, que era bem rápido apesar de seu tamanho, começou a atravessar as portas que davam acesso à sessão de musculação. Vinha sorrindo, com o queixo levantado, aparência típica de um senhor da burguesia e o alvo era eu. Preparei-me para dizer qualquer coisa como: Boa tarde, mas fui surpreendido pelo trovejar da voz do visitante.
-- Jonas, eu presumo!
-- À suas ordens.
O visitante me olhou lá de cima sem abaixar a cabeça um milímetro, como se fizesse questão de mostrar sua superioridade de tamanho e continuou naquela voz forte.
-- Não vim aqui para me matricular em nenhum tipo de aula, Jonas. Foi me informado que você está com um tipo de problema, necessitando então de um especialista, ah, como sou mal educado! Permita me apresentar, sou Dr. Barros.
Eu fiquei boquiaberto, uma coisa que raramente acontecia.
-- Problema! – disse – alguém está de brincadeira por aqui, como pode ver me encontro perfeitamente bem e não necessito de especialista algum...
-- Não estou falando de problemas de saúde comum – interrompeu o doutor tranqüilamente – Estou falando de problemas na alma, no coração e na mente.
-- Por favor, doutor, o senhor está...
-- Não me entenda mal, eu sei o que anda sentindo aí dentro, estou falando de paixão, para ser mais claro. Deixei meu telefone com aquela gata da recepção e não se esqueça, eu posso ajudá-lo. Boa tarde.
Continuei boquiaberto por algum tempo e quando dei por mim, o gigante de negro já se despedia ganhando um sorriso da recepcionista e chegava à calçada. Fiquei ali parado por mais alguns minutos, sem reação. Como é que o doutor sabia de meus problemas íntimos? Será que Pati, não, ela nunca faria isto. Só pode ser alguma brincadeira de alguém, mas quem? Passei uma lista de nomes pela cabeça, mas não consegui relacionar ninguém ao episódio. Tentei voltar ao trabalho, apesar de naquela hora o movimento do local ser mais tranqüilo, havia alunos que necessitavam da minha atenção. Bom, pelo menos tentei, mas sem resultado, estava intrigado.
Saí da sessão e segui direto para a recepção.
-- Marta, sabe aquele senhor grandalhão, ele deixou algum cartão ou coisa parecida.
-- Ah, aquele homem maravilhoso, sim, que pena que não foi para mim. Deixou para um tal de Jonas, hei, o que você tem que eu não tenho?
-- Você acha que ele pode ser homossexual?
-- Jamais, mas se eu estiver enganada, TOME CUIDADO, é – disse rindo – para não se machucar. Tome, ele deixou este cartão.
No cartão vinha impresso Dr. Barros, especialista em doenças do coração, junto a um endereço e telefone para agendar consulta. Peguei o telefone e sem pensar duas vezes, marquei um horário para o dia seguinte. Naquela noite consegui dormir mais do que às três horas habituais e até sonhei... ... com ela.
5. DIAGNÓSTICO
20 de setembro de 2000
Peguei um enorme congestionamento para chegar ao consultório do Dr. Barros, quase uma hora no trânsito para ser exato. O local do endereço era um prédio de escritórios muito moderno, construído com armações metálicas e vidros espelhados e devia ter uns vinte andares, me identifiquei para o porteiro que me explicou como chegar ao destino. Deixei o Mustang no estacionamento interno e rumei para o elevador sem pressa. Era no último andar, sala 515, não precisaria bater à porta, pois a secretária – um avião, segundo fez questão de esclarecer o nada discreto porteiro – já havia ido embora. Conforme me dissera a secretária, quando marcou a consulta, o doutor só tratava de um paciente de cada vez, pois se dedicava muito. Quando mencionei sobre valores, ela me interrompeu dizendo que o Dr. Barros era muito bem de vida e fazia seus tratamentos em caráter experimental, fundamentando dados para mais uma de suas teses. Ora, ora, havia pensado, não custa nada tentar descobrir o que estava acontecendo e como queria descobrir para poder bater em alguém, mas havia outro detalhe que me surgira à mente, o doutor poderia ter pego meu nome na lista telefônica e simplesmente jogado psicologicamente comigo como jogaria com qualquer outra pessoa e no meu caso, atiçara uma grande curiosidade. Lá no fundo, era no meu salva-vidas que me se agarrava com mais força ainda, por mais estranho que isto possa parecer.
A porta estava mesmo aberta, entrei e sem nenhuma cerimônia, me sentei. Passaram-se cinco minutos e nada, retirei uma revista das diversas colocadas sobre a mesa de centro e pus-me a ler. Na sua maioria, eram revistas que tratavam das modernas descobertas científicas no mundo da saúde, com uma ou outra "Caras" no meio, que não estavam ali por coincidência, pois após folhear ambas, descobri matérias inteiras sobre o Dr. Barros, que insistia em não aparecer na saleta de recepção. Será que o porteiro não comunicara o doutor sobre sua presença? Olhei para o relógio: vinte minutos de espera, resolvi ir embora e até já havia me levantado quando a porta dupla de mogno se abriu, de onde uma voz conhecida se fez ouvir.
-- Entre Jonas!
Um arrepio passou pelo meu corpo, tentei sorrir e obedeci à voz.
A outra sala era enorme, com as paredes cobertas de quadros que pareciam janelas mostrando a era medieval, havia livros espalhados por todos os lados, dois divãs estofados estacionados lado a lado no centro da sala, o que dava a impressão de serem reservados para terapia em casal ou para alguma safadeza do doutor; em uma cadeira grande e antiga, também estofada, repousava o gigante que agora observava a presa, digo, eu; observava com um braço cruzando o peito e uma mão segurando o queixo. Ele usava aquela mesma roupa escura do dia anterior e era difícil ter certeza em que parte o doutor me observava, devido à escuridão existente. Seria ele mesmo homossexual? Ri do pensamento enquanto o doutor me indicava o divã da esquerda com a mão espalmada e um aceno da cabeça. Quer ver agora ele deitar no outro divã, me olhar nos olhos e dizer: te amo! Meu pensamento foi cortado pela voz de trovão.
-- Você tem uma imaginação muito fértil, Jonas! Fique tranqüilo, não sou homossexual apesar de realmente usar esses divãs para sexo sim.
O arrepio retornou e a boca secou, imaginei-me agora saindo correndo como fizera quando criança no circo, após me assustar com um palhaço.
-- Não se assuste nem corra, por favor, tenho certeza que na revista que leu estava escrito que sou especialista também em leitura da mente, hipnose, coisas assim. Mas tenho também certeza que não acreditou numa só linha que leu, como a maioria não acredita e torno a dizer, fique tranqüilo e vamos iniciar nossa consulta.
O “sim” ficou preso na garganta e respirando fundo, consegui enfim falar.
-- O que é o senhor?
-- Tudo bem, tem algumas perguntas, certo! Pergunte o que quiser agora, pois após isto será a minha vez. Ok, vamos lá. Eu sou o doutor que se apresentou para você na academia e é tudo que precisa saber sobre mim.
-- Quem o contatou?
-- Eu mesmo te escolhi para tentar ajuda-lo, após uma promessa na roleta russa, mas isto é uma outra história. Tenho grandes possibilidades de fazer com que possa ter sua paixão, ou melhor, ter Patrícia ao seu lado, estou errado?
-- De que Patrícia está falando, doutor?
-- Jonas, necessito de toda a sua sinceridade se quiser que eu faça qualquer coisa por você. Se acha que não vai conseguir ser sincero o suficiente, vá embora agora e eu não mais o aborrecerei.
O encarei por um instante. O que tinha a perder afinal, ele sabia o meu grande segredo, aquele que deveria ser somente meu e de Pati para sempre. Será que Deus está me olhando com mais carinho neste momento e enviou este homem para me dar uma chance? Notei que o gigante desviara o olhar após este último pensamento e, sem ter uma resposta, resolvi confiar nele.
-- Não está errado doutor, amo essa Patrícia a que se refere.
-- Estamos progredindo. Vamos fazer um pequeno jogo de perguntas, eu as faço e, lógico, você responde ou se quiser, eu mesmo respondo.
-- Não é por nada não, mas deixa que eu mesmo respondo!
-- Certo! Primeiro perguntas em relação ao que sente por Patrícia. Pensa muito nela?
-- Sempre. Basta ficar quieto por um instante e ela toma conta de mim.
-- Quando está na rua também?
-- É pior ainda. Ela tem um gol vermelho e toda vez que vejo qualquer carro parecido, já fico doido pensando que é ela.
-- Em casa?
-- Lá é onde penso mais, pois moro sozinho, não há como fugir de sua presença. Tento ver defeitos nela, mas o amor que sinto é muito maior. Tento fugir da lembrança de seus sorrisos, mas é inevitável, o telefone toca e corro achando que só pode ser ela; o mesmo acontece quando a campainha do apartamento soa. Sabe, doutor, acho mesmo que ela vive e mora dentro de mim, mais que isso, tenho certeza que ela já é parte de mim.
-- Mas então ela é uma princesa de tão linda e formosa?
-- Sim, pra mim ela é uma mulher maravilhosa, mas o senhor diria que é uma mulher muito bonita, porém comum.
-- Então o que você viu nela?
-- Eu vi e vejo nela a essência de seu ser, a bondade que a envolve, o carinho que transborda de seu coração. Ela é especial demais e tenho certeza que eu posso dizer isto até mil vezes repetidas que ela vai achar que estou exagerando.
-- Você já teve alguma intimidade com ela?
-- De nenhum tipo, nem um simples beijo. Eu a respeito demais e só faria alguma coisa com ela se não houvesse nenhum meio de escapar, ou se ela se separasse.
-- E no marido dela, pensa?
-- Deus me perdoe, mas morro de inveja dele; do carinho com que ela às vezes fala dele, da maneira como ela narra suas noites de amor com ele. Quem sou eu para competir com um casamento de longa data, uma vida a dois que foi construída provavelmente com o mesmo amor que sinto hoje, mais que caiu na rotina com o tempo. Eu o invejo sim, não há dúvidas, e ele deveria dar mais valor para ela.
O gigante permaneceu calado, dando a impressão de que estava satisfeito com o diálogo travado. Quem dera!
-- Seu diagnóstico é exatamente o que pensei, está muito apaixonado por essa mulher, disto não há dúvidas. Nossa consulta de hoje acabou, mas vou lhe fazer mais uma pergunta, que não quero que me responda agora: O que você faria se pudesse reconstruir sua vida e a dela desde muitos anos atrás, teria mesmo coragem de tentar? Pense durante a noite em todas as possibilidades, nos sacrifícios, e me dê uma resposta daqui a dois dias, numa nova consulta. Adeus Jonas.
Eu deixei o local, meio incerto quanto aos resultados daquela consulta do tipo bate-papo, a que geralmente se tem com psicólogos. Cheguei ao meu apartamento meia hora depois e tomei uma ducha demorada. Não sabia o porquê, mas iria pensar no que o doutor dissera, afinal não custava nada e que diferença faria, pois de qualquer forma iria acabar sonhando acordado com Pati. Como sempre.
6. SONHOS
20 de setembro de 2000
A noite parecia não ter mais fim. Deitei-me pelas 22 horas e comecei a construir um sonho, do qual eu jamais me esqueceria, em nome da ciência do Dr. Barros. Imaginei-me encontrando Pati quando ela era solteira, namorando-a, casando com ela, tendo lindos filhos; só imaginei as partes boas da relação, somente os sorrisos, as vitórias e ignorei todo e qualquer outro aspecto que pudesse ofuscar o belíssimo quadro criado durante a noite.
De manhã, quando o sol tentava entrar no quarto através das frestas da janela, conclui enfim que sim, valeria a pena ter uma chance para tentar ser feliz, uma chance de mudar o rumo de minha vida e de fazer alguém ser mais feliz. Sim, valia a pena a qualquer custo. E pensando assim, adormeci.
7. ENIGMA
21 de setembro de 1987
Quando acordei, me sentia mais renovado, focalizei o relógio localizado sobre a penteadeira e conclui que dormira o suficiente. O quarto ainda estava muito escuro, apesar da tarde já haver se iniciado umas duas horas antes. Pensei em ligar para a academia e informar que não passava muito bem e que também, no dia seguinte, não daria aula, mas busquei em vão o telefone sobre o criado mudo e alias, constatei, nem o criado mudo parecia estar ali. Achei ter esbarrado nele durante o sono e o empurrado para longe da cama e já ia me levantando quando escutei uma voz conhecida do lado de fora do meu quarto.
-- Jonas. Vai dormir o dia todo? Quer que eu chame um médico?
Na verdade, eu me sentia muito bem, obrigado, mas o médico foi necessário sim, pois desmaiei. Talvez fosse até por fraqueza – diria o médico mais tarde – mas provavelmente fora um desmaio de susto e não era por menos, já que não é todo dia que a gente escuta nossa mãe chamando do lado de fora do quarto, principalmente quando ela já falecera há uns cinco anos.
Quando acordei novamente, estava num leito branco de um hospital, branco como é tudo num hospital. Minha mãe e minha irmã Rita se encontravam uma de cada lado da cama e o tradicional branco do hospital agora existia em minha mente. Bom, pensei, um sonho muito realista este, o jeito era aguardar e ver o que acontecia. Travei um diálogo com mamãe, afirmando estar me sentindo bem, mas só fui liberado horas depois, com uma enorme receita médica, de praxe. Durante o trajeto de saída do local, passei por um espelho e me vi de relance, retornando a seguir para ter certeza. Estava bem mais jovem, sem qualquer dúvida. O rosto mais afinado, sem bronzeado algum e com uma escassa barba por fazer, o cabelo cortado bem curto, tipo soldado do exército; mas o que mais me impressionou foram as roupas, que coisa mais horrível, prometi para mim mesmo que, sendo sonho ou pesadelo que fosse, a primeira coisa a fazer era trocar de roupa. Alcançamos a saída e ao pisarmos na calçada, senti um pouco de tontura, mas respirei fundo e procurei me acalmar. Minha cidade não mudara muito nos trinta anos em que vivera nela, mas certamente aquele ambiente que eu via agora não era o mesmo do dia anterior.
-- É melhor você não ir à Faculdade hoje Jonas, pode ter uma recaída lá e quem vai te ajudar?
Essa era mesmo minha mãe, preocupada como sempre, um doce de pessoa. Senti meus olhos se enchendo de lágrimas, não gostava de lembrar que perdera minha mãezinha tão cedo, sem poder dar um pouco mais de conforto que ela merecia. Meu pai faleceu quando eu tinha quatro anos, era mais fácil aceitar, pois não tinha convivido com ele, mas a minha mãe...
-- Está bem mãe, hoje eu não saio mais para lado algum, disse e sem querer estava mentindo, pois a noite prometia e eu ainda não sabia.
Cumprindo uma das promessas, ao chegar a minha casa, fui direto para o quarto trocando imediatamente de roupa, chegando até a me sentir melhor. O ano de meu sonho era 1987, lembrava-me muito bem deste corrido período, quando passava por uma má fase na Faculdade de Educação Física, o que me obrigou a uma aplicação muito maior do que a normal, não saindo para lado algum e as únicas novidades não passaram de uma paquerinha aqui, outra ali. Apesar das dificuldades, lembrava com carinho daquele ano, onde realmente tomei consciência do que esperava do futuro, tendo a certeza que queria ser um profissional da área para o qual tanto me aplicara. Isto para alguns poderia parecer bobagem, mas para mim foi fundamental. Considerei que aquela má fase que superei sacrificando os finais de semana onde passava estudando, a passagem do Jonas jovem para o Jonas adulto, da algazarra trocada por responsabilidade, do incerto pelo certo, e isto foi muito importante para desenvolvimento do meu caráter.
Mas agora, em que estranhamente visitava este ano num sonho tão real, com a aparência de um adolescente, mas ainda com a mente de um homem formado, estando numa sexta-feira quente, onde passara a parte da manhã refugiado num hospital, achava mesmo que precisava dar um descanso para aquele jovem que eu fora, pelo menos num final de semana, afinal era um sonho, me lembrei, e os sonhos não modificam o futuro que já foi escrito. E assim pensando, tomei uma bela ducha e sai para a noite, que começara há algum tempo.
Ao entrar numa via iluminada, que servia de acesso para os dois melhores clubes noturnos (ou danceterias) de minha cidade, comecei a cantarolar em voz baixa:
“Sonho, sonho, sonho
Não deixa eu acordar
Que nesta linda noite
Eu venha a rir, chorar
Mas que a noite não se acabe
Sem eu me apaixonar”
Não lembrava de onde vinha a cantiga, possivelmente a teria inventado naquele momento, mas de uma coisa eu sabia e meus olhos confirmaram, pois se encheram d’água. Eu sabia que não conseguiria me apaixonar por mais ninguém além de Pati, ela que agora deveria estar dormindo abraçada ao marid..., não, não queria pensar nisto e meu pensamento foi sufocado pelas lágrimas e quando me recuperei, cantarolei novamente a música, alterando-a:
“Sonho, sonho, sonho
Não deixa ela acordar
Que nesta linda noite
Ela esteja a rir, jamais chorar
E quando a noite chegar ao fim
Venha por mim se apaixonar”
Chorei mais um pouquinho, algo que acontecia tão naturalmente agora e deixei que a cantiga se repetisse em minha mente, como um refrão que não se acaba. Entrei no banheiro de um boteco, escondendo os olhos vermelhos do balconista, onde lavei bem meu rosto e prossegui a seguir na caminhada até onde filas se formavam para entrar na Dance Music.
O som que derrubava o salão era uma música pesada da Madonna. Não estava preparado, mas entrei agitando, seguindo diretamente até o bar, onde ao menos por uma hora, ficaria me “abastecendo” de martinis e cubas. Quando já me sentia digamos “legal”, comecei a rodar pelo salão, para quem sabe encontrar uma das paquerinhas da época e tornar a noite um pouco menos sofrida, fazendo coisas que não havia experimentado, pelo menos naquele ano. A idéia subiu mais que o álcool nas minhas veias e comecei então a procurar com mais afinco, enquanto meu desejo sexual aumentava, você sabe onde, num descontrole típico de adolescente.
Em uma de minhas rondas pelo salão, esbarrei numa moça bonita, quase chegando a derrubá-la. O meu verdadeiro eu tomou a frente e imediatamente a segurei pela mão, me desculpando muito. O meu falso eu, resolvendo atrapalhar, ressurgiu.
-- Menina linda, aproveitando que nossa trombada não resultou nem em mortos, muito menos feridos, somados ao fato de que estou sozinho e de que você está, está...
-- ... sozinha...
-- Isso! Estamos sós, portanto, creio eu que não faria mal algum se dividíssemos nossas tão boas companhias, seja em danças ou no barzinho, o que você acha?
Ela nem precisou responder, mostrou um belo sorriso que se não era sim, seria então o mais magnífico não que alguém já tenha levado. Nem esperei por outro sinal, a puxei pela mão para o centro da pista e dançamos, brincamos, sorrimos. Logicamente, fizemos algumas escalas no bar também, mas a melhor parte foi na hora em que começou a tocar as músicas mais lentas, as chamadas românticas. O contato com ela foi eletrizante e ao mesmo tempo suave e nem parecia que ela dizia a verdade quanto aos dezesseis anos que tinha, pois um diálogo muito legal surgiu entre nós e eu, apesar do álcool e dos desejos, notei alguma semelhança nela que me fazia lembrar de alguém, mais deixei de lado a idéia ao sermos interrompidos por uma amiga da princesa. Estava tarde e ela precisava ir embora.
Eu a soltei automaticamente e observava seu andar de retirada quando ela se virou, retornando para bem junto, colando em mim.
-- Vou te ver de novo – ela disse, em meio a outro de seus lindos e inesgotáveis sorrisos.
-- Talvez – respondi abraçando-a mais forte enquanto a beijava de leve – Tudo vai depender de quando eu acordar e descobrir que não estou sonhando.
-- Então, nos veremos amanhã. Retribuiu o beijo e saiu. Eu ainda permaneci por mais ou menos um minuto parado sozinho, no meio do salão. Que menina encantadora – pensei alto enquanto retornava ao bar - nos veremos amanha novamente, princesa.
8. O DIA SEGUINTE
22 de setembro de 1987
Existem momentos na vida de todo ser humano que, por mais extraordinários que sejam, chegam a ter uma explicação, de certa forma, plausíveis, aceitáveis. Alguns o enquadrariam como milagres, outros até como frutos de magia negra, outros ficam loucos e vão morrer em sanatórios. Eu não saberia dizer em qual destas condições melhor me classificava, deixo isto por conta da imaginação dos que lerem essas linhas. O que posso afirmar com toda a convicção é que, quando despertei naquele último dia do outono de 1987, devido ao interminável som do telefone, eu me senti muito, mas muito perdido.
Primeiramente, o telefone não estava em meu quarto, onde também não existia criado mudo algum, onde não existia nada que me era familiar daquele apartamento de classe média, onde eu vivia só já há alguns anos. Apesar de tentar raciocinar normalmente, a única lógica existente era de que o sonho continuava; de que na noite anterior eu enchera a cara, pois marretas em bigornas soavam na minha cabeça; e de que também aquele telefonema só poderia ser de uma pessoa.
Saí desesperado do quarto e quando toquei o telefone, ele calou. Sentei desanimado no sofá, cantei baixinho a música da véspera, contei até dez e estiquei o braço na direção do telefone, que voltou a tocar. Atendi. Era minha mãe, me pedindo para levar o carro no mecânico, para aquela manutenção que carro precisa para continuar rodando. É claro que disse que levava, pois do contrário mamãe ficaria muito surpresa, já que foi naquela inesquecível manhã que eu dirigi pela primeira vez o “possante” da família. E era verdade, todos sabiam que eu era louco pra fazer isso. Pois é, como disse, eu era louco para fazer isso, uma coisa que agora já fizera diversas vezes, dirigindo todo quanto é tipo de carro, mas que, por causa de um sonho maluco (que agora começava a se transformar em pesadelo) seria a primeira vez naquele início da primavera.
O mais engraçado de tudo era que aquele dia se tornara inesquecível não somente pela minha estréia como piloto. Como naquele comercial do soutien, a primeira porrada a gente também não esquece, principalmente se ela for com o fusca velho da mãe e se for uma porrada cara, como foi. No dia anterior, aquele primeiro da série “Sonho Maluco”, eu havia feito coisas que fugiam do que na verdade acontecera e então, porque não poderia ser diferente com o fusca? Talvez não pudesse, talvez certos aspectos de nossa vida simplesmente não pudessem ser mudados, talvez este sonho acabasse no capítulo “A Porrada” (tornando a série um curta metragem) ou talvez até eu não estivesse sonhando...
Era isto que eu tinha medo de pensar, não podia nem queria pensar nisto, só que a mente era uma tremenda traidora. Eu me via no consultório do Dr. Barros, aquele cara estranho que dizia poder me ajudar, que podia ler minha mente, que me assustara tanto ou tal eu estava agora. Aquele cara que parecia ser um bruxo, é, um bruxo. Somente um bruxo faria tremenda mágica; somente um bruxo faria com que o hoje parecesse ontem, mas é aí que estava o problema, de alguma forma que não sei explicar o que acontecia não parecia ontem, era ontem. Ou passado, para ser mais esclarecido.
Peguei a chave do fusca, que morava num prego ao lado da entrada da cozinha, saí pela lavanderia chegando à garagem e lá estava a belezinha. Lembro da excitação que senti ao abrir o portão da garagem coberta e sair rodando em marcha lenta. Se não me engano, na época nem fechei o portão, tal a adrenalina que me incendiava, adrenalina esta que certamente me ajudou a ocasionar o acidente. Procurei fazer tudo igualzinho e só mudei o percurso, afinal o sonho era maluco, mas eu não. Passei por uma rua paralela onde acontecera (no passado, presente, sei lá) o acidente, chegando são e salvo e não estranhei quando li no dia seguinte (é, dia seguinte) que dois veículos haviam colidido onde o fusca de mamãe sofreria o acidente. Como por capricho do tempo, este alterou os personagens, mas não o fato. E também não estranhei muitas outras coisas que aconteceram, coisas inevitáveis para o bom andamento da história, eu acredito.
Naquele sábado, depois do check-up realizado pelo mecânico de confiança da minha mãe, abasteci o carro e rodei por várias horas pela cidade toda, parando quando já estava exausto, lá por perto das 18 horas. Mamãe me deu uma bronca daquelas, onde já se viu, ficar rodando por muito tempo de carro quando um dia antes havia ido parar no hospital por estar estressado. Mas bastou um sorriso meu somado a um abraço para que ela se tranqüilizasse e me beijasse, como a um bebê que eu fora. Já estava me acostumando com a idéia daquela situação devido ao tempo em que passei pensando somente no assunto e provavelmente ficaria muito triste se fosse obrigado a acordar agora. Alguém me dava uma segunda chance, fosse obra do destino ou daquele bruxo, em ambas as situações a mão de Deus teria que estar presente, pois Ele era o Grande escritor da história chamada vida.
Resolvi sair novamente naquela noite e, quem sabe, encontrar aquela princesa novamente. Não vou mentir dizendo que estava pensando seriamente nisto, meu desejo mesmo era de procurar desesperadamente por Pati, onde quer que ela estivesse, dar uns tabefes em quem quer que estivesse namorando ou saindo com ela e depois sei lá, raptá-la, quem sabe. Mas não ia fazer isso, eu sabia, não conseguiria fazer isso, não seria justo. Por quê? -- Você deve se estar perguntando. É simples: eu tinha noção do que acontecera na vida dela, do namoro com o marido, do casamento, dos filhos, das decepções que ela sofrera; mas eu tinha outro pensamento que me dava medo: e se eu não conseguisse conquistá-la, se ela me visse novamente somente como um grande amigo, se já fosse apaixonada pelo futuro marido? Ahh, e aí? O que seria de mim? Iria passar dos dezenove anos até o final da minha vida sofrendo por ela, sonhando com ela, não, eu não agüentaria. Aí sim eu iria ter certeza que só poderia ter sido obra de um bruxo aquele retorno, um retorno para que eu pagasse por amar alguém que já pertencia à outra pessoa. Não, era um risco enorme a correr para um coração cansado de sofrer, deveria haver outro caminho e eu talvez o encontrasse, quem sabe não seria até aquela princesinha linda que faltava para que eu me reencontrasse com a felicidade, que me abandonara há tanto tempo.
9. DESTINO
22 de setembro de 1987
Como na véspera, rumei direto para a danceteria e lá dentro, diretamente para o bar. Entrava no terceiro Martini quando visualizei a beldade entrando pela lateral da pista de dança, com aquele sorriso aberto e com a expressão nos olhos afirmando que procurava alguém, que eu esperava ansiosamente que fosse eu. Não demorei muito tempo para descobrir, pois quando me viu, seu sorriso pareceu aumentar ainda mais, tanto em beleza quanto brilho. Em resposta, sorri também enquanto ela se aproximava, se aproximava. Abraçou-me sem dizer uma palavra, ficando ali enroscada em mim com aquele corpo quente, corpo de menina certamente ainda inexplorado, ansiando por um carinho. Fiquei somente com os braços estendidos ao longo do corpo por algum tempo, com medo de tocá-la, com medo de ultrapassar qualquer limite inexistente, eu sabia. Ela retirou sua cabeça de meu ombro, mantendo seus braços a me acorrentar. Fitou-me séria como se esperasse alguma atitude minha, depois sorriu. Eu não resisti, acariciei seu rosto e seus lábios com meus dedos experientes e ela tentou me morder, numa brincadeira. A beijei, no começo com extrema suavidade, passando para um nível mais agressivo, retornando ao suave. Quando nossos lábios se separaram, com grande resistência por parte dela, levei-a para o segundo andar e paramos numa sacada, de onde tínhamos uma bela visão da cidade vestida de noite.
-- Eu tenho um segredo, menina – disse olhando para o horizonte – Nem nos conhecemos direito, mas eu sinto que preciso me abrir com você, será que eu posso?
Ela chegou mais perto, me acorrentando novamente e usou a primeira das poucas frases que falaria durante toda a noite.
-- Por favor, continue.
-- Estou me sentindo muito perdido aqui, deslocado, de alguma maneira penso que já passei por tudo que estou passando, a não ser por você, que é a mais bela novidade neste "replay" da minha vida. Não estou bêbado nem louco, somente confuso. Preciso de alguém que me guie. Eu sei que isto parece um tanto infantil, mas é assim que me sinto. O que você acha? Seja sincera, não vai me magoar.
A princípio achei que a princesa nada iria dizer e fiquei até aliviado com essa idéia, mas me enganei, ao mesmo tempo em que me maravilhei.
-- Olha, não creio que possa te ajudar, sou muito jovem ainda. Até entendo o que sente, às vezes me sinto perdida também, mas não quando estou assim tão próxima de você. Se isto te ajudar como me ajuda, fique sempre assim comigo. Não me tenha como uma moça fácil, por favor, é que eu sempre sonhei com alguém como você, alguém que eu ainda nem sei o nome...
-- Prazer, Jonas -- eu me apressei em dizer – e antes que ela pudesse continuar, a beijei novamente e novamente, até o final da noite. E também, como na véspera, dançamos, brincamos, sorrimos. Dispensamos suas amigas e por volta das duas da manhã, a levei embora na “limusine” de mamãe, que ela adorou. Ela morava longe dali, um trajeto que de carro faríamos em dez minutos, se não fossem as paradas para os beijos e uma outra numa lanchonete, onde trocamos mais algumas idéias.
Na entrada do portão de sua casa, ao nos despedirmos, eu dei um tremendo fora que me ajudou a compreender em segundos como seria o meu futuro. Estava meio zonzo devido aos inúmeros martinis e o sono, que me chamava. Pela milésima vez eu me vi abraçado com ela e depois de (ufa) mais um longo beijo, me despedi logicamente.
-- Eu te ligo outra hora pra gente se ver. Boa noite Patrícia...
Ela se virou, passando o portão e deslizou até a porta de entrada e antes de adentrar a residência, com a porta já aberta, tornou a se virar em minha direção. Eu notei a gafe quando ela me encarou e senti a pele do rosto pegando fogo. Uma noite tão bonita com um fim tão trágico, pensei. Mas o que eu a ouvi dizer apagou o incêndio que tomava conta de mim de uma tal forma que chegou mesmo a me congelar ali naquela calçada. E foi em meio a sorrisos que suas palavras entraram em meus ouvidos, chegando a invadir minha mente e a apertar o meu coração. O destino joga com as pessoas e às vezes as pessoas jogam com o destino, não sei dizer qual era o meu caso só que foi isto que realmente aconteceu, pelo menos assim eu pensava.
10. O PREÇO
22 de agosto de 2000
Quem nunca sonhou em ter uma segunda chance para consertar todas as bobagens que fez durante a vida? Acredito até que a resposta seria TODOS. Mas e se a pergunta fosse um pouco diferente, do tipo “Quem conseguiu ter uma segunda chance? Aí você que me responda, pois nessa situação só conheço a mim mesmo e não tenho mais certeza se é felizmente ou não. Minha vida não foi tão modificada assim, eu acabei me tornando mesmo um professor de Educação Física, minha mãe faleceu alguns anos atrás, não sou melhor de vida do que era antes de retornar ao passado e além disso todas as minhas dores foram duplicadas. Está certo que duplicadas também foram minhas alegrias (e olha que houveram muitas a mais), mas existem certos sofrimentos que levamos anos, se não para esquecer, ao menos para deixar um pouco de lado na mente.
Só tive plena convicção do que aconteceria em minha vida naquela noite, há quase 13 anos atrás, quando aquela princesinha, que acabou se tornando minha esposa, me disse tão docemente:
-- Olha Jonas, pode me chamar de Pati.
Foi nesse momento que eu me entreguei de corpo e alma há uma realidade que eu jamais poderia fazer qualquer pessoa acreditar, uma realidade que eu não pude dividir com ninguém, uma realidade que me fez feliz, que realizou meu grande sonho de amor. Mas, diz um ditado que “Tudo tem o seu preço, e às vezes ele é caro demais”. Não posso dizer que meu preço foi caro demais, amei demais essa mulher, vivi os melhores momentos que um homem pode sonhar em ter com uma mulher, a felicidade não foi plena mais pelo fato de eu achar que fui injusto com Pati, ela já havia tido toda uma história antes, uma história que quer fosse boa ou ruim, existia, e o mais duro era que eu sabia, sabia de tudo.
Não pudemos ter filhos, vim a descobrir em 1990 que eu era estéril, pensamos em adotar, pensamos até em inseminação artificial, mas não deu certo, nada deu certo talvez porque certas coisas não possam ser mudadas, como narrei anteriormente. Fui extremamente feliz por tê-la ao meu lado, mas muito triste por não dar a ela (que tinha por direito) um filho; cheguei a pensar em separação só que não tive coragem, pois ela me amava tanto, tanto. Será que foi egoísmo meu ter sonhado em ser feliz com ela? E se foi por minha culpa que toda essa loucura aconteceu, eu queria que no mínimo ela pudesse ser bem mais feliz do que foi. Só que isso não aconteceu.
Ela morreu há dois anos atrás, levando consigo um enorme pedaço meu. Eu sabia, infelizmente, que isto ia acontecer e como no episódio do fusca, quando consegui evitar o inevitável acidente, tentei manipular o futuro, mas sem êxito. E o mais duro, o que mais me corrói por dentro é que indiretamente fui eu quem a matei, ela não teve nenhum filho ou filha para salva-la do atropelamento, aquele que a teria somente causado uma fratura, mas que acabou por tirar-lhe a vida. Em muitas noites deste ano de sua morte eu saí com ela, na esperança de que o fato acontecesse e eu pudesse estar lá para ampará-la, esperança em vão. Numa noite, sem me avisar, pois eu estava muito ocupado na academia, ela saiu para fazer seu passeio pelo parque e o inevitável aconteceu. Acho que nem todas as lágrimas do mundo a trariam de volta, mas é tão difícil viver sem ela e agora eu pago o preço por toda a felicidade que eu tive. Menti acima quando disse que esse preço não foi tão caro assim, pois ela não tinha preço. Pelo menos tenho a esperança de que mais cedo ou mais tarde, vou vê-la novamente em outro mundo e só espero que este dia não tarde tanto, pois ainda a amo demais.
11. RECOMEÇO
22 de setembro de 2000
Estava muito triste com a passagem daquele aniversário de treze anos do meu retorno, precisava conversar com alguém, desabafar quem sabe todo esse tempo em algumas horas com um ser diferente do que o meu reflexo no espelho. Havia tirado uma semana de folga para poder passar por um psicólogo e me dar um merecido descanso. Ultimamente trabalhava demais para ficar o mais longe possível da solidão de minha grande casa, o que acabaria por elevar o meu nível de stress ao limite.
Abri a lista telefônica no tópico psicologia e o primeiro especialista que encontrei foi um conhecido meu de longa data, de um pouco mais de treze anos para ser exato. A inscrição abaixo de seu nome dizia: Especialista em psicologia, parapsicologia, doenças do coração, entre outros aspectos paranormais; famoso mundialmente. Anotei seu telefone (que por coincidência também já havia perdido há muito tempo) e entrei em contato com seu consultório.
-- Consultório do Dr. Barros, bom dia!
-- Por favor, eu queria marcar uma consulta com o doutor, se possível ainda para hoje, senhorita.
-- Seu nome, por favor.
-- Jonas.
--Ah, Sr. Jonas! Um momento. Hum, sim, como pensei, o senhor tem uma consulta de retorno marcada para hoje a tarde, às duas horas.
-- É verdade, me desculpe, havia me esquecido. Acho que minha memória está um tanto curta ultimamente. Estarei aí no horário marcado, muito grato.
-- Sou eu quem agradece. Muito bom dia Sr. Jonas.
Então será que o gigante me aguardava? Bom, se existia alguém em quem eu podia confiar era bem provável que fosse o Dr. Barros, pois eu tinha quase certeza que ele havia sido o responsável pelo 'loop' que acontecera comigo. Quem sabe ele me esclareceria muita coisa nesta tarde, mas eu estava morrendo de medo, é verdade, o gigante era de dar calafrios com suas adivinhações, pelo menos agora eu já entraria em seu consultório com um pé atrás, prevenido. Será? – uma voz perguntou dentro de minha cabeça – e por um longo momento o que mais quis fazer na vida foi retornar a ligação e cancelar a consulta.
No prédio de escritórios onde se localizava o consultório do doutor o procedimento foi o mesmo de antes, o porteiro era o mesmo de antes, o elevador era o mesmo, a secretária (para mim, funcionária fantasma) não se encontrava, a porta de recepção estava aberta, as conhecidas revistas espalhadas na mesinha de centro, tudo igualzinho antes. Só uma diferença existia: a porta de acesso ao interior do consultório estava aberta, convidativa, tal a boca de um lobo gigantesco. Não sei por que este último adjetivo lembrava tanto o sujeito que eu estava prestes a encontrar.
Como feito há muito tempo, criei coragem e entrei. Lá estava ele, como antes, esparramado em sua cadeira da idade média, notei que havia novos objetos estranhos espalhados por todos os lados, vindo a pensar algo e antes que pudesse fazer qualquer gesto para o gigante se calar, ele respondeu minha indagação silenciosa.
-- Realmente Jonas, tive um bom tempo para colecionar novos objetos, na verdade para ser sincero tenho todo o tempo do mundo. Sente-se.
Logicamente para combinar, minha boca secou novamente e mesmo já esperando o acontecido, a vontade de correr tomou conta das pernas, mas respirando profundamente, caí num dos divãs e ao invés de pensar, falei.
-- Por favor, não se deite neste divã que ficou vazio, pois sua secretária pode chegar e pensar muito mal de nós.
-- Acredito que saiba que eu não tenho secretária alguma, não é Jonas? Seria difícil uma que fosse de inteira confiança e que agüentasse o meu pique.
-- Eu suspeitava!
-- Voltemos à sua consulta, você fez o que eu te pedi?
-- Fiz, e acordei quando tinha dezenove anos.
-- E o que achou da experiência?
-- Uma experiência um tanto longa demais. Houve muita coisa boa, mas agora existe um sofrimento muito maior do que quando estive aqui da primeira vez...
-- É o preço!
-- Eu sei, mas me responda somente duas coisas: Quem calcula este preço e o que foi que o senhor fez comigo?
-- O preço é calculado pelo destino, mais ninguém; e para terminar sua curta consulta, não, eu não fiz nada com você, eu não poderia fazer nada por você, o que é uma pena. Está certo, eu sou mesmo um bruxo, como você acha, mas não poderia mudar o passado e interferir no futuro de um ser humano, isto cabe somente ao Criador.
-- Mas então, se não foi o senhor, o que foi então que aconteceu, eu preciso saber, eu me sinto muito culpado por tudo, estou começando a sofrer de insônia novamente, tenho medo de ficar louco. Quem foi – tentei gritar, mas o que saiu não foi mais forte que um sussurro – quem foi que brincou tanto comigo, o que foi que aconteceu, por favor, me diga?
O gigante refletiu por algum tempo antes de responder, sempre com a mão direita segurando o queixo.
-- Digamos que tudo não passou de, como é mesmo que você o apelidou, “Sonho Maluco”. Foi isso! Adeus Jonas.
Despediu-se, levantou-se e saiu, me deixando ali mergulhado na escuridão de sua sala, acompanhado por minha tristeza, agora sempre presente. Resolvi ir embora também.
Desci pelas escadas, o elevador não respondeu ao chamado, quando passei pelo porteiro, avisei-o que o doutor havia deixado tudo aberto e já havia saído. Este sorriu.
-- De que doutor o senhor está falando?
-- De um com mais de dois metros, vestido de preto...
-- O senhor está passando bem?
Deixa pra lá, disse engatando a primeira marcha e sumindo dali. O gigante era um bruxo, ele mesmo havia me confessado, não era de se duvidar que aparecia tão rápido quanto desaparecia, como um mágico de Las Vegas, sendo somente a diferença de que seu palco era o mundo. E para completar o número, quando cheguei em casa e abri a lista telefônica não encontrei nenhum Dr. Barros na mesma, para dizer a verdade, não havia nenhum doutor que começasse com a letra “B”. Fiquei um pouco intrigado, mas não surpreso, isso não! Depois dos últimos anos aprendi a acreditar que existem muitas coisas que desconhecemos e que, insistentemente ocorrem à nossa volta. E já que o assunto é mágica, eu também consegui realizar um pequeno truque, que estava se tornando raro para mim: dormir. Mal caí na cama, apaguei e, por uma misericórdia divina, não sonhei.
12. ????
23 de setembro de 2000
O telefone explodiu por volta das nove horas da manhã, era um sábado. Acho que dormi como um bebê e como tal estava morrendo de “fominha”, queria deixar o "trimtrim" de lado e disparar para a geladeira, mas o som era insuportável. Enfiei a cabeça sob o travesseiro na esperança de que ele realmente explodisse ou parasse, mas acabei vencido pela teimosia do mesmo. Estiquei o braço e dei um gemido ao choca-lo com o criado mudo (?), a dor me fez despertar um pouco mais e notei como o quarto de casal estava menor (??), aquele "trimtrim" estava diferente também, lembro que minha saudosa mulher havia regulado o telefone para um som mais suave e eu não alterara nada na nossa casa (???). Peguei o fone de cor azul, que era sem fio, e fiquei observando-o um pouco antes de apertar a tecla "talk". Creio que meu pensamento voou para muito longe, pareceu-me até ter retornado para o sono. Balancei fortemente a cabeça de um lado para o outro e atendi, estremecendo por inteiro com o que ouvi (????).
Há pessoas que costumam guardar velhos objetos, relíquias, pessoas assim como o próprio Dr. Barros. Eu não tenho esta mania, pelo menos não material, mas trago comigo numa das estantes da mente vários objetos, rolos e rolos de filmes sobre vida, minha vida e a das pessoas que eu amei, das que eu amo. E foi vasculhando nesta estante que encontrei um velho e gasto salva-vidas, aquele dos dizeres da esperança, lembra; pois é, ele estava lá, coberto de pó e de outras besteiras, acho que nunca perdi tempo fazendo uma faxina cerebral e olha que em questão de tempo eu fui privilegiado. Agarrei-me a ele novamente só que agora a esperança era mais fácil de ser concretizada, ou melhor, mantida. Não tinha mais a expectativa de ter alguém que não me pertencia ao meu lado, só o fato de poder manter uma amizade com essa pessoa já era o suficiente. Eu aprendera a melhor de todas as lições com toda essa doida experiência que passei ou loucura que vivi, sei lá. E lá vinha chegando a própria dona esperança, em carne e osso.
Quando a vi estava mais linda do que nunca, os cabelos presos, as roupas próprias para ciclismo em cor verde com detalhes em azul, coladas em seu corpo, moldando o seu corpo; ela se aproximou falando coisas do tipo – Agora tenho que ficar acordando meu professor para ele cumprir seus compromissos? Que coisa mais chata! Olha que vou arranjar um melhor, hein! – As palavras dela passaram por mim, insignificantes, eu não disse nada a princípio, não tinha nada para dizer. Ao invés disso, soltei minha bicicleta e a abracei, sem nenhuma recusa ou pergunta por parte dela. Fiquei um tempo ali, colado, segurando com um enorme esforço as lágrimas que queriam desabar dos meus olhos castanhos, e o que eu senti foi a mais pura felicidade, soltei um suspiro e antes que a situação se tornasse no mínimo constrangedora, me afastei um pouco dela, mantendo um braço sobre seu ombro direito.
-- Menina, que bom te ver, já está mais calminha agora? Por este sorriso, se é que foi pra mim, acho que sim. Obrigado pelo abraço, senti muita saudade e precisava roubar um pouquinho desta tua energia para conseguir fazer o percurso de hoje. Vamos!
Notei que Pati ia dizer algo, mas se conteve naquele momento, talvez até colaborando para não estragar a alegria que me invadiu, fazendo somente um sinal de positivo com a cabeça para que iniciássemos a marcha. Mais tarde, enquanto conversávamos, ela me contou que a cada dia ficava mais distante de seu marido, as pequenas brigas, os ciúmes e outros fatores continuavam. Eu me sentia agora como se fosse o ex-marido dela (e de certa forma, eu realmente era) escutando-a e fazendo piadas do tipo “Quem manda casar” e “Procure um professor de ginástica, dizem que eles são ótimos maridos”. A esta altura de nossa conversa, meu salva-vidas me arrastou para um mar mais agitado e eu mentiria se dissesse que não havia gostado da idéia. Na verdade, eu aprendi a nadar muito bem nessas águas, pois foram treze anos de treinamento constante.
Ao retornarmos para o parque, alegres e cansados, por motivos diferentes que eu não preciso explicar, passou rapidamente entre nós um cidadão alto, trajado de preto, que parecia e muito com um bruxo que eu conhecia. Não dei muita importância para o cidadão que passou como um raio, ainda mais porque a presença de Pati me tomava toda a atenção, mais mesmo assim consegui perceber que o gigante sorria enquanto cantava uma música, cuja letra achei recordar.
“Sonho, sonho, sonho
Não deixa ela acordar
Que nesta linda noite
Ela esteja a rir, jamais chorar
E quando a noite chegar ao fim
Venha por mim se apaixonar”
FIM
Este é um conto fictício, fruto somente da imaginação e sonhos do autor. Qualquer semelhança com a vida real pode ser considerada mera coincidência ou quem sabe... ... destino!
Revisão: minha amiga Márcia Rangel
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Nota do autor de 01/12/2009 alterada em 24/12/2009:
Nestes dias atrás inspirado pelo tão bom ambiente encontrado aqui no Recanto, pensei: o que vou publicar amanhã?
Quando percebi estava rabiscando um caderno de notas e um título já brotara no papel, como que do nada: Jonas II!
Pensei, Jonas II, estou atrapalhado, esta história já acabou, fim, ponto final, the end!
Mas eu estava enganado, ela não acabou, existe alguma coisa ainda, um detalhe, uma vírgula, algum sentimento de que podia ser que o final de tudo fosse diferente...
Pois é, creio que consegui, uma nova partinha deste conto que me apaixonei está com seu endereço abaixo neste espaço cultural da Net. Clique para visitá-lo!
JONAS II
Abraços!
1. PAIXÃO PROIBIDA
22 de agosto de 2000
Ela estava linda naquele dia, alias, como sempre. Vestia um conjunto rosa choque para ginástica combinando com o tênis branco com detalhes em lilás; trazia um lenço amarrado à cabeça que prendia o longo cabelo castanho, que parecia loiro quando o sol a iluminava. Ela mancava um pouco, sendo necessário reparar muito bem nela para perceber, mancava em virtude de um acidente ocorrido há dois anos atrás, onde sua filha a empurrara para que não fosse atropelada por um carro, mas que ocasionou uma fratura na bacia. Vinha agora em minha direção, empurrando sua "bike" de alumínio, trazendo aquele sorriso exposto, aquele sorriso que me derrubava (a mim e ao resto dos fãs, é claro). Não parecia andar, para ser sincero flutuar era o que fazia. Isso! Flutuava em minha direção com aquele corpo malhado, forte, mas sem perder a delicadeza feminina. Ah, tudo nela era lindo ou, como diz a frase “aos olhos de um apaixonado não existem defeitos, não existem obstáculos, somente o presente e a paixão”. Não era o que acontecia comigo, não que eu não estivesse completamente perdido, apaixonado, nada disso, é que existia um pequeno obstáculo entre nós, pequeno, porém para mim intransponível. Ela era casada...
– Vamos. Ela disse, tocando-me no braço.
Fomos. Mais uma tarde de passeio ciclístico no grande bosque da cidade. Já era rotina esses nossos passeios desde que nos conhecemos numa academia de ginástica, cerca de um ano atrás. Patrícia era seu nome, mas eu a chamava de Pati e cultivávamos uma bela amizade unida por pensamentos muito parecidos. Ela sabia da minha paixão, eu fiz questão de me abrir, precisava continuar sendo sincero se a queria conquistar, a qualquer preço talvez; achava ser esse mesmo o caminho, mas estava quase desistindo. Bom, para não mentir, todos os dias eu pensava em desistir daquela nossa relação de amigos íntimos, sem segredos, mas não resistia à tentação de admirá-la, de falar e sorrir com ela, qualquer coisa enfim era maravilhoso, pelo menos até o fim daquelas longas tardes no bosque ou na academia; pelo menos até na hora em que me via sozinho novamente, e aí me segurava até chegar ao meu apartamento onde podia chorar a vontade, pois vivia só.
Pati concordava e achava também que eu deveria me afastar dela, procurar um caminho menos acidentado, arranjar uma namorada entre as meninas que me paqueravam. Eu era bem bonito, eu sei, dava aula na academia já tinha sete anos, estava com trinta e dois e Pati com trinta. Trinta e dois anos, mas me sentia como um adolescente que está “ligado” na primeira menina namorada. Já havia namorado algumas vezes, saído várias vezes sem compromisso, mas nada comparado ao que sentia por Pati, nada. Ela era o tipo de pessoa que eu estava esperando para que fosse a mãe de meus filhos, a mulher com quem eu dividiria minha vida e ao mesmo tempo me completaria. Senão fosse por aquele pequeno obstáculo...
Acho mesmo que a minha paixão se iniciou naqueles longos papos na lanchonete da academia onde ela começou a desabafar, contar sua vida com seus problemas comuns enquanto eu falava de meu trabalho e das minhas aventuras. Foi nesse tempo que comecei a perceber como ela era diferente das mulheres que me rodeavam, como ela era especial. Tinha dois filhos e demonstrava tanta ternura quando falava deles que chegava a me comover. Do marido ela contava sobre as diversas brigas sem sentido, às vezes contava também sobre as noites de amor. Segundo Pati, ele não lhe dava mais aquele carinho que ela tanto necessitava e somente procurava se redimir na hora do sexo. Foi quando ela comentou que passara por sua cabeça uma possível separação no futuro, e então nessa época, eu me agarrei com força a uma possível chance, aguardando todos os dias que ela me ligasse e me desse a tão sonhada notícia, que certamente, mudaria de vez nosso relacionamento, já que eu tinha certeza que ela possuía um carinho muito especial por mim, que sempre, em todo e qualquer momento, jamais a desrespeitei nem decepcionei. Mas os dias passavam, as semanas surgiam e a novidade não acontecia. Foi então nessa época que, querendo dar um empurrãozinho no destino, me abri. Me abri como nunca, como jamais sonhei em me abrir com alguém, despido de qualquer receio de sofrimento, exposto, um alvo fácil... E foi assim agindo que fui atingido em cheio, bem lá no fundo do meu coração. Fui atingido por palavras metralhadas por ela, palavras que feriam dizendo poder haver um futuro para o seu casamento, para os longos anos de casamento de, infelizmente para mim, um alicerce bem fundado. Eu fiquei afundado num mar de tristezas, incertezas, desespero; e pra não me afogar me agarrei no único salva-vidas existente no convés de minha alma. Neste salva-vidas vinha uma inscrição em letras verdes com os dizeres: ESPERANÇA, a última que morre; diz um ditado meu que “somente se agarre à esperança quando todas as outras portas se fecharem e o fim parecer inevitável”. E era esse o meu caso.
Usei este salva-vidas por um longo tempo até que, convencido por mim mesmo e por Pati (definitivamente os únicos que teriam acesso a esse meu segredo), resolvi mudar de tática. Me impus uma regra: a cada vez que pensasse nela, imediatamente eu me lembraria que o seu coração já estava ocupado por outro homem, que ela nunca iria se separar e que eu jamais poderia destruir a felicidade de uma família inteira para me ver feliz; e principalmente, que eu não deveria estragar a mais linda amizade que eu já fizera, uma amizade de lágrimas e sorrisos, era bem verdade, mas era a coisa mais importante que eu tinha, a proximidade mais importante que eu possuía de alguém tão doce, uma proximidade que reabastecia de vida meu corpo, eliminando as tristezas da última noite. Quando estava com ela em nenhum momento me lembrava de qualquer sofrimento, era tudo passado, e passado não conta. Bem, consegui bons resultados com minha tática, não a esqueci, acho que nunca a esquecerei, mas comecei a sofrer menos quando estava na solidão do meu quarto. As coisas funcionam assim, não é mesmo, Deus sabe o que faz no interior das pessoas e acredito mesmo que cada um de nós tenha de passar por certas exclusividades da vida, talvez para darmos um real valor aos nossos sentimentos mas eu juro, por este mesmo Deus, que se pudesse começaria minha vida toda de novo, lá do princípio, e quem sabe, bem possivelmente com a ajuda Dele, encontraria esta minha paixão proibida na hora e no lugar certo e, certamente, neste momento em que escrevo, eu não estaria chorando.
2. ROLETA RUSSA
27 de agosto de 2000
"Ele era muito bom no que fazia, estava acima dos outros mortais no plano espiritual, mas no momento bebia vodka e fumava charuto como qualquer outro, escorado na mesa de bacará para não trocar idéias com os micróbios do carpete azul, que revestia o piso do cassino. Depois de passar por todas as bancas, restava somente a roleta russa para testar e comprovar que aquele era o dia mais azarado de sua longa vida. Restava também somente uma maltratada ficha vermelha na mão, que equivalia a 500 reais. Por certo a última aposta da noite, pensou – uma noite que já entrara madrugada adentro há muito tempo. Encarou por instante o funcionário trajado a rigor, dentro de seu smoking branco, pousou a ficha no balcão e antes de escolher seu número da sorte, resmungou:
--Aqui se vai uma noite onde perdi em todos os locais deste prédio. Pois então eu lhe digo amigo, se na sua roleta minha sorte for diferente também a sorte de outra pessoa assim será.
E atirou a ficha no quadro de números como uma criança que joga bolinha de gude. A ficha rolou pelo quadro como se procurasse o local certo para cair, passou pela casa 19, retornou para a 3, atravessou a 20 indo parar preguiçosamente no número 27, de cor negra.
O funcionário, como que para respeitar uma regra da casa, pois somente havia o bêbado ali, proclamou:
-- Senhoras e senhores, façam suas apostas, façam suas apostas, apostas pagas, apostas efetuadas, apostas encerradas.
E girou a roleta.
A bolinha branca saltava alucinante de uma casinha para outra enquanto a roleta perdia sua força começando a parar, começando lentamente a parar, até que ficou imóvel enquanto a bolinha branca, num último esforço, visitava mais algumas casinhas e se acomodou enfim, ainda girando no seu próprio eixo.
-- Senhoras e senhores! Vinte e sete preto, eu disse dois sete preto, o apostador ganha, a banca paga, a banca encerra, boa noite.
O bêbado agarrou as fichas que ganhou, enfiando-as no bolso do casaco. Deu uma meia volta e heroicamente, conseguiu sair do cassino, chegando ao saguão do hotel onde subiu de elevador até a cobertura, também onde esperava que sua suíte estivesse.
Após uma briga com a fechadura, conseguiu chegar à cama onde despencou de roupa e tudo. Somente pensou, antes de “apagar”, que o dia seguinte seria muito longo."
3. UMA ESCOLHA
27 de agosto de 2000
"Quando o agora ex-bêbado acordou, passavam das 10 horas da manhã e fazia um calor insuportável. O homem se levantou sem a peculiar dor de cabeça pós bebedeira, sem mau hálito, com os cabelos penteados para trás, com o casaco sem sequer um único amassado, impecável afinal tal como entrara na noite anterior no cassino. Parecia que durante seu sono tudo fora renovado para que despertasse pronto e em condições de realizar um novo trabalho, o que não estava tão longe da realidade.
Caminhou até o banheiro, cantarolando “Pra mim, todos os dias são iguais” e fixou os olhos na bela imagem refletida. Ele era muito alto, dois metros e cinco, a pele do corpo de um bronzeado formidável, os cabelos negros combinavam com os olhos mais negros ainda, não era gordo, mas pesava mais de cem quilos, dava a aparência de ter uns quarenta anos, mas não possuía o menor indício de que uma ruga fosse brotar em sua face; não é necessário dizer que muitas mulheres já haviam se perdido em seus longos braços, recebendo o esperado carinho daquelas mãos fortes. E muitas ainda estariam por vir, ele sabia.
Retornou para a sala cuja decoração lembrava o interior de um museu antigo, havia pilhas e pilhas de livros velhos numa estante, ao lado de estatuetas em formato de anjos e monstros, quadros e mais quadros, no centro ao invés da tradicional mesinha havia um enorme baú verde escuro, o qual ele abria agora. Estava repleto de roupas estranhas, muito velhas, pedras, cintos, bonés e chapéus. Ele observava tudo, trazendo no rosto um ar de saudade. Uma lágrima rolou, mas passou despercebida pelo gigante, que agora remexia nos livros da estante. Fechou todas as cortinas negras de cetim, trancou as portas, e quando a cor do ambiente começou a se fundir à cor escura de sua vestimenta, acendeu uma grossa vela branca, fixando-a sobre o baú com algumas gotas de parafina derretida. Deteve-se a um metro do baú e começou a olhar para todos os lados, parecendo procurar um local certo, específico, mexendo a cabeça cada vez mais rápido, mais rápido, as mãos agora faziam movimentos circulares a sua frente, na velocidade de sua cabeça, cada vez mais rápido, mais rápido, mais rápido... Parou num grito agudo, os olhos revirados, o suor escorrendo pelo rosto e tremia. E o tremor do gigante lembrava um terremoto, um terremoto realmente particular. Mais um grito e o tremor desapareceu. Ele praticamente voou para a estante, jogando os volumes sobre os carpetes, abrindo alguns, folheando rapidamente, achou um mapa velho dentro de um deles e, realmente desesperado, abriu e saltou sobre ele, marcando um local com o dedo indicador. Foi chegando com a cabeça próximo ao local indicado, arregalando os olhos acostumados com o escuro e sorriu. Arrancou uma folha branca de um dos bolsos da calça e escreveu em letras tortas a palavra Jonas."
4. O ESPECIALISTA
08 de setembro de 2000
O dia a dia de uma grande academia de ginástica é uma verdadeira correria. São alunos que entram, que saem, pais que buscam seus filhos, pais que malham também, mais os funcionários e professores. Eu estava nesse último grupo.
Ficava doze horas dentro da academia de segunda a sexta e nos finais de semana fazia percursos de bicicleta para relaxar. Tinha alunos de todos os tipos e sexos; atuava principalmente na área de musculação e ginástica localizada.
Já havia visto de tudo quanto fora “formato” de gente por ali, mas não consegui deixar de observar o grandalhão que conversava com a recepcionista. Num calor daqueles, um cidadão vestido inteiramente de preto e de, com certeza – pensei – mais de dois metros de altura, bom, se isso não chamasse a atenção então nada mais chamaria. Havia notado também que a recepcionista apontava em minha direção, fazendo um sinal de positivo com a cabeça. Após o sinal, o grandalhão, que era bem rápido apesar de seu tamanho, começou a atravessar as portas que davam acesso à sessão de musculação. Vinha sorrindo, com o queixo levantado, aparência típica de um senhor da burguesia e o alvo era eu. Preparei-me para dizer qualquer coisa como: Boa tarde, mas fui surpreendido pelo trovejar da voz do visitante.
-- Jonas, eu presumo!
-- À suas ordens.
O visitante me olhou lá de cima sem abaixar a cabeça um milímetro, como se fizesse questão de mostrar sua superioridade de tamanho e continuou naquela voz forte.
-- Não vim aqui para me matricular em nenhum tipo de aula, Jonas. Foi me informado que você está com um tipo de problema, necessitando então de um especialista, ah, como sou mal educado! Permita me apresentar, sou Dr. Barros.
Eu fiquei boquiaberto, uma coisa que raramente acontecia.
-- Problema! – disse – alguém está de brincadeira por aqui, como pode ver me encontro perfeitamente bem e não necessito de especialista algum...
-- Não estou falando de problemas de saúde comum – interrompeu o doutor tranqüilamente – Estou falando de problemas na alma, no coração e na mente.
-- Por favor, doutor, o senhor está...
-- Não me entenda mal, eu sei o que anda sentindo aí dentro, estou falando de paixão, para ser mais claro. Deixei meu telefone com aquela gata da recepção e não se esqueça, eu posso ajudá-lo. Boa tarde.
Continuei boquiaberto por algum tempo e quando dei por mim, o gigante de negro já se despedia ganhando um sorriso da recepcionista e chegava à calçada. Fiquei ali parado por mais alguns minutos, sem reação. Como é que o doutor sabia de meus problemas íntimos? Será que Pati, não, ela nunca faria isto. Só pode ser alguma brincadeira de alguém, mas quem? Passei uma lista de nomes pela cabeça, mas não consegui relacionar ninguém ao episódio. Tentei voltar ao trabalho, apesar de naquela hora o movimento do local ser mais tranqüilo, havia alunos que necessitavam da minha atenção. Bom, pelo menos tentei, mas sem resultado, estava intrigado.
Saí da sessão e segui direto para a recepção.
-- Marta, sabe aquele senhor grandalhão, ele deixou algum cartão ou coisa parecida.
-- Ah, aquele homem maravilhoso, sim, que pena que não foi para mim. Deixou para um tal de Jonas, hei, o que você tem que eu não tenho?
-- Você acha que ele pode ser homossexual?
-- Jamais, mas se eu estiver enganada, TOME CUIDADO, é – disse rindo – para não se machucar. Tome, ele deixou este cartão.
No cartão vinha impresso Dr. Barros, especialista em doenças do coração, junto a um endereço e telefone para agendar consulta. Peguei o telefone e sem pensar duas vezes, marquei um horário para o dia seguinte. Naquela noite consegui dormir mais do que às três horas habituais e até sonhei... ... com ela.
5. DIAGNÓSTICO
20 de setembro de 2000
Peguei um enorme congestionamento para chegar ao consultório do Dr. Barros, quase uma hora no trânsito para ser exato. O local do endereço era um prédio de escritórios muito moderno, construído com armações metálicas e vidros espelhados e devia ter uns vinte andares, me identifiquei para o porteiro que me explicou como chegar ao destino. Deixei o Mustang no estacionamento interno e rumei para o elevador sem pressa. Era no último andar, sala 515, não precisaria bater à porta, pois a secretária – um avião, segundo fez questão de esclarecer o nada discreto porteiro – já havia ido embora. Conforme me dissera a secretária, quando marcou a consulta, o doutor só tratava de um paciente de cada vez, pois se dedicava muito. Quando mencionei sobre valores, ela me interrompeu dizendo que o Dr. Barros era muito bem de vida e fazia seus tratamentos em caráter experimental, fundamentando dados para mais uma de suas teses. Ora, ora, havia pensado, não custa nada tentar descobrir o que estava acontecendo e como queria descobrir para poder bater em alguém, mas havia outro detalhe que me surgira à mente, o doutor poderia ter pego meu nome na lista telefônica e simplesmente jogado psicologicamente comigo como jogaria com qualquer outra pessoa e no meu caso, atiçara uma grande curiosidade. Lá no fundo, era no meu salva-vidas que me se agarrava com mais força ainda, por mais estranho que isto possa parecer.
A porta estava mesmo aberta, entrei e sem nenhuma cerimônia, me sentei. Passaram-se cinco minutos e nada, retirei uma revista das diversas colocadas sobre a mesa de centro e pus-me a ler. Na sua maioria, eram revistas que tratavam das modernas descobertas científicas no mundo da saúde, com uma ou outra "Caras" no meio, que não estavam ali por coincidência, pois após folhear ambas, descobri matérias inteiras sobre o Dr. Barros, que insistia em não aparecer na saleta de recepção. Será que o porteiro não comunicara o doutor sobre sua presença? Olhei para o relógio: vinte minutos de espera, resolvi ir embora e até já havia me levantado quando a porta dupla de mogno se abriu, de onde uma voz conhecida se fez ouvir.
-- Entre Jonas!
Um arrepio passou pelo meu corpo, tentei sorrir e obedeci à voz.
A outra sala era enorme, com as paredes cobertas de quadros que pareciam janelas mostrando a era medieval, havia livros espalhados por todos os lados, dois divãs estofados estacionados lado a lado no centro da sala, o que dava a impressão de serem reservados para terapia em casal ou para alguma safadeza do doutor; em uma cadeira grande e antiga, também estofada, repousava o gigante que agora observava a presa, digo, eu; observava com um braço cruzando o peito e uma mão segurando o queixo. Ele usava aquela mesma roupa escura do dia anterior e era difícil ter certeza em que parte o doutor me observava, devido à escuridão existente. Seria ele mesmo homossexual? Ri do pensamento enquanto o doutor me indicava o divã da esquerda com a mão espalmada e um aceno da cabeça. Quer ver agora ele deitar no outro divã, me olhar nos olhos e dizer: te amo! Meu pensamento foi cortado pela voz de trovão.
-- Você tem uma imaginação muito fértil, Jonas! Fique tranqüilo, não sou homossexual apesar de realmente usar esses divãs para sexo sim.
O arrepio retornou e a boca secou, imaginei-me agora saindo correndo como fizera quando criança no circo, após me assustar com um palhaço.
-- Não se assuste nem corra, por favor, tenho certeza que na revista que leu estava escrito que sou especialista também em leitura da mente, hipnose, coisas assim. Mas tenho também certeza que não acreditou numa só linha que leu, como a maioria não acredita e torno a dizer, fique tranqüilo e vamos iniciar nossa consulta.
O “sim” ficou preso na garganta e respirando fundo, consegui enfim falar.
-- O que é o senhor?
-- Tudo bem, tem algumas perguntas, certo! Pergunte o que quiser agora, pois após isto será a minha vez. Ok, vamos lá. Eu sou o doutor que se apresentou para você na academia e é tudo que precisa saber sobre mim.
-- Quem o contatou?
-- Eu mesmo te escolhi para tentar ajuda-lo, após uma promessa na roleta russa, mas isto é uma outra história. Tenho grandes possibilidades de fazer com que possa ter sua paixão, ou melhor, ter Patrícia ao seu lado, estou errado?
-- De que Patrícia está falando, doutor?
-- Jonas, necessito de toda a sua sinceridade se quiser que eu faça qualquer coisa por você. Se acha que não vai conseguir ser sincero o suficiente, vá embora agora e eu não mais o aborrecerei.
O encarei por um instante. O que tinha a perder afinal, ele sabia o meu grande segredo, aquele que deveria ser somente meu e de Pati para sempre. Será que Deus está me olhando com mais carinho neste momento e enviou este homem para me dar uma chance? Notei que o gigante desviara o olhar após este último pensamento e, sem ter uma resposta, resolvi confiar nele.
-- Não está errado doutor, amo essa Patrícia a que se refere.
-- Estamos progredindo. Vamos fazer um pequeno jogo de perguntas, eu as faço e, lógico, você responde ou se quiser, eu mesmo respondo.
-- Não é por nada não, mas deixa que eu mesmo respondo!
-- Certo! Primeiro perguntas em relação ao que sente por Patrícia. Pensa muito nela?
-- Sempre. Basta ficar quieto por um instante e ela toma conta de mim.
-- Quando está na rua também?
-- É pior ainda. Ela tem um gol vermelho e toda vez que vejo qualquer carro parecido, já fico doido pensando que é ela.
-- Em casa?
-- Lá é onde penso mais, pois moro sozinho, não há como fugir de sua presença. Tento ver defeitos nela, mas o amor que sinto é muito maior. Tento fugir da lembrança de seus sorrisos, mas é inevitável, o telefone toca e corro achando que só pode ser ela; o mesmo acontece quando a campainha do apartamento soa. Sabe, doutor, acho mesmo que ela vive e mora dentro de mim, mais que isso, tenho certeza que ela já é parte de mim.
-- Mas então ela é uma princesa de tão linda e formosa?
-- Sim, pra mim ela é uma mulher maravilhosa, mas o senhor diria que é uma mulher muito bonita, porém comum.
-- Então o que você viu nela?
-- Eu vi e vejo nela a essência de seu ser, a bondade que a envolve, o carinho que transborda de seu coração. Ela é especial demais e tenho certeza que eu posso dizer isto até mil vezes repetidas que ela vai achar que estou exagerando.
-- Você já teve alguma intimidade com ela?
-- De nenhum tipo, nem um simples beijo. Eu a respeito demais e só faria alguma coisa com ela se não houvesse nenhum meio de escapar, ou se ela se separasse.
-- E no marido dela, pensa?
-- Deus me perdoe, mas morro de inveja dele; do carinho com que ela às vezes fala dele, da maneira como ela narra suas noites de amor com ele. Quem sou eu para competir com um casamento de longa data, uma vida a dois que foi construída provavelmente com o mesmo amor que sinto hoje, mais que caiu na rotina com o tempo. Eu o invejo sim, não há dúvidas, e ele deveria dar mais valor para ela.
O gigante permaneceu calado, dando a impressão de que estava satisfeito com o diálogo travado. Quem dera!
-- Seu diagnóstico é exatamente o que pensei, está muito apaixonado por essa mulher, disto não há dúvidas. Nossa consulta de hoje acabou, mas vou lhe fazer mais uma pergunta, que não quero que me responda agora: O que você faria se pudesse reconstruir sua vida e a dela desde muitos anos atrás, teria mesmo coragem de tentar? Pense durante a noite em todas as possibilidades, nos sacrifícios, e me dê uma resposta daqui a dois dias, numa nova consulta. Adeus Jonas.
Eu deixei o local, meio incerto quanto aos resultados daquela consulta do tipo bate-papo, a que geralmente se tem com psicólogos. Cheguei ao meu apartamento meia hora depois e tomei uma ducha demorada. Não sabia o porquê, mas iria pensar no que o doutor dissera, afinal não custava nada e que diferença faria, pois de qualquer forma iria acabar sonhando acordado com Pati. Como sempre.
6. SONHOS
20 de setembro de 2000
A noite parecia não ter mais fim. Deitei-me pelas 22 horas e comecei a construir um sonho, do qual eu jamais me esqueceria, em nome da ciência do Dr. Barros. Imaginei-me encontrando Pati quando ela era solteira, namorando-a, casando com ela, tendo lindos filhos; só imaginei as partes boas da relação, somente os sorrisos, as vitórias e ignorei todo e qualquer outro aspecto que pudesse ofuscar o belíssimo quadro criado durante a noite.
De manhã, quando o sol tentava entrar no quarto através das frestas da janela, conclui enfim que sim, valeria a pena ter uma chance para tentar ser feliz, uma chance de mudar o rumo de minha vida e de fazer alguém ser mais feliz. Sim, valia a pena a qualquer custo. E pensando assim, adormeci.
7. ENIGMA
21 de setembro de 1987
Quando acordei, me sentia mais renovado, focalizei o relógio localizado sobre a penteadeira e conclui que dormira o suficiente. O quarto ainda estava muito escuro, apesar da tarde já haver se iniciado umas duas horas antes. Pensei em ligar para a academia e informar que não passava muito bem e que também, no dia seguinte, não daria aula, mas busquei em vão o telefone sobre o criado mudo e alias, constatei, nem o criado mudo parecia estar ali. Achei ter esbarrado nele durante o sono e o empurrado para longe da cama e já ia me levantando quando escutei uma voz conhecida do lado de fora do meu quarto.
-- Jonas. Vai dormir o dia todo? Quer que eu chame um médico?
Na verdade, eu me sentia muito bem, obrigado, mas o médico foi necessário sim, pois desmaiei. Talvez fosse até por fraqueza – diria o médico mais tarde – mas provavelmente fora um desmaio de susto e não era por menos, já que não é todo dia que a gente escuta nossa mãe chamando do lado de fora do quarto, principalmente quando ela já falecera há uns cinco anos.
Quando acordei novamente, estava num leito branco de um hospital, branco como é tudo num hospital. Minha mãe e minha irmã Rita se encontravam uma de cada lado da cama e o tradicional branco do hospital agora existia em minha mente. Bom, pensei, um sonho muito realista este, o jeito era aguardar e ver o que acontecia. Travei um diálogo com mamãe, afirmando estar me sentindo bem, mas só fui liberado horas depois, com uma enorme receita médica, de praxe. Durante o trajeto de saída do local, passei por um espelho e me vi de relance, retornando a seguir para ter certeza. Estava bem mais jovem, sem qualquer dúvida. O rosto mais afinado, sem bronzeado algum e com uma escassa barba por fazer, o cabelo cortado bem curto, tipo soldado do exército; mas o que mais me impressionou foram as roupas, que coisa mais horrível, prometi para mim mesmo que, sendo sonho ou pesadelo que fosse, a primeira coisa a fazer era trocar de roupa. Alcançamos a saída e ao pisarmos na calçada, senti um pouco de tontura, mas respirei fundo e procurei me acalmar. Minha cidade não mudara muito nos trinta anos em que vivera nela, mas certamente aquele ambiente que eu via agora não era o mesmo do dia anterior.
-- É melhor você não ir à Faculdade hoje Jonas, pode ter uma recaída lá e quem vai te ajudar?
Essa era mesmo minha mãe, preocupada como sempre, um doce de pessoa. Senti meus olhos se enchendo de lágrimas, não gostava de lembrar que perdera minha mãezinha tão cedo, sem poder dar um pouco mais de conforto que ela merecia. Meu pai faleceu quando eu tinha quatro anos, era mais fácil aceitar, pois não tinha convivido com ele, mas a minha mãe...
-- Está bem mãe, hoje eu não saio mais para lado algum, disse e sem querer estava mentindo, pois a noite prometia e eu ainda não sabia.
Cumprindo uma das promessas, ao chegar a minha casa, fui direto para o quarto trocando imediatamente de roupa, chegando até a me sentir melhor. O ano de meu sonho era 1987, lembrava-me muito bem deste corrido período, quando passava por uma má fase na Faculdade de Educação Física, o que me obrigou a uma aplicação muito maior do que a normal, não saindo para lado algum e as únicas novidades não passaram de uma paquerinha aqui, outra ali. Apesar das dificuldades, lembrava com carinho daquele ano, onde realmente tomei consciência do que esperava do futuro, tendo a certeza que queria ser um profissional da área para o qual tanto me aplicara. Isto para alguns poderia parecer bobagem, mas para mim foi fundamental. Considerei que aquela má fase que superei sacrificando os finais de semana onde passava estudando, a passagem do Jonas jovem para o Jonas adulto, da algazarra trocada por responsabilidade, do incerto pelo certo, e isto foi muito importante para desenvolvimento do meu caráter.
Mas agora, em que estranhamente visitava este ano num sonho tão real, com a aparência de um adolescente, mas ainda com a mente de um homem formado, estando numa sexta-feira quente, onde passara a parte da manhã refugiado num hospital, achava mesmo que precisava dar um descanso para aquele jovem que eu fora, pelo menos num final de semana, afinal era um sonho, me lembrei, e os sonhos não modificam o futuro que já foi escrito. E assim pensando, tomei uma bela ducha e sai para a noite, que começara há algum tempo.
Ao entrar numa via iluminada, que servia de acesso para os dois melhores clubes noturnos (ou danceterias) de minha cidade, comecei a cantarolar em voz baixa:
“Sonho, sonho, sonho
Não deixa eu acordar
Que nesta linda noite
Eu venha a rir, chorar
Mas que a noite não se acabe
Sem eu me apaixonar”
Não lembrava de onde vinha a cantiga, possivelmente a teria inventado naquele momento, mas de uma coisa eu sabia e meus olhos confirmaram, pois se encheram d’água. Eu sabia que não conseguiria me apaixonar por mais ninguém além de Pati, ela que agora deveria estar dormindo abraçada ao marid..., não, não queria pensar nisto e meu pensamento foi sufocado pelas lágrimas e quando me recuperei, cantarolei novamente a música, alterando-a:
“Sonho, sonho, sonho
Não deixa ela acordar
Que nesta linda noite
Ela esteja a rir, jamais chorar
E quando a noite chegar ao fim
Venha por mim se apaixonar”
Chorei mais um pouquinho, algo que acontecia tão naturalmente agora e deixei que a cantiga se repetisse em minha mente, como um refrão que não se acaba. Entrei no banheiro de um boteco, escondendo os olhos vermelhos do balconista, onde lavei bem meu rosto e prossegui a seguir na caminhada até onde filas se formavam para entrar na Dance Music.
O som que derrubava o salão era uma música pesada da Madonna. Não estava preparado, mas entrei agitando, seguindo diretamente até o bar, onde ao menos por uma hora, ficaria me “abastecendo” de martinis e cubas. Quando já me sentia digamos “legal”, comecei a rodar pelo salão, para quem sabe encontrar uma das paquerinhas da época e tornar a noite um pouco menos sofrida, fazendo coisas que não havia experimentado, pelo menos naquele ano. A idéia subiu mais que o álcool nas minhas veias e comecei então a procurar com mais afinco, enquanto meu desejo sexual aumentava, você sabe onde, num descontrole típico de adolescente.
Em uma de minhas rondas pelo salão, esbarrei numa moça bonita, quase chegando a derrubá-la. O meu verdadeiro eu tomou a frente e imediatamente a segurei pela mão, me desculpando muito. O meu falso eu, resolvendo atrapalhar, ressurgiu.
-- Menina linda, aproveitando que nossa trombada não resultou nem em mortos, muito menos feridos, somados ao fato de que estou sozinho e de que você está, está...
-- ... sozinha...
-- Isso! Estamos sós, portanto, creio eu que não faria mal algum se dividíssemos nossas tão boas companhias, seja em danças ou no barzinho, o que você acha?
Ela nem precisou responder, mostrou um belo sorriso que se não era sim, seria então o mais magnífico não que alguém já tenha levado. Nem esperei por outro sinal, a puxei pela mão para o centro da pista e dançamos, brincamos, sorrimos. Logicamente, fizemos algumas escalas no bar também, mas a melhor parte foi na hora em que começou a tocar as músicas mais lentas, as chamadas românticas. O contato com ela foi eletrizante e ao mesmo tempo suave e nem parecia que ela dizia a verdade quanto aos dezesseis anos que tinha, pois um diálogo muito legal surgiu entre nós e eu, apesar do álcool e dos desejos, notei alguma semelhança nela que me fazia lembrar de alguém, mais deixei de lado a idéia ao sermos interrompidos por uma amiga da princesa. Estava tarde e ela precisava ir embora.
Eu a soltei automaticamente e observava seu andar de retirada quando ela se virou, retornando para bem junto, colando em mim.
-- Vou te ver de novo – ela disse, em meio a outro de seus lindos e inesgotáveis sorrisos.
-- Talvez – respondi abraçando-a mais forte enquanto a beijava de leve – Tudo vai depender de quando eu acordar e descobrir que não estou sonhando.
-- Então, nos veremos amanhã. Retribuiu o beijo e saiu. Eu ainda permaneci por mais ou menos um minuto parado sozinho, no meio do salão. Que menina encantadora – pensei alto enquanto retornava ao bar - nos veremos amanha novamente, princesa.
8. O DIA SEGUINTE
22 de setembro de 1987
Existem momentos na vida de todo ser humano que, por mais extraordinários que sejam, chegam a ter uma explicação, de certa forma, plausíveis, aceitáveis. Alguns o enquadrariam como milagres, outros até como frutos de magia negra, outros ficam loucos e vão morrer em sanatórios. Eu não saberia dizer em qual destas condições melhor me classificava, deixo isto por conta da imaginação dos que lerem essas linhas. O que posso afirmar com toda a convicção é que, quando despertei naquele último dia do outono de 1987, devido ao interminável som do telefone, eu me senti muito, mas muito perdido.
Primeiramente, o telefone não estava em meu quarto, onde também não existia criado mudo algum, onde não existia nada que me era familiar daquele apartamento de classe média, onde eu vivia só já há alguns anos. Apesar de tentar raciocinar normalmente, a única lógica existente era de que o sonho continuava; de que na noite anterior eu enchera a cara, pois marretas em bigornas soavam na minha cabeça; e de que também aquele telefonema só poderia ser de uma pessoa.
Saí desesperado do quarto e quando toquei o telefone, ele calou. Sentei desanimado no sofá, cantei baixinho a música da véspera, contei até dez e estiquei o braço na direção do telefone, que voltou a tocar. Atendi. Era minha mãe, me pedindo para levar o carro no mecânico, para aquela manutenção que carro precisa para continuar rodando. É claro que disse que levava, pois do contrário mamãe ficaria muito surpresa, já que foi naquela inesquecível manhã que eu dirigi pela primeira vez o “possante” da família. E era verdade, todos sabiam que eu era louco pra fazer isso. Pois é, como disse, eu era louco para fazer isso, uma coisa que agora já fizera diversas vezes, dirigindo todo quanto é tipo de carro, mas que, por causa de um sonho maluco (que agora começava a se transformar em pesadelo) seria a primeira vez naquele início da primavera.
O mais engraçado de tudo era que aquele dia se tornara inesquecível não somente pela minha estréia como piloto. Como naquele comercial do soutien, a primeira porrada a gente também não esquece, principalmente se ela for com o fusca velho da mãe e se for uma porrada cara, como foi. No dia anterior, aquele primeiro da série “Sonho Maluco”, eu havia feito coisas que fugiam do que na verdade acontecera e então, porque não poderia ser diferente com o fusca? Talvez não pudesse, talvez certos aspectos de nossa vida simplesmente não pudessem ser mudados, talvez este sonho acabasse no capítulo “A Porrada” (tornando a série um curta metragem) ou talvez até eu não estivesse sonhando...
Era isto que eu tinha medo de pensar, não podia nem queria pensar nisto, só que a mente era uma tremenda traidora. Eu me via no consultório do Dr. Barros, aquele cara estranho que dizia poder me ajudar, que podia ler minha mente, que me assustara tanto ou tal eu estava agora. Aquele cara que parecia ser um bruxo, é, um bruxo. Somente um bruxo faria tremenda mágica; somente um bruxo faria com que o hoje parecesse ontem, mas é aí que estava o problema, de alguma forma que não sei explicar o que acontecia não parecia ontem, era ontem. Ou passado, para ser mais esclarecido.
Peguei a chave do fusca, que morava num prego ao lado da entrada da cozinha, saí pela lavanderia chegando à garagem e lá estava a belezinha. Lembro da excitação que senti ao abrir o portão da garagem coberta e sair rodando em marcha lenta. Se não me engano, na época nem fechei o portão, tal a adrenalina que me incendiava, adrenalina esta que certamente me ajudou a ocasionar o acidente. Procurei fazer tudo igualzinho e só mudei o percurso, afinal o sonho era maluco, mas eu não. Passei por uma rua paralela onde acontecera (no passado, presente, sei lá) o acidente, chegando são e salvo e não estranhei quando li no dia seguinte (é, dia seguinte) que dois veículos haviam colidido onde o fusca de mamãe sofreria o acidente. Como por capricho do tempo, este alterou os personagens, mas não o fato. E também não estranhei muitas outras coisas que aconteceram, coisas inevitáveis para o bom andamento da história, eu acredito.
Naquele sábado, depois do check-up realizado pelo mecânico de confiança da minha mãe, abasteci o carro e rodei por várias horas pela cidade toda, parando quando já estava exausto, lá por perto das 18 horas. Mamãe me deu uma bronca daquelas, onde já se viu, ficar rodando por muito tempo de carro quando um dia antes havia ido parar no hospital por estar estressado. Mas bastou um sorriso meu somado a um abraço para que ela se tranqüilizasse e me beijasse, como a um bebê que eu fora. Já estava me acostumando com a idéia daquela situação devido ao tempo em que passei pensando somente no assunto e provavelmente ficaria muito triste se fosse obrigado a acordar agora. Alguém me dava uma segunda chance, fosse obra do destino ou daquele bruxo, em ambas as situações a mão de Deus teria que estar presente, pois Ele era o Grande escritor da história chamada vida.
Resolvi sair novamente naquela noite e, quem sabe, encontrar aquela princesa novamente. Não vou mentir dizendo que estava pensando seriamente nisto, meu desejo mesmo era de procurar desesperadamente por Pati, onde quer que ela estivesse, dar uns tabefes em quem quer que estivesse namorando ou saindo com ela e depois sei lá, raptá-la, quem sabe. Mas não ia fazer isso, eu sabia, não conseguiria fazer isso, não seria justo. Por quê? -- Você deve se estar perguntando. É simples: eu tinha noção do que acontecera na vida dela, do namoro com o marido, do casamento, dos filhos, das decepções que ela sofrera; mas eu tinha outro pensamento que me dava medo: e se eu não conseguisse conquistá-la, se ela me visse novamente somente como um grande amigo, se já fosse apaixonada pelo futuro marido? Ahh, e aí? O que seria de mim? Iria passar dos dezenove anos até o final da minha vida sofrendo por ela, sonhando com ela, não, eu não agüentaria. Aí sim eu iria ter certeza que só poderia ter sido obra de um bruxo aquele retorno, um retorno para que eu pagasse por amar alguém que já pertencia à outra pessoa. Não, era um risco enorme a correr para um coração cansado de sofrer, deveria haver outro caminho e eu talvez o encontrasse, quem sabe não seria até aquela princesinha linda que faltava para que eu me reencontrasse com a felicidade, que me abandonara há tanto tempo.
9. DESTINO
22 de setembro de 1987
Como na véspera, rumei direto para a danceteria e lá dentro, diretamente para o bar. Entrava no terceiro Martini quando visualizei a beldade entrando pela lateral da pista de dança, com aquele sorriso aberto e com a expressão nos olhos afirmando que procurava alguém, que eu esperava ansiosamente que fosse eu. Não demorei muito tempo para descobrir, pois quando me viu, seu sorriso pareceu aumentar ainda mais, tanto em beleza quanto brilho. Em resposta, sorri também enquanto ela se aproximava, se aproximava. Abraçou-me sem dizer uma palavra, ficando ali enroscada em mim com aquele corpo quente, corpo de menina certamente ainda inexplorado, ansiando por um carinho. Fiquei somente com os braços estendidos ao longo do corpo por algum tempo, com medo de tocá-la, com medo de ultrapassar qualquer limite inexistente, eu sabia. Ela retirou sua cabeça de meu ombro, mantendo seus braços a me acorrentar. Fitou-me séria como se esperasse alguma atitude minha, depois sorriu. Eu não resisti, acariciei seu rosto e seus lábios com meus dedos experientes e ela tentou me morder, numa brincadeira. A beijei, no começo com extrema suavidade, passando para um nível mais agressivo, retornando ao suave. Quando nossos lábios se separaram, com grande resistência por parte dela, levei-a para o segundo andar e paramos numa sacada, de onde tínhamos uma bela visão da cidade vestida de noite.
-- Eu tenho um segredo, menina – disse olhando para o horizonte – Nem nos conhecemos direito, mas eu sinto que preciso me abrir com você, será que eu posso?
Ela chegou mais perto, me acorrentando novamente e usou a primeira das poucas frases que falaria durante toda a noite.
-- Por favor, continue.
-- Estou me sentindo muito perdido aqui, deslocado, de alguma maneira penso que já passei por tudo que estou passando, a não ser por você, que é a mais bela novidade neste "replay" da minha vida. Não estou bêbado nem louco, somente confuso. Preciso de alguém que me guie. Eu sei que isto parece um tanto infantil, mas é assim que me sinto. O que você acha? Seja sincera, não vai me magoar.
A princípio achei que a princesa nada iria dizer e fiquei até aliviado com essa idéia, mas me enganei, ao mesmo tempo em que me maravilhei.
-- Olha, não creio que possa te ajudar, sou muito jovem ainda. Até entendo o que sente, às vezes me sinto perdida também, mas não quando estou assim tão próxima de você. Se isto te ajudar como me ajuda, fique sempre assim comigo. Não me tenha como uma moça fácil, por favor, é que eu sempre sonhei com alguém como você, alguém que eu ainda nem sei o nome...
-- Prazer, Jonas -- eu me apressei em dizer – e antes que ela pudesse continuar, a beijei novamente e novamente, até o final da noite. E também, como na véspera, dançamos, brincamos, sorrimos. Dispensamos suas amigas e por volta das duas da manhã, a levei embora na “limusine” de mamãe, que ela adorou. Ela morava longe dali, um trajeto que de carro faríamos em dez minutos, se não fossem as paradas para os beijos e uma outra numa lanchonete, onde trocamos mais algumas idéias.
Na entrada do portão de sua casa, ao nos despedirmos, eu dei um tremendo fora que me ajudou a compreender em segundos como seria o meu futuro. Estava meio zonzo devido aos inúmeros martinis e o sono, que me chamava. Pela milésima vez eu me vi abraçado com ela e depois de (ufa) mais um longo beijo, me despedi logicamente.
-- Eu te ligo outra hora pra gente se ver. Boa noite Patrícia...
Ela se virou, passando o portão e deslizou até a porta de entrada e antes de adentrar a residência, com a porta já aberta, tornou a se virar em minha direção. Eu notei a gafe quando ela me encarou e senti a pele do rosto pegando fogo. Uma noite tão bonita com um fim tão trágico, pensei. Mas o que eu a ouvi dizer apagou o incêndio que tomava conta de mim de uma tal forma que chegou mesmo a me congelar ali naquela calçada. E foi em meio a sorrisos que suas palavras entraram em meus ouvidos, chegando a invadir minha mente e a apertar o meu coração. O destino joga com as pessoas e às vezes as pessoas jogam com o destino, não sei dizer qual era o meu caso só que foi isto que realmente aconteceu, pelo menos assim eu pensava.
10. O PREÇO
22 de agosto de 2000
Quem nunca sonhou em ter uma segunda chance para consertar todas as bobagens que fez durante a vida? Acredito até que a resposta seria TODOS. Mas e se a pergunta fosse um pouco diferente, do tipo “Quem conseguiu ter uma segunda chance? Aí você que me responda, pois nessa situação só conheço a mim mesmo e não tenho mais certeza se é felizmente ou não. Minha vida não foi tão modificada assim, eu acabei me tornando mesmo um professor de Educação Física, minha mãe faleceu alguns anos atrás, não sou melhor de vida do que era antes de retornar ao passado e além disso todas as minhas dores foram duplicadas. Está certo que duplicadas também foram minhas alegrias (e olha que houveram muitas a mais), mas existem certos sofrimentos que levamos anos, se não para esquecer, ao menos para deixar um pouco de lado na mente.
Só tive plena convicção do que aconteceria em minha vida naquela noite, há quase 13 anos atrás, quando aquela princesinha, que acabou se tornando minha esposa, me disse tão docemente:
-- Olha Jonas, pode me chamar de Pati.
Foi nesse momento que eu me entreguei de corpo e alma há uma realidade que eu jamais poderia fazer qualquer pessoa acreditar, uma realidade que eu não pude dividir com ninguém, uma realidade que me fez feliz, que realizou meu grande sonho de amor. Mas, diz um ditado que “Tudo tem o seu preço, e às vezes ele é caro demais”. Não posso dizer que meu preço foi caro demais, amei demais essa mulher, vivi os melhores momentos que um homem pode sonhar em ter com uma mulher, a felicidade não foi plena mais pelo fato de eu achar que fui injusto com Pati, ela já havia tido toda uma história antes, uma história que quer fosse boa ou ruim, existia, e o mais duro era que eu sabia, sabia de tudo.
Não pudemos ter filhos, vim a descobrir em 1990 que eu era estéril, pensamos em adotar, pensamos até em inseminação artificial, mas não deu certo, nada deu certo talvez porque certas coisas não possam ser mudadas, como narrei anteriormente. Fui extremamente feliz por tê-la ao meu lado, mas muito triste por não dar a ela (que tinha por direito) um filho; cheguei a pensar em separação só que não tive coragem, pois ela me amava tanto, tanto. Será que foi egoísmo meu ter sonhado em ser feliz com ela? E se foi por minha culpa que toda essa loucura aconteceu, eu queria que no mínimo ela pudesse ser bem mais feliz do que foi. Só que isso não aconteceu.
Ela morreu há dois anos atrás, levando consigo um enorme pedaço meu. Eu sabia, infelizmente, que isto ia acontecer e como no episódio do fusca, quando consegui evitar o inevitável acidente, tentei manipular o futuro, mas sem êxito. E o mais duro, o que mais me corrói por dentro é que indiretamente fui eu quem a matei, ela não teve nenhum filho ou filha para salva-la do atropelamento, aquele que a teria somente causado uma fratura, mas que acabou por tirar-lhe a vida. Em muitas noites deste ano de sua morte eu saí com ela, na esperança de que o fato acontecesse e eu pudesse estar lá para ampará-la, esperança em vão. Numa noite, sem me avisar, pois eu estava muito ocupado na academia, ela saiu para fazer seu passeio pelo parque e o inevitável aconteceu. Acho que nem todas as lágrimas do mundo a trariam de volta, mas é tão difícil viver sem ela e agora eu pago o preço por toda a felicidade que eu tive. Menti acima quando disse que esse preço não foi tão caro assim, pois ela não tinha preço. Pelo menos tenho a esperança de que mais cedo ou mais tarde, vou vê-la novamente em outro mundo e só espero que este dia não tarde tanto, pois ainda a amo demais.
11. RECOMEÇO
22 de setembro de 2000
Estava muito triste com a passagem daquele aniversário de treze anos do meu retorno, precisava conversar com alguém, desabafar quem sabe todo esse tempo em algumas horas com um ser diferente do que o meu reflexo no espelho. Havia tirado uma semana de folga para poder passar por um psicólogo e me dar um merecido descanso. Ultimamente trabalhava demais para ficar o mais longe possível da solidão de minha grande casa, o que acabaria por elevar o meu nível de stress ao limite.
Abri a lista telefônica no tópico psicologia e o primeiro especialista que encontrei foi um conhecido meu de longa data, de um pouco mais de treze anos para ser exato. A inscrição abaixo de seu nome dizia: Especialista em psicologia, parapsicologia, doenças do coração, entre outros aspectos paranormais; famoso mundialmente. Anotei seu telefone (que por coincidência também já havia perdido há muito tempo) e entrei em contato com seu consultório.
-- Consultório do Dr. Barros, bom dia!
-- Por favor, eu queria marcar uma consulta com o doutor, se possível ainda para hoje, senhorita.
-- Seu nome, por favor.
-- Jonas.
--Ah, Sr. Jonas! Um momento. Hum, sim, como pensei, o senhor tem uma consulta de retorno marcada para hoje a tarde, às duas horas.
-- É verdade, me desculpe, havia me esquecido. Acho que minha memória está um tanto curta ultimamente. Estarei aí no horário marcado, muito grato.
-- Sou eu quem agradece. Muito bom dia Sr. Jonas.
Então será que o gigante me aguardava? Bom, se existia alguém em quem eu podia confiar era bem provável que fosse o Dr. Barros, pois eu tinha quase certeza que ele havia sido o responsável pelo 'loop' que acontecera comigo. Quem sabe ele me esclareceria muita coisa nesta tarde, mas eu estava morrendo de medo, é verdade, o gigante era de dar calafrios com suas adivinhações, pelo menos agora eu já entraria em seu consultório com um pé atrás, prevenido. Será? – uma voz perguntou dentro de minha cabeça – e por um longo momento o que mais quis fazer na vida foi retornar a ligação e cancelar a consulta.
No prédio de escritórios onde se localizava o consultório do doutor o procedimento foi o mesmo de antes, o porteiro era o mesmo de antes, o elevador era o mesmo, a secretária (para mim, funcionária fantasma) não se encontrava, a porta de recepção estava aberta, as conhecidas revistas espalhadas na mesinha de centro, tudo igualzinho antes. Só uma diferença existia: a porta de acesso ao interior do consultório estava aberta, convidativa, tal a boca de um lobo gigantesco. Não sei por que este último adjetivo lembrava tanto o sujeito que eu estava prestes a encontrar.
Como feito há muito tempo, criei coragem e entrei. Lá estava ele, como antes, esparramado em sua cadeira da idade média, notei que havia novos objetos estranhos espalhados por todos os lados, vindo a pensar algo e antes que pudesse fazer qualquer gesto para o gigante se calar, ele respondeu minha indagação silenciosa.
-- Realmente Jonas, tive um bom tempo para colecionar novos objetos, na verdade para ser sincero tenho todo o tempo do mundo. Sente-se.
Logicamente para combinar, minha boca secou novamente e mesmo já esperando o acontecido, a vontade de correr tomou conta das pernas, mas respirando profundamente, caí num dos divãs e ao invés de pensar, falei.
-- Por favor, não se deite neste divã que ficou vazio, pois sua secretária pode chegar e pensar muito mal de nós.
-- Acredito que saiba que eu não tenho secretária alguma, não é Jonas? Seria difícil uma que fosse de inteira confiança e que agüentasse o meu pique.
-- Eu suspeitava!
-- Voltemos à sua consulta, você fez o que eu te pedi?
-- Fiz, e acordei quando tinha dezenove anos.
-- E o que achou da experiência?
-- Uma experiência um tanto longa demais. Houve muita coisa boa, mas agora existe um sofrimento muito maior do que quando estive aqui da primeira vez...
-- É o preço!
-- Eu sei, mas me responda somente duas coisas: Quem calcula este preço e o que foi que o senhor fez comigo?
-- O preço é calculado pelo destino, mais ninguém; e para terminar sua curta consulta, não, eu não fiz nada com você, eu não poderia fazer nada por você, o que é uma pena. Está certo, eu sou mesmo um bruxo, como você acha, mas não poderia mudar o passado e interferir no futuro de um ser humano, isto cabe somente ao Criador.
-- Mas então, se não foi o senhor, o que foi então que aconteceu, eu preciso saber, eu me sinto muito culpado por tudo, estou começando a sofrer de insônia novamente, tenho medo de ficar louco. Quem foi – tentei gritar, mas o que saiu não foi mais forte que um sussurro – quem foi que brincou tanto comigo, o que foi que aconteceu, por favor, me diga?
O gigante refletiu por algum tempo antes de responder, sempre com a mão direita segurando o queixo.
-- Digamos que tudo não passou de, como é mesmo que você o apelidou, “Sonho Maluco”. Foi isso! Adeus Jonas.
Despediu-se, levantou-se e saiu, me deixando ali mergulhado na escuridão de sua sala, acompanhado por minha tristeza, agora sempre presente. Resolvi ir embora também.
Desci pelas escadas, o elevador não respondeu ao chamado, quando passei pelo porteiro, avisei-o que o doutor havia deixado tudo aberto e já havia saído. Este sorriu.
-- De que doutor o senhor está falando?
-- De um com mais de dois metros, vestido de preto...
-- O senhor está passando bem?
Deixa pra lá, disse engatando a primeira marcha e sumindo dali. O gigante era um bruxo, ele mesmo havia me confessado, não era de se duvidar que aparecia tão rápido quanto desaparecia, como um mágico de Las Vegas, sendo somente a diferença de que seu palco era o mundo. E para completar o número, quando cheguei em casa e abri a lista telefônica não encontrei nenhum Dr. Barros na mesma, para dizer a verdade, não havia nenhum doutor que começasse com a letra “B”. Fiquei um pouco intrigado, mas não surpreso, isso não! Depois dos últimos anos aprendi a acreditar que existem muitas coisas que desconhecemos e que, insistentemente ocorrem à nossa volta. E já que o assunto é mágica, eu também consegui realizar um pequeno truque, que estava se tornando raro para mim: dormir. Mal caí na cama, apaguei e, por uma misericórdia divina, não sonhei.
12. ????
23 de setembro de 2000
O telefone explodiu por volta das nove horas da manhã, era um sábado. Acho que dormi como um bebê e como tal estava morrendo de “fominha”, queria deixar o "trimtrim" de lado e disparar para a geladeira, mas o som era insuportável. Enfiei a cabeça sob o travesseiro na esperança de que ele realmente explodisse ou parasse, mas acabei vencido pela teimosia do mesmo. Estiquei o braço e dei um gemido ao choca-lo com o criado mudo (?), a dor me fez despertar um pouco mais e notei como o quarto de casal estava menor (??), aquele "trimtrim" estava diferente também, lembro que minha saudosa mulher havia regulado o telefone para um som mais suave e eu não alterara nada na nossa casa (???). Peguei o fone de cor azul, que era sem fio, e fiquei observando-o um pouco antes de apertar a tecla "talk". Creio que meu pensamento voou para muito longe, pareceu-me até ter retornado para o sono. Balancei fortemente a cabeça de um lado para o outro e atendi, estremecendo por inteiro com o que ouvi (????).
Há pessoas que costumam guardar velhos objetos, relíquias, pessoas assim como o próprio Dr. Barros. Eu não tenho esta mania, pelo menos não material, mas trago comigo numa das estantes da mente vários objetos, rolos e rolos de filmes sobre vida, minha vida e a das pessoas que eu amei, das que eu amo. E foi vasculhando nesta estante que encontrei um velho e gasto salva-vidas, aquele dos dizeres da esperança, lembra; pois é, ele estava lá, coberto de pó e de outras besteiras, acho que nunca perdi tempo fazendo uma faxina cerebral e olha que em questão de tempo eu fui privilegiado. Agarrei-me a ele novamente só que agora a esperança era mais fácil de ser concretizada, ou melhor, mantida. Não tinha mais a expectativa de ter alguém que não me pertencia ao meu lado, só o fato de poder manter uma amizade com essa pessoa já era o suficiente. Eu aprendera a melhor de todas as lições com toda essa doida experiência que passei ou loucura que vivi, sei lá. E lá vinha chegando a própria dona esperança, em carne e osso.
Quando a vi estava mais linda do que nunca, os cabelos presos, as roupas próprias para ciclismo em cor verde com detalhes em azul, coladas em seu corpo, moldando o seu corpo; ela se aproximou falando coisas do tipo – Agora tenho que ficar acordando meu professor para ele cumprir seus compromissos? Que coisa mais chata! Olha que vou arranjar um melhor, hein! – As palavras dela passaram por mim, insignificantes, eu não disse nada a princípio, não tinha nada para dizer. Ao invés disso, soltei minha bicicleta e a abracei, sem nenhuma recusa ou pergunta por parte dela. Fiquei um tempo ali, colado, segurando com um enorme esforço as lágrimas que queriam desabar dos meus olhos castanhos, e o que eu senti foi a mais pura felicidade, soltei um suspiro e antes que a situação se tornasse no mínimo constrangedora, me afastei um pouco dela, mantendo um braço sobre seu ombro direito.
-- Menina, que bom te ver, já está mais calminha agora? Por este sorriso, se é que foi pra mim, acho que sim. Obrigado pelo abraço, senti muita saudade e precisava roubar um pouquinho desta tua energia para conseguir fazer o percurso de hoje. Vamos!
Notei que Pati ia dizer algo, mas se conteve naquele momento, talvez até colaborando para não estragar a alegria que me invadiu, fazendo somente um sinal de positivo com a cabeça para que iniciássemos a marcha. Mais tarde, enquanto conversávamos, ela me contou que a cada dia ficava mais distante de seu marido, as pequenas brigas, os ciúmes e outros fatores continuavam. Eu me sentia agora como se fosse o ex-marido dela (e de certa forma, eu realmente era) escutando-a e fazendo piadas do tipo “Quem manda casar” e “Procure um professor de ginástica, dizem que eles são ótimos maridos”. A esta altura de nossa conversa, meu salva-vidas me arrastou para um mar mais agitado e eu mentiria se dissesse que não havia gostado da idéia. Na verdade, eu aprendi a nadar muito bem nessas águas, pois foram treze anos de treinamento constante.
Ao retornarmos para o parque, alegres e cansados, por motivos diferentes que eu não preciso explicar, passou rapidamente entre nós um cidadão alto, trajado de preto, que parecia e muito com um bruxo que eu conhecia. Não dei muita importância para o cidadão que passou como um raio, ainda mais porque a presença de Pati me tomava toda a atenção, mais mesmo assim consegui perceber que o gigante sorria enquanto cantava uma música, cuja letra achei recordar.
“Sonho, sonho, sonho
Não deixa ela acordar
Que nesta linda noite
Ela esteja a rir, jamais chorar
E quando a noite chegar ao fim
Venha por mim se apaixonar”
FIM
Este é um conto fictício, fruto somente da imaginação e sonhos do autor. Qualquer semelhança com a vida real pode ser considerada mera coincidência ou quem sabe... ... destino!
Revisão: minha amiga Márcia Rangel
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Nota do autor de 01/12/2009 alterada em 24/12/2009:
Nestes dias atrás inspirado pelo tão bom ambiente encontrado aqui no Recanto, pensei: o que vou publicar amanhã?
Quando percebi estava rabiscando um caderno de notas e um título já brotara no papel, como que do nada: Jonas II!
Pensei, Jonas II, estou atrapalhado, esta história já acabou, fim, ponto final, the end!
Mas eu estava enganado, ela não acabou, existe alguma coisa ainda, um detalhe, uma vírgula, algum sentimento de que podia ser que o final de tudo fosse diferente...
Pois é, creio que consegui, uma nova partinha deste conto que me apaixonei está com seu endereço abaixo neste espaço cultural da Net. Clique para visitá-lo!
JONAS II
Abraços!